EM MEIO A ESTIGMAS
Egressos do sistema prisional driblam barreiras no mercado de trabalho
Leis e programas estabelecem cotas para ex-internos e apenados, mas cumprimento ainda é ineficaz
Por Bianca Carneiro

Aos 43 anos, Felipe* tem uma vida corrida, dividida entre o emprego em um shopping de Salvador, os estudos em uma faculdade de Direito e a família. Uma rotina comum, mas que ganha outro olhar, devido ao fato dele ser egresso do sistema prisional e ter que lidar, diariamente, com o preconceito e os estigmas sociais envolvidos nesta condição.
Felipe ficou preso por quase 10 anos em uma unidade da Bahia, por uma acusação de estupro, da qual ele se declara inocente e busca reparação judicial. “Foi descoberto que eu não tinha feito nada, mas a Justiça é assim, depois que eles prendem, não querem saber da condição da pessoa para soltar. Eu passei esse tempo todo com muito sofrimento. Trabalhava, tinha dois empregos, minha oficina...Perdi tudo”, lamenta.
Enquanto esteve detido, Felipe não deixou de se preocupar com o futuro no mercado de trabalho. Dentro da unidade prisional, estudou, fez a prova do Enem, cursos profissionalizantes, começou a fazer a faculdade e também conseguiu um emprego em um importante órgão da Justiça baiana: a Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE). Todos os dias, ele saía da unidade para trabalhar e voltava para dormir.
Atualmente, ele trabalha, mas reconhece que, sem a ajuda de um amigo que o indicou para a vaga, talvez não tivesse a oportunidade devido ao preconceito da sociedade, motivo pelo qual ele diz não contar a todos os colegas de trabalho que ficou preso.
"Ex-detento não acha emprego. Eu tive a ajuda de pessoas que me deram o maior apoio. Aqui, só o empregador e alguns colegas sabem que vim da prisão, porque tem o risco da minha segurança e a gozação. Não quero ficar relembrando o que foi passado, entendeu? As pessoas não têm que ficar olhando na sua cara pra te julgar. Aí, prefiro ficar quieto, que é bem melhor", explica ele.
Se tiver incentivo, o número de presos ressocializados, eu acho, que multiplica por 10
O receio de Felipe é uma realidade comprovada em pesquisas. Um levantamento da Genial/Quaest, divulgado no início de setembro, mostrou que 50% dos homens brasileiros e 39% das mulheres concordam com a frase "bandido bom é bandido morto", pensamento que contradiz a própria Lei de Execução Penal do país, que estabelece a integração social dos apenados.
E um dos pilares para a ressocialização é justamente o emprego. A partir do momento em que deixam as unidades prisionais, os ex-internos estão aptos a trabalharem normalmente. Em meio aos que admitem já terem sido presos e aos que ocultam essa informação dos empregadores, é difícil ter um dado concreto sobre a presença desta população no mercado de trabalho baiano mas, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap-BA), a maioria se encontra na informalidade, devido à conjuntura socioeconômica brasileira e ao preconceito.
Um levantamento do Escritório Social da Bahia - pacto da Seap com outras entidades fiscalizadoras - aponta que 74 entrevistados (o equivalente a 40,9%) estão desenvolvendo alguma atividade laborativa. Em contrapartida, 107 (59,1%) declararam não possuir nenhum tipo de vínculo empregatício. Do total de egressos que relataram ter emprego, apenas nove (4,74%) possuem carteira assinada com garantia dos direitos trabalhistas.
Cota para egressos
Marina* ganhou a liberdade há 11 meses. Presa em Feira de Santana por tráfico de drogas e assalto à mão armada, ela ainda não conseguiu trabalho. “Fiz seleção para uma empresa e estava indo bem, até que pediram, entre os documentos, antecedentes criminais. Nem compareci mais à entrevista. Estou já de olho na vaga de gerente de uma loja, mas se eu for contratada, não vou dizer ao patrão que já fui presa. Não vou ‘queimar meu filme’”, relata ela, que ficou detida por dois anos.

Existem leis que obrigam ou estimulam empresas contratadas pelo poder público a ter uma cota para apenados e egressos do sistema prisional, a exemplo do decreto estadual nº 14.764 de 2013, conhecido como Decreto Pró-Trabalho. Em julho deste ano, o Ministério Público do Trabalho na Bahia (MPT-BA) debateu o cumprimento da norma com empresas que, por contrato, são obrigadas a segui-la.
De acordo com o órgão, apenas quatro das 11 instituições notificadas compareceram à audiência, e cada uma recebeu um termo de ajuste de conduta. O MPT esclarece que as empresas não devem demitir empregados para contratar apenados e egressos e, sim, contratar à medida que forem surgindo vagas por dispensa, aposentadorias e pedidos de demissão.
Além do MPT, outras entidades da justiça baiana estão de olho nesta questão, a exemplo do Tribunal de Justiça (TJ-BA) e da Defensoria Pública do Estado (DPE-BA). Os órgãos destacam, no processo de ressocialização, a importância não só do Decreto Pró-Trabalho, como também do Projeto Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece um conjunto de ações educativas, de capacitação profissional e de reinserção no mercado de trabalho.
O recomeço sem ajuda é super difícil
Segundo o TJ-BA, por meio da juíza Liz Rezende de Andrade, existe uma rede de empresas privadas e órgãos públicos parceiros do Começar de Novo. Mediante a oferta de vagas aos apenados das unidades prisionais da Bahia, elas utilizam mão-de-obra do sistema carcerário. Já o defensor público e coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal, Pedro Casali, conta que, em uma iniciativa pioneira, o órgão publicou portaria onde passa a demandar que as empresas vencedoras de suas licitações, em contratos de obras e serviços, disponibilizem vagas para presos e egressos do sistema prisional.
“De acordo com a portaria, quando o número mínimo de trabalhadores(as) necessários para a execução do contrato for seis pessoas e o máximo 19, deve haver a disponibilização de ao menos uma vaga para presos e egressos do sistema prisional. Já quando o contingente para a execução do contrato implicar o emprego de mais de 20 pessoas, pelo menos 5% das vagas deverão ser preenchidas por pessoas nessas condições”, esclarece.
Atualmente, a Defensoria Pública da Bahia possui, em seus quadros, três pessoas egressas do sistema prisional trabalhando.
Caminhos para a mudança
Mas a ressocialização no mercado de trabalho não começa - ou não deveria começar - com a saída do interno. A fim de facilitar a inserção, em termos de conhecimento e convívio social, é preciso investir nas estruturas carcerárias e abrir os caminhos da profissionalização enquanto a pessoa ainda está presa. É o que explicam os advogados Vinicius Dantas e Henrique Antonio Martins, presidente e vice-presidente, respectivamente, da Comissão de Sistema Prisional e Segurança Pública da OAB-BA, outra entidade que fiscaliza unidades prisionais.
Segundo Vinicius, a Bahia possui uma população carcerária alta devido ao grande número de pessoas encarceradas provisoriamente. No entanto, ele considera como ‘ínfima’ a população carcerária que trabalha.
“Tem espaço para ser muito maior, mas falta interesse das autoridades [...] Se tiver incentivo, se tiver pessoas dispostas a trabalhar nisso, o número de presos ressocializados multiplica por dez. O problema é que vivemos numa sociedade que costuma entender que, uma vez que cometeu um erro, ele está alijado da sociedade para sempre, quando isso não pode acontecer. A pessoa precisa, sim, pagar pelo crime que cometeu, mas precisa ter a oportunidade de ressocialização”, pontua.
“O trabalho é muito importante para o apenado por dois motivos: um que ele está aprendendo; o outro, ele recebe dinheiro para dar à sua família e guardar como uma caderneta de poupança, que é chamada de pecúlio e devolvida quando ele ganha a liberdade. Fora o incentivo da remissão da pena porque, toda vez que ele trabalha, a sua pena é diminuída”, completa Henrique.
Não vou pensar em roubar, porque tudo que preciso já tenho no emprego
Segundo dados da população carcerária divulgados pela Seap na última quinta-feira, 22, a Bahia tem 26 unidades prisionais, com uma população carcerária de 12.504 pessoas - sendo 5.703 prisões temporárias. Do total de presos, 2.016 homens em regime semiaberto desempenham trabalho intramuros (dentro das unidades), enquanto apenas 160 fazem trabalho externo. Com relação às mulheres, 26 fazem trabalhos intramuros e não há registro de internas em empregos externos.
Uma das unidades que contabilizam sentenciados trabalhando é a Penitenciária Lemos Brito, situada na Mata Escura, em Salvador. Ao todo, são 846 homens presos em regime fechado e, de acordo com o diretor do local, Rogério Benício de Santana Lopes, até o dia 13 de setembro eram 263 sentenciados estudando, 267 laborando sem remuneração e 75 com remuneração. A penitenciária é referência no estado por receber diversos cursos para internos e manter estruturas que possibilitem o trabalho intramuros.
Rogério, porém, lamenta a falta de interesse de empresas privadas em buscar a penitenciária para produção. “A parceria com as empresas é feita através de concessão pelo Estado, a partir de um chamamento público que elas concorrem. Aí eu penso que poderia ser até uma concorrência maior. As empresas não conseguem enxergar o quanto elas podem ter de devolução, não só pra isso, porque no caso aqui específico da Lemos, a empresa vem, ocupa os espaços, têm essa mão-de-obra, um custo mais baixo do que fora da unidade prisional. O custo para a manutenção do emprego aqui, trabalhando na empresa, é bem mais baixo do que o indivíduo que esteja solto”, ressalta.
Segundo Rogério, os cursos profissionalizantes que acontecem na penitenciária são iniciativa do Estado, da própria unidade e de grupos religiosos/civis. Ele explica que as aulas não estão sendo ministradas no momento e reconhece que a estrutura da unidade prisional precisa ser requalificada para ofertar a estrutura necessária para a profissionalização.
“A unidade da Lemos Brito é dos anos 50, então é super antiga. É preciso modernizar. Isso está sendo feito aos poucos. Agora mesmo estamos fazendo uma reforma no Módulo 2 para tentar tornar mais adequado. Realmente, a penitenciária precisa de maior cuidado e melhorias”, afirma.
O advogado Henrique Martins pontua a importância de se manterem os cursos que, muitas vezes, são custosos para a população pagar e possibilitam ao detento ter uma profissão valorizada. “Um exemplo é o curso de operador de empilhadeira, que custa caro e era ofertado na Lemos. Quando o preso ganhar liberdade, ele já tem um emprego que está em ascendência no mercado. Tudo isso valora a ressocialização do encarcerado. Muitos também entram sem saber ler e aprendem lá. E cabe ao estado divulgar isso, para que os empresários possam levar a sua fábrica para lá e produzir”, diz ele.
O trabalho é muito importante para o apenado
Fantasma da reincidência
Uma vez fora da prisão, o ex-interno ainda está sujeito à reincidência, principalmente se não encontrar emprego. Foi o que aconteceu com Marcelo*, de 30 anos. Ele passou quatro anos detido na Bahia após se envolver em uma briga armada, que argumenta ter sido em legítima defesa, e foi preso novamente alguns anos depois do primeiro caso. Na segunda ocorrência, acabou sentenciado por roubo no Espírito Santo, estado que ele escolheu para recomeçar a vida.
Marcelo, que trabalha em um viveiro de plantas há dois anos e tem dois filhos, relata que sofreu dificuldades financeiras e chegou a passar fome antes de se estabelecer. Diferente de Felipe, ele não conseguiu emprego no período em que esteve preso e diz que também não recebeu ajuda de entidades do estado ou grupos civis para ressocializar.
“Meu patrão chegou pra mim e perguntou: ‘o que você quer da vida?’ Aí eu falei: eu quero mudar, eu quero mudar de vida”, diz ele, que hoje mora em uma casa no espaço do próprio trabalho, cedida pelo empregador.
No trabalho, a maioria dos colegas sabe do histórico, o que fez com que Marcelo temesse julgamentos. “Muitas vezes, as palavras machucam. As pessoas querem condenar, tem muita gente também que olha com 'maus olhos' porque já fui preso. Eu fico com receio de, caso suma alguma coisa, pensem que fui eu. Nem todo mundo confia em mim, então há uma marca ali, mas só que eu mostro sempre a diferença”, afirma.
“Aquele ex-detento que, ao final de seu encarceramento, se mostrar qualificado para o mercado de trabalho terá vencido todo caráter deletério do cárcere e isso precisa ser fortemente incentivado. A pessoa que estiver presa, hoje, retornará ao convívio social fora das grades e o Estado precisa se empenhar para que ela esteja melhor e afastada das condições que a levaram ao cárcere. E nada se mostra mais efetivo do que a qualificação pelo trabalho, estudo e reaproximação da família”, lembra o defensor público Pedro Casali.
Ao Portal A TARDE, a Seap disse que trabalha por políticas de ressocialização e contra a reincidência. O órgão cita a oferta de oficinas, cursos e atividades nas unidades carcerárias, os programas Começar de Novo e Pró-Trabalho, além da fundação do Escritório Social, primeira Unidade de Assistência à Pessoa Egressa do Sistema Prisional e seus Familiares. Conforme a secretaria, o objetivo do espaço, localizado em Brotas, é “reunir, em um mesmo local, atendimentos e serviços para dar suporte aos egressos do Sistema Prisional e sua família em diversas áreas como saúde, educação, qualificação profissional, atendimento psicossocial e moradia”.
Para o advogado Vinicius Dantas, no entanto, as ações são insuficientes. “Falta incentivo do Estado, das autoridades e da maioria dos envolvidos. Eu acredito que só prender e deixar lá armazenado não vai resolver nada. É difícil para alguém que sai de um conjunto penal arrumar um emprego sem uma profissão, sem carta de referência e com um carimbo de ex-presidiário. Poder trabalhar, ele pode, o problema é que a sociedade às vezes não oferece um trabalho para que ele viva de forma digna. Isso eu também não estou passando um pano no erro que ele cometeu. A gente já está além disso, falando já da pena cumprida e ele na rua, tentando trabalhar”, diz .

Como ex-detento, Felipe afirma que nunca foi assistido por políticas de assistência fora da prisão. “O recomeço sem ajuda é super difícil porque o Estado é complicado, bom pra prender, mas quando a pessoa sai, é incapaz de pagar um psicólogo, um profissional para acompanhar a pessoa, que sai dali confusa, com a mente a mil por hora”, reclama.
Marcelo diz que o trabalho foi a virada de chave para que ele desistisse de cometer delitos. “Eu penso assim, eu não quero voltar para lá (prisão). Tenho minha vida aqui, que é só passar da cerca e ‘tô’ no meu serviço, eu quero ser livre. Não vou pensar em roubar, porque tudo que preciso já tenho no emprego. E eu digo a pessoas como eu que nunca desistam, mesmo se olharem com maus olhos, há sempre a esperança de um novo caminho. Seria muito bom se o governo fizesse um projeto que acolhesse as pessoas que já foram presas e desse a oportunidade de uma vaga de emprego. Tem gente que quer mudar”, afirma.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados
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