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01/11/2024 às 17:58 • Atualizada em 02/11/2024 às 15:25 | Autor: Luan Julião

FINADOS

Entre Lápides e Histórias: o que os túmulos de Salvador revelam sobre a sociedade

Historiadora desvenda os significados por trás das esculturas e símbolos nos cemitérios

Imagem ilustrativa da imagem Entre Lápides e Histórias: o que os túmulos de Salvador revelam sobre a sociedade
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Entre a sombra das árvores e o silêncio das alamedas dos cemitérios de Salvador, há uma riqueza cultural muitas vezes despercebida pela maioria dos visitantes. As esculturas, ornamentos e símbolos presentes nas sepulturas contam não apenas histórias de pessoas que ali descansam, mas também trazem à tona reflexões sobre as tradições culturais, religiosas e sociais da cidade.

A arte cemiterial é um espelho das influências culturais, religiosas e sociais de uma região, e seus elementos revelam muito sobre a relação das pessoas com a morte e a memória dos entes queridos. Em Salvador, essa arte se manifesta em um contraste marcante entre cemitérios ornamentados, como o Campo Santo, e aqueles mais simples e desprovidos de adornos, como os cemitérios da Baixa de Quintas, Brotas e Plataforma. O trabalho tumular, permeado pela fé cristã e influências europeias, serve como uma galeria a céu aberto e demonstra não apenas a devoção religiosa, mas também as hierarquias sociais e a tentativa de eternizar memórias familiares.

Para explorar essa rica pluralidade de significados, a historiadora e professora Luciana Onety, coordenadora dos cursos de licenciatura da Unijorge e pesquisadora em arte cemiterial, analisa como os símbolos presentes nos túmulos revelam os valores, as crenças e as desigualdades sociais ao longo do tempo.

A mudança de padrão nos sepultamentos em Salvador

Luciana explora como a visão da sociedade sobre a morte e as práticas fúnebres evoluíram ao longo dos séculos. Até o século XIX, os baianos preferiam sepultar seus mortos nas igrejas, uma prática que, para muitos, era uma garantia de salvação.

"Essa mudança foi difícil, pois a sociedade baiana ainda era muito arraigada à crença de que o morto deveria ser mantido dentro do espaço da igreja, o mais próximo possível do altar-mor, distintivo de classe e importância. Dentro da geografia do além, estar dentro do espaço sagrado da igreja era quase uma garantia de salvação da alma. Esse pensamento começou a mudar com as ideias higienistas do século XIX, que defendiam que os miasmas, o cheiro emanado dos corpos em decomposição, eram chamarizes para doenças".

"Desta forma, os sepultamentos dentro de igrejas foram proibidos por lei em 12/11/1828. Mas ainda levaria alguns anos para que a população aceitasse o enterro em um cemitério extramuros, no Campo Santo", completou.

Até o século XIX, os baianos preferiam sepultar seus mortos nas igrejas
Até o século XIX, os baianos preferiam sepultar seus mortos nas igrejas | Foto: Reprodução / Campo Santo

Cemiterada

Essa mudança no padrão e no local dos sepultamentos não agradou à sociedade da época, o que provocou um movimento que resultou na destruição total do cemitério do Campo Santo, apenas alguns dias após sua inauguração.

"A Cemiterada foi um movimento contra a construção e inauguração do cemitério do Campo Santo. Este cemitério foi construído para impedir os enterramentos dentro das igrejas. Até então, as pessoas eram enterradas dentro das igrejas ou no adro, na parte externa. A população não queria essa mudança; queria continuar próxima de Deus, com a ideia de permanência no espaço sagrado da igreja. Uma empresa, então, resolveu construir um cemitério fora dos muros de Salvador, pois a Federação ficava fora da cidade na época. Isso se deveu às ideias higienistas da Europa, que já tinham chegado ao Brasil e defendiam que os "miasmas" – odores exalados pelos corpos – faziam mal à saúde"

"O cemitério do Campo Santo foi construído e inaugurado. Dois ou três dias depois, a população se reuniu na praça do Governo, onde hoje fica a Prefeitura de Salvador, e decidiu marchar até o cemitério. Cerca de quatro mil pessoas de todas as classes sociais, juntamente com representantes de várias irmandades de Salvador, marcharam até o Campo Santo e destruíram o cemitério. Esse evento, ocorrido em 28 de outubro de 1836, ficou conhecido como a Cemiterada".

"Alguns anos mais tarde, a empresa construtora foi indenizada, e a Santa Casa de Misericórdia adquiriu os direitos sobre o terreno, reconstruindo o cemitério. Foi somente com a epidemia de cólera na Bahia, em 1855, que a população começou a aceitar a necessidade de realizar os enterramentos fora das igrejas", explicou a professora.

A Cemiterada foi um movimento contra a construção e inauguração do cemitério do Campo Santo
A Cemiterada foi um movimento contra a construção e inauguração do cemitério do Campo Santo | Foto: Reprodução / Biblioteca Virtual Consuelo Pondé

A Memória e o poder espelhados na arte cemiterial

A relação entre memória e arte é particularmente visível nos cemitérios da cidade. "Os túmulos são representações de uma época, de valores e até da posição social das famílias", explica Luciana. Ela comenta como a arte tumular revela detalhes sobre os antigos moradores de Salvador, desde suas profissões até seus vínculos com a cidade.

“São muitos os elementos de identificação na arte cemiterial e fúnebre. Podemos encontrar símbolos da Maçonaria, como, por exemplo, a régua e o compasso e martelos. Também podemos encontrar símbolos da profissão exercida pelo morto; se médico, engenheiro, empresário ou industrial, nesses casos encontramos serpentes, esculturas de fábricas, forjas, dentre outros. Um exemplo notável são as colunas partidas presentes em mausoléus que contêm patriarcas de famílias importantes. Essa simbologia significa que a coluna mestra, o sustentáculo da família, encontra-se ali sepultado.”, destaca a pesquisadora.

A influência Cristã no imaginário cemiterial

A fé cristã permeia a arte cemiterial em Salvador e se faz evidente nos símbolos de cruzes, santos e pombas, que significam paz e esperança em uma vida após a morte. Segundo Luciana, esses elementos são diretamente influenciados pela tradição católica, vinda com os colonizadores europeus.

A fé cristã permeia a arte cemiterial em Salvador e se faz evidente nos símbolos
A fé cristã permeia a arte cemiterial em Salvador e se faz evidente nos símbolos | Foto: Reprodução / Campo Santo

"A influência europeia é marcante na arte fúnebre. Os principais símbolos associados ao cristianismo são as cruzes, imagens de santos, de Nossa Senhora, especialmente na forma da invocação de Nossa Senhora da Piedade, e livros abertos que simbolizam a Bíblia".

"Há também a presença de figuras de animais, como boi, leão e águia, que juntos representam os evangelistas: São Lucas, São Marcos e São João, respectivamente. A enorme quantidade de anjos – e aqui eu saliento que são andrógenos ou femininos – é uma peculiaridade da arte cemiterial em que o elemento feminino é tido como amenizador da dor da morte. Encontramos ainda pombas que simbolizam a ressurreição, ramos de oliveira que significam a reconciliação com o divino e ovelhas que remetem a Jesus, o cordeiro de Deus. Enfim, esses são apenas alguns elementos que encontramos, usualmente, na arte cemiterial", comenta Luciana.

Imagem ilustrativa da imagem Entre Lápides e Histórias: o que os túmulos de Salvador revelam sobre a sociedade
| Foto: Reprodução / Campo Santo

Ausência das culturas Afro-Brasileiras e Indígenas na arte fúnebre

Luciana destaca, no entanto, a ausência de elementos afro-brasileiros na arte dos cemitérios. "Infelizmente, percebemos muito pouco a presença de elementos indígenas e africanos na arte cemiterial. No início do funcionamento do cemitério do Campo Santo, na primeira metade do século XIX, os primeiros enterramentos eram destinados a pobres, negros e outros que não tinham onde ser enterrados e nem dinheiro para o sepultamento. O serviço era custeado pela Santa Casa da Misericórdia, após a desativação do cemitério público que ficava no Campo da Pólvora. Podemos concluir que o indivíduo que não tinha recursos para o próprio enterramento tampouco tinha recursos para contratar artífices para embelezar seu túmulo com elementos distintivos de classe, religião e/ou cultura", detalha.

Esses achados são testemunhos da luta para preservar a identidade em um ambiente que impunha o cristianismo como única forma de expressão religiosa. Para Luciana, o apagamento de símbolos afro-brasileiros reflete as dificuldades históricas desses grupos em manifestar sua cultura em espaços públicos.

"Podemos encontrar raras figuras indígenas associadas a crianças e à natureza, mas elementos africanos são mais difíceis de serem encontrados. Os africanos eram obrigados a aceitar o cristianismo como religião oficial, o que poderia garantir a eles um sepultamento minimamente digno. Sendo assim, elementos do candomblé eram subtraídos da arte fúnebre. Contudo, de acordo com pesquisas feitas por Áurea Tavares, mestre em Arqueologia, durante as escavações da antiga Catedral da Sé, iniciadas em 1998, dezenas de corpos de africanos foram encontrados sepultados nas imediações da igreja, indicando um enterramento católico. Porém, vários traziam contas de orixás no pescoço, o que nos leva ao entendimento de que não tinham aberto mão de sua fé, levando consigo para o além-túmulo suas tradições",

A arte cemiterial como símbolo de desigualdades

Os túmulos em Salvador não apenas refletem questões religiosas e culturais, mas também evidenciam desigualdades sociais. Luciana explica que a monumentalidade dos túmulos, os materiais nobres e as esculturas rebuscadas eram uma prerrogativa das elites locais, uma forma de “eternizar a importância” das famílias de renome.

"Temos muitos elementos artísticos e arquitetônicos distintivos de classe na arte cemiterial. Elementos como monumentalidade, material utilizado, tamanho, localização espacial e imponência do mausoléu, além da contratação de artífices. É importante entendermos que qualquer discurso sobre a morte é dirigido aos mortos, mas endereçado aos vivos. Ele visa marcar a distinção de classe da família e reafirmar seu locus na sociedade".

Os túmulos em Salvador não apenas refletem questões religiosas e culturais, mas também evidenciam desigualdades sociais
Os túmulos em Salvador não apenas refletem questões religiosas e culturais, mas também evidenciam desigualdades sociais | Foto: Reprodução / Campo Santo

"Como exemplo, cito o mausoléu da família Odebrecht (1963-1964), presente no Cemitério do Campo Santo, que teve como idealizadora a famosa arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, também responsável pelo projeto do MASP de São Paulo. O mausoléu do Barão de Cajaíba, que ocupa 50 metros quadrados, foi idealizado por um artista alemão e abriga a Estátua da Fé, que é tombada pelo IPHAN", afirma.

Para Luciana, essa diferença de estilo reflete mais do que a falta de recursos.

"Comparativamente, temos cemitérios desprovidos de arte e até de referências detalhadas ao morto que abrigam. Não é incomum nos cemitérios públicos ter apenas uma pequena cruz sinalizando o local de sepultamento"

Cemitério Municipal de Plataforma.
Cemitério Municipal de Plataforma. | Foto: Luan Julião / Ag. A TARDE

"As diferenças sociais e econômicas estão presentes nos cemitérios, que são marcados pela presença ou pela ausência dessa representatividade artística. A arte é associada à elite, como se ela fosse um apanágio dos ricos e privilegiados. Precisamos romper com esse pensamento, pois a arte é uma expressão cultural importante para qualquer classe social. Mas também precisamos reconhecer que a arte custa caro e nem todos podem pagar por ela. Isso leva à pragmatização do indivíduo diante da morte", enfatizou.

Mudanças e tendências na arte cemiterial

Luciana também explora como a visão da sociedade sobre a morte e as práticas fúnebres mudaram ao longo dos séculos.

"Eu não diria que evoluíram, diria que mudaram e se adaptaram à demanda vigente e ao contexto vivenciado. Com o passar do tempo, vamos verificando a mudança de atitudes e representações diante da morte. Durante os séculos XVII, XVIII e até o XIX, o morto era velado em casa, próximo da família que desejava homenagear o ente querido e se despedir dele. A partir da segunda metade do século XIX, gradativamente, a morte vai sofrendo a intervenção da ciência, sendo medicalizada. Os doentes são direcionados a hospitais, onde são mantidos afastados de suas casas e com restrição de visitas. Conforme o quadro se agrava, o doente pode ficar isolado da família e morrer distante de todos. Isso é um reflexo da sociedade em que vivemos, marcada pelo pragmatismo, pelo individualismo e pelo distanciamento da morte. Claro, estou aqui falando do pensamento característico do ocidente cristão, meu foco de pesquisa".

Nos dias atuais, no entanto, a urbanização e a falta de espaço têm levado a mudanças significativas.

"A sociedade atual é marcada por uma atitude prática, racional, cada vez mais distante do morto, que se torna alguém que desejamos sepultar, cumprir o ritual de despedida e continuar a vida. Vemos na arte cemiterial a ausência de mausoléus, de lápides trabalhadas ou com simbolismos. A preocupação atual é com as questões ambientais; os cemitérios estão se verticalizando por falta de espaço e pela praticidade na manutenção. Os mortos estão cada dia mais despersonalizados. Cito aqui que alguns cemitérios mais modernos usam QRCode nas gavetas, agregando um elemento digital ao serviço. Sem o QRCode, o único elemento identificador é um número na gaveta", explanou.

Alguns cemitérios mais modernos usam QRCode nas gavetas, agregando um elemento digital ao serviço.
Alguns cemitérios mais modernos usam QRCode nas gavetas, agregando um elemento digital ao serviço. | Foto: Reprodução/ Taba Benedicto/ Estadao / Estadão

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Tags:

Arte cemiterial cemitério finados Morte sepultamento sepultamentos

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