ENTREVISTA – MATHEUS ARAÚJO
Jovem quilombola conta como rompeu as barreiras para estudar Medicina
Estudante de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) comentou sobre trajetória

Por Divo Araújo

Foram oito Enems, mais de 15 vestibulares e dias inteiros estudando em uma casa sem energia elétrica. A trajetória de Matheus Moreira Araújo, 28, hoje estudante de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), começou em uma comunidade quilombola em Antônio Cardoso e avançou sustentada por disciplina, fé e propósito. “Eu estudava com o pouco que tinha, mas seguia todos os dias”, lembra ele, nesta entrevista ao A TARDE.
Além de vencer a própria história, Matheus decidiu transformar sua rotina em referência para jovens que enfrentam desafios parecidos. Hoje, reúne cerca de 90 mil seguidores nas redes sociais, onde mostra — sem filtros — a rotina de estudos, o esforço para se manter na universidade e a realidade de quem trabalha e aprende ao mesmo tempo. “Nada acontece do dia para a noite”, afirma.
Na conversa, Matheus reflete sobre a conquista, os desafios para permanecer no curso e a educação como caminho de mudança. Fala também sobre a influência da família, sobre como lida com a visibilidade nas redes e sobre o futuro que deseja construir. Entre cansaço, superação e esperança, ele reafirma a mensagem que orienta sua jornada: trabalho constante — e propósito — fazem toda diferença. Saiba mais na entrevista a seguir.
Matheus, você saiu de uma comunidade quilombola em Antônio Cardoso e realizou o grande sonho de estudar Medicina. Para começar a entrevista, gostaria que você contasse um pouco dessa trajetória.
A minha trajetória em relação ao curso de Medicina foi bastante árdua. Foram oito Enems e mais de 15 vestibulares antes de conseguir passar. Eu estudei em escola pública estadual minha vida toda. Terminei o Ensino Médio em 2013 e foi um pouco complicado porque lá em casa eram seis meninos. A gente veio de Antônio Cardoso para Feira de Santana. A gente tem ainda uma ligação forte com Antônio Cardoso, temos roça lá. Mas viemos para Feira por questões de trabalho. Meu pai é pedreiro, minha mãe dona de casa. Então, tinham esses fatores limitantes. Mas escolhi Medicina por causa de meu irmão. Meu irmão nasceu como uma criança normal, como qualquer outra, mas infelizmente ele adquiriu meningite meningocócica. Essa foi uma das minhas principais motivações. Eu trabalhava, dando reforço escolar, e estudava numa biblioteca municipal. Sempre trabalhei, fazendo de tudo. Trabalhei também na Ceasa carregando mercadorias. Eu estudava em um turno e trabalhava no outro. No ano de 2020, veio a pandemia do coronavírus. Aí fiquei sem dinheiro para estudar e pagar as minhas coisas. Mas segui estudando na biblioteca. Com a pandemia, ela foi fechada. E aí surgiu a casa de uma amiga. No ano de 2020, acabei estudando durante nove meses nesta casa que não tinha energia, das 11 até as 18 horas. A casa era quente pra caramba. Com pouco dinheiro que eu tinha, comprei material em PDF. Estudava com o celular mesmo. Durante esse período fui estudando, estudando. E o Enem de 2020 foi realizado em janeiro de 2021, por causa da pandemia. Fiz a prova, tirei 980 pontos na redação e consegui minha aprovação no curso de Medicina da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Depois segui para Feira. Mas foi uma época bastante complicada. Precisei ter muita resiliência e hoje estou cursando Medicina na Universidade Estadual de Feira de Santana.
Você contou que foram oito tentativas no Enem até conseguir a aprovação em Medicina. Em algum momento você pensou em desistir?
Toda vez que era reprovado no vestibular ou no Enem ficava triste. Mas a minha maior motivação era meu irmão. Chegava em casa com meu irmão, minha família, e me motivava. Foi uma questão familiar mesmo. Todos os dias eu acordava e dizia: tenho que fazer acontecer, com o pouco que eu tenho. E com esse pouco vou fazer. Mas foi bastante complicado.
Como era sua rotina de estudos durante esse período e os maiores desafios para implementá-la?
O maior desafio foi a parte financeira. Eu estudava com materiais que colegas e amigos me davam, ou retirados da internet. Não eram conteúdos tão bons e isso foi complicado. E, com o tempo passando, teve a questão familiar. Porque meus pais são analfabetos e não entendiam muito esse esforço. Estava tentando durante alguns anos e chegando aos 23, 24 anos sem emprego. Era algo que eles não entendiam. Também foi um desafio muito grande essa parte do entendimento familiar.
Você mencionou que seus pais são analfabetos e dessa dificuldade de entendimento, mas sei que dois irmãos seus também conseguiram cursar o ensino superior. Imagino que sua família tenha sido decisiva nessas conquistas...
Meus pais não tiveram a graça da educação, infelizmente. Eles moravam em zona rural e tiveram que trabalhar desde cedo para ajudar em casa. Mas, eles estimulavam. A gente tomava cascudo se fosse reprovado na escola. Eles participavam das reuniões nas escolas. Sempre estiveram presentes.

Apesar de serem analfabetos, eles entendiam que a educação era o melhor caminho para gente. Eles não queriam que a gente replicasse a vida de dificuldade que eles tiveram. Isso me levou a cursar Medicina, meu irmão fazer Psicologia e outro que estuda Sistema de Informações. Meus pais sabiam que o único caminho para o pobre vencer na vida era educação, futebol, ou o talento. Como a gente não jogava futebol e não sabia cantar, então o único caminho era o da educação.
Hoje, você compartilha sua trajetória para inspirar outros jovens que enfrentam desafios parecidos. Por que considera importante levar essa história adiante?
Normalmente a gente procura pessoas semelhantes para mostrar que deu certo. Nós vivemos dentro de bolhas. Para um menino que vive na periferia de Salvador, ou numa comunidade quilombola, você acordar, trabalhar, ter uma moto, aquilo ali é o ápice de vida para ele. Ele não pensa que pode ser um juiz, um delegado, qualquer coisa desse tipo. Você acaba sendo limitado pelo espaço que vive. Quando eu mostro minha rotina no curso de Medicina de uma universidade pública, como ela é trabalhosa, você tem que estudar, trabalhar, é para mostrar que através de muito esforço você pode conquistar qualquer coisa. Nada acontece do dia para noite. A minha rotina, a minha história, acho que pode ajudar outras pessoas a acreditarem nos seus sonhos. Por isso mostro minha rotina, sem filtros. Minha rotina é desse jeito, é trabalhosa. Eu preciso trabalhar para ter alguma renda. É difícil, mas se não for assim nunca vai acontecer. Essa mensagem que tento levar para as pessoas.
Você compartilha nas redes sociais sua rotina de estudos, conquistas e aprendizados, e já reúne mais de 80 mil seguidores. Como tem sido essa troca com os seguidores? Você recebe muitas mensagens de incentivo e reconhecimento?
É cansativo. A verdade é que não fui muito de rede social. Acho que Deus dar aquilo que você está querendo. Mas tem que bater o pé. Eu odiava ficar aparecendo, mostrando minha vida. Mas, hoje em dia, eu vejo como um trabalho. Vejo como algo que pode ajudar muitas pessoas. Quando vou às escolas dar uma palestra, fazer um bate-papo, quase tudo é de graça. Então, criar conteúdo é muito trabalhoso. Mas tenho que ter uma rede social ativa, porque no Instagram tudo é número. Produzir conteúdo todo dia para o Instagram, dar conta da faculdade e do trabalho no colégio, é coisa de doido. Meu Instagram já tem 90 mil pessoas. E se continuar assim logo, logo bate 100 mil. É isso: a cada dia que passa vou trabalhando e postando.
Você também já escreveu um e-book com dicas para a redação do Enem e dá aulas particulares. Quais são as principais orientações que você daria para quem sonha em ter um bom desempenho e conquistar uma vaga em um curso concorrido como Medicina?
Para passar em Medicina, como para qualquer coisa na vida, você tem que ter organização e disciplina. Você pode até não ser muito inteligente, um gênio, mas tem que ser trabalhador. O primeiro passo é conhecer suas limitações. Se sou ruim em matemática ou em física, ou qualquer outra disciplina, tenho que trabalhar muito para superar essa dificuldade. Para isso, é preciso ter muito planejamento. E saber o que você quer fazer: um determinado curso, uma profissão, trabalhar em alguma empresa. É preciso ter essa noção porque todo ser humano é movido por propósito. Normalmente, seja um concurso ou um vestibular para Medicina, é normal você ser reprovado nas primeiras tentativas. E muita gente acaba desistindo. Por isso precisa ter um propósito: ah, eu quero ser médico para mudar a realidade de minha família. Eu quero ter uma empresa para poder fazer alguma coisa… Tudo gira em torno do propósito. É isso: você precisa ser organizado, planejar e parar de reclamar. Eu acredito que o mundo é difícil para todos. E para quem é pobre é pior ainda. Mas se você tem um celular, tem internet, já tem muita coisa. O problema é que a gente fica procurando o mundo perfeito para fazer as coisas. Mas, com o pouco que você tem, já consegue fazer. E também precisa ter uma rotina: estudar poucas horas, mas todos os dias. Quem passa em Medicina ou em outro curso concorrido de uma federal ele não estuda muitas horas por dia. Ainda mais se for pobre. Mas se estudar algumas horas por dia, mas todos os dias, já está no caminho. Então, é ser constante nos estudos, saber de suas limitações e trabalhar. Eu falo direto que a educação modifica vidas. Está modificando a minha história e pode modificar a de milhares de pessoas. Mas precisa de trabalho, estudar todos os dias.
Você fez uma redação quase perfeita no Enem. Este ano a prova já passou, mas que dicas você daria para quem quer se sair bem nessa etapa?
Eu posso falar em relação à leitura. Tem que ler, gente. Não adianta querer fazer uma boa redação se você não lê. Porque a redação é a síntese daquilo que você é como pessoa. De que forma você enxerga a vida. A leitura é de suma importância. Redação e questões de matemática você tem que fazer pelo menos uma vez por semana. Porque é preciso ter muita prática. Então, tenha uma noção básica de como é a estrutura da redação. Estudar eixos temáticos é sempre melhor. O tema da redação da prova do Enem deste ano foi “Perspectivas do envelhecimento na sociedade brasileira”. Então, se você sabe sobre temas sociais, você tem como argumentar. É preciso estudar esses eixos e treinar. Não tem outro meio.
Passar em Medicina já foi um grande desafio, mas a gente sabe que se manter e ter um bom desempenho Na faculdade é uma etapa tão difícil quanto. Como tem sido sua experiência?
O curso de Medicina tem muitas disciplinas e é para quem gosta de estudar. Não foi tão fácil me adaptar porque eu tinha uma defasagem por ter estudado em colégio público. Por isso, precisei estudar mais para levar o curso. Na escola a média era cinco. Na faculdade a média é sete. E é prova o tempo todo. O nível de exigência é muito alto. Por isso, é preciso estudar muito. Porque, em Medicina, o mal médico, ele mata. Tem que ter essa responsabilidade o tempo todo. Medicina também é um curso em tempo integral, então a gente tem pouca disponibilidade para trabalhar em outra coisa. Hoje, estou no sétimo período. Mas é exaustivo. É uma rotina realmente cansativa.
Para concluir, Matheus, quais são seus planos para o futuro? Que tipo de médico você sonha em se tornar?
Eu me formo em meados de 2028 e pretendo retornar a minha comunidade quilombola, trabalhar um tempo lá. Eu penso em fazer em uma dessas três áreas – saúde da família, oncologia ou otorrino. Se conseguir emprego lá em Antônio Cardoso, penso em voltar e trabalhar um tempo lá. Estudar para fazer a prova de residência. E penso também em tocar algum projeto social para estimular a educação, alguma coisa que venha poder agregar na vida das pessoas. É assim que penso a vida pós-formatura.
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