BAHIA
Dois de Julho: duzentos anos de civilidade e memória
Data cívica revela a história viva da velha Bahia
Por Priscila Dórea
O desfile na capital baiana em comemoração à Independência do Brasil na Bahia completa 200 anos na próxima terça-feira, dia 2 de julho. A primeira vez que o evento aconteceu foi um ano após a batalha vencida em 1823. De lá para cá, muita coisa mudou.
Esculturas tomaram o lugar do caboclo vivo. O carro de bagagem com carnes ainda sangrando saiu do cortejo. Os Encourados de Pedrão entraram e então saíram sob protesto. As filarmônicas mudaram sua roupagem. Balizadores e balizas LGBTQIAPN+ ocuparam seu lugar de direito.
O Desfile de Dois de Julho segue em transformação, mas o reflexo da bravura para lutar pelo que acredita dos baianos continua presente em cada ala. "Poder mostrar a sua arte no desfile", afirma o dançarino e balizador de 21 anos, Caique Sousa, "é muito gratificante". Gay, o jovem explica que o caminho iniciado por ele há sete anos não foi fácil, mas incrível de ser trilhado.
"É maravilhoso ver o brilho nos olhos das pessoas enquanto a gente se apresenta. As bandas e fanfarras eram um lugar de muito preconceito, eu pedia muito para dançar, mas não deixavam. Até que peguei um blusão da banda escondido e dancei na frente deles. Não foi fácil, mas hoje a visão mudou e eu não parei mais", conta ele, que é balizador da Fanfarra Municipal de Fazenda Coutos (Fanmuf).
Antropólogo e museólogo, Vinícius Zacarias explica que se ouve falar de balizadores e balizas LGBTQIAPN+ desde os anos de 1990, em todo o Brasil.
"Mas a verdade é que é um evento espontâneo sem marco histórico definitivo. Os relatos são diversos, mas o mais importante é saber que é algo que está resistindo nesse momento, entende?", reflete Zacarias, que é doutorando em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia (FBA).
"E isso é traduzido no Desfile de Dois de Julho, que sempre foi um lugar de manifesto, misturando aspectos carnavalescos, religiosos e cívicos. Uma resistência festiva que celebra, mas também manda mensagens", explica o pesquisador.
A ginasta Ellen Vitória, de 18 anos, entrou no mundo das balizas aos 12 anos através da Fanmuf. "É o meu berço", afirma, apontando que "a presença masculina trouxe muita força e beleza para as apresentações".
E o Desfile de Dois de Julho, segundo ela, é um longo palco para mostrar isso. "O mundo das balizas não é mais tão fechado, né? As coreografias também ficaram mais complexas, mas o cansaço do desfile a gente nem sente, pois é muito boa a energia de quem nos assiste pelas ruas", diz Vitória, que hoje é atleta da seleção brasileira de ginástica aeróbica e baliza da fanfarra Impacto.
Mas as mudanças no desfile não param por aí. "A criatividade popular não tem limite na hora de celebrar o 2 de julho", afirma o professor de história da UFBA, Milton Moura. "Os cortejos foram iniciados oficialmente pelas elites dirigentes, e não sabemos exatamente o que motivou os populares, mas com certeza havia muita gente. Na obra 'Dois metros e cinco, romance de costumes brasileiros' (1905), de Manuel Cardoso de Oliveira, por exemplo, ele fala do carro de bagagem cheio de carnes ainda sangrando que acompanhava o caboclo e a cabocla. Isso, claramente, não foi uma iniciativa dos dirigentes, padres ou generais", diz o professor.
Mudanças
Houve ainda, já no momento pós-escravidão no século 20, uma tentativa de embranquecer o desfile através das representações iconográficas, relata Milton Moura.
"Na segunda parte do século 20 e parte da terceira, a imagem dos caboclos foi substituída pela do Senhor do Bonfim. É a imagem dele, por exemplo, que está presente no centenário da Independência, enquanto os caboclos ficavam na Lapinha. Os caboclos encantavam a multidão e as elites, podemos dizer, queriam colocar os caboclos no âmbito folclórico, subalternos à imagem do Senhor do Bonfim", explica.
Ao longo das décadas, as maiores transformações aconteciam em períodos de embates e guerras - dizem, inclusive, que o desfile não aconteceu por dois anos durante a Segunda Guerra Mundial, "mas não existe certeza sobre esse dado", ressalta Milton Moura.
"Nos anos de 1960 e 1970, havia uma presença realmente forte de bandas da Polícia Militar e da Marinha, enquanto hoje não tem mais. Mas isso mostra que vários setores da sociedade queriam participar da festa dos caboclos", acrescenta o professor da UFBA.
Porém, em se tratando de música, uma força que permanece firme no cortejo são as filarmônicas. Uma delas é a centenária Sociedade Lítero Musical Filarmônica Minerva Cachoeirana, que existe há 146 anos.
"Se a gente pensar em um desfile cívico sem a presença das filarmônicas e bandas, parece estar faltando ingrediente. Elas são fundamentais para caracterizar nossa história, até porque não é uma tradição de ontem. Estou na Minerva há 50 anos e já era assim bem antes. É importante que essa história seja preservada tanto pelo importante trabalho social que, basicamente, direciona crianças para uma profissão, quanto pela tradição", afirma o atual maestro da Minerva, Clarício Mascarenhas Marques de 62 anos.
Coordenador de projetos da Minerva Cachoeirana, Roberaldo Galiza explica que hoje a filarmônica mantém uma escola de iniciação musical que atende cerca de 100 crianças da região de Cachoeira. "É uma luta que entramos com felicidade, tudo para levar ensinamentos adiante, manter a tradição presente e a filarmônica viva", destaca.
O Maestro Clarício pontua ainda o reconhecimento que a Minerva tem Cachoeira afora. "No ano passado, em Salvador, uma senhora lá do quarto andar do prédio dela gritava: Minerva, Minerva! Outros pedem música, pois conhecem nosso repertório. Isso é muito gratificante e aumenta a nossa responsabilidade", comenta, orgulhoso.
E essa responsabilidade de manter a história e a tradição presentes é algo que os Encourados de Pedrão conhecem bem. O grupo de vaqueiros participou da luta pela Independência do Brasil na Bahia, mas demorou a realmente entrar no desfile de comemoração.
"Há registros dos Encourados no cortejo a partir de 1923 e daí em diante se tornou efetiva, mesmo com vaqueiros de outras localidades fora de Pedrão", explica o fotógrafo, documentarista e historiador, Miguel Teles, natural de Pedrão e um dos Encourados.
Mas o Desfile de 2 de Julho de 2014 de Salvador foi o último que os Encourados de Pedrão participaram. Desde 2010, protetores dos animais vinham questionando a presença de cavalos e jegues em festividades, e o Ministério Público recomendou que os Encourados desfilassem sem os cavalos naquele ano.
A partir daí o grupo assumiu o risco de retaliação, mas conseguiu desfilar apenas até 2014. "Em 2015, saímos de Pedrão a pé e em sinal de protesto, e fizemos uma manifestação com cartazes na Lapinha", conta Miguel Teles, que ainda hoje, junto a outros Encourados (que continuam participando de desfiles e eventos no interior) esperam que a proibição seja revogada.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes