FUTURO SUSTENTÁVEL
Mulheres do campo fortalecem território com agroecologia e economia solidária
Movimento coletivo transforma crise em resistência com renda justa e comida saudável
Por Isabela Cardoso

Entre as terras do Recôncavo Baiano, a jaca se fez símbolo. Fruta de muitos gomos e carne firme, ela dá nome e sentido à Associação Agroecológica Jaqueira, que nasceu em 2020, no povoado do Córrego 2, distrito de Corta Mão, em Amargosa. O projeto é a reinvenção da vida pelas mãos das mulheres do campo, em busca de autonomia.
Foi em plena pandemia que a semente brotou, com a crise sanitária emergente, acendeu-se nas mulheres da região a necessidade do enfrentamento às ausências: de comida saudável, de renda justa, de políticas públicas e de reconhecimento.
“O protagonismo feminino é a alma da Jaqueira. Sua coordenação é 100% composta por mulheres campesinas, majoritariamente negras — incluindo mães solos, pessoas com deficiência, representantes de terreiros e da comunidade LGBTQIAPN+,” explica Crys Rios, coordenadora da Jaqueira e do Colegiado de Desenvolvimento Territorial (CODETER) Vale do Jiquiriçá.
Desde então, o que era chão batido virou território fertilizador. A associação se organizou sob iniciativas que geram renda, promovem a inclusão produtiva e valorizam a soberania alimentar e a educação ambiental. Entre os projetos desenvolvidos estão as Feiras Agroecológicas, a Moeda Jaqueira, o Eco-Sabão e o Projeto Composteira, chegando a movimentar R$ 90 mil por mês.
Plantando dignidade
Na Jaqueira, produzir e comercializar alimentos agroecológicos não é apenas uma atividade econômica, mas um ato político de resistência e afirmação identitária. Essa é a diferença entre agroecologia e agricultura orgânica: enquanto o orgânico se dirige ao mercado, a agroecologia se firma como filosofia de vida coletiva, integrada à justiça social e ao cuidado com os ciclos naturais.
“Era do povo uma alimentação orgânica, um viver coletivo nas aldeias, nos quilombos, praticando a medicina natural. Hoje, tudo isso foi apropriado pela elite, e o que restou para o povo foi um alimento ultraprocessado, transgênico, altamente industrializado”, diz Daniel Oliveira, membro da Jaqueira e coordenador do Centros Públicos de Economia Solidária (Cesol) Vale do Jiquiriçá.

Crys explica que, ao romper com o modelo do agronegócio, marcado pelo uso de agrotóxicos e pela exploração da terra, a Jaqueira defende a vida, a biodiversidade e o direito das comunidades camponesas de controlar seus modos de produção.
Os princípios da Jaqueira vem da natureza da mulher... Onde ela era o centro da sociedade, a mãe que cuidava, zelava e organizava as comunidades
Economia que brota de afetos
As feiras agroecológicas são um dos eixos centrais de atuação da Jaqueira e já acolheram mais de 200 empreendimentos. Em Salvador, as mulheres descem do campo, como quem leva flores e frutos nas mãos, ocupando espaços urbanos com alimentos vivos e saberes ancestrais.
“As organizações das feiras são baseadas em autogestão, cooperação e solidariedade. Isso constrói impacto na autonomia financeira das mulheres e na geração de renda direta. Também produz histórias, deposita afetos em suas produções, reduz o índice de vulnerabilidade e dependência masculina, além de fortalecer a autoestima”, diz Crys.
O modelo de organização inclui divisão de tarefas por afinidade ou território, rodízios, gestão coletiva dos recursos e formações sobre precificação justa, comunicação e economia feminista. A produção, que vai de alimentos a biojoias, é feita coletivamente e circula em redes curtas de comercialização.
“Esse protagonismo reforça o papel das mulheres como agentes de transformação social, contribuindo para a construção de territórios mais justos, sustentáveis e inclusivos. Por meio das rodas de conversa, oficinas e intercâmbios com o público urbano, as agricultoras ampliam sua rede de solidariedade e aprendizado, gerando processos contínuos de empoderamento e auto-organização coletiva”, afirma a coordenadora.

Desenvolvimento que nasce do território
A Jaqueira é, também, um projeto de desenvolvimento territorial enraizado na realidade local. Antes da associação, muitos produtores não tinham onde escoar sua produção. Hoje, as feiras itinerantes e os canais de venda direta ampliam a renda e conectam o campo à cidade.
"É o principal ponto que a gente tem de comercialização, de gerar renda e inclusão social produtiva. Hoje a gente está fazendo feiras territoriais onde a galera pode expor seus produtos, dando visibilidade às suas produções e também tendo processos de comercialização. O público passa a conhecer seus produtos e começa a fazer encomendas com os produtores”, diz Daniel.
Ao mesmo tempo em que colhe, a Jaqueira aduba, com uma atuação territorial que vai além da venda de alimentos. Projetos como a compostagem transformam restos orgânicos em fertilidade para a terra, fechando ciclos produtivos com sustentabilidade.
“A gente faz bancos de coleta nas nossas feiras, e traz aqui para a Jaqueira para fazer um processo de compostagem. A gente transforma em adubo, devolve para a terra o alimento que ela nos forneceu. Esse composto é doado para escolas, para a prefeitura e para os jardins. Também fazemos campanhas de doação nas feiras para incentivar a compostagem”, relata Daniel.

Além disso, as ações se somam à reciclagem de lixo, com o reaproveitamento de materiais em produtos orgânicos e parcerias que fortalecem as redes solidárias.
“Todos os resíduos a gente não joga no lixo; os levamos para uma associação de catadores. O material recolhido é utilizado em oficinas de educação ambiental ou encaminhado para as cooperativas. Alguns deles a gente faz o processo de reaproveitamento. Por exemplo, o que sobra a gente faz o Eco-sabão, que é utilizado aqui na Jaqueira. Já o excedente comercializamos nas nossas feiras”, detalha Daniel.
Educar para resistir: a escola agroecológica
A trajetória da Jaqueira demonstra que a educação do campo não é apenas um direito, mas uma ferramenta de emancipação. A Escola Agroecológica Jaqueira é um dos marcos mais importantes da associação: um laboratório vivo de educação popular, onde a agroecologia se entrelaça à ancestralidade e às lutas sociais.
“A proposta pedagógica da escola se pauta nos princípios da Educação do Campo, inspirada em autores como Paulo Freire, Dermeval Saviani e na epistemologia dos saberes populares. As aulas acontecem em formato de vivências, oficinas, rodas de conversa, mutirões e itinerâncias nas comunidades, conectando teoria e prática, ciência e tradição”, relata Crys.
A escola é campo de estágio e pesquisa para cursos como Educação do Campo, Serviço Social e Agroecologia, em parceria com universidades como a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e o Instituto Federal da Bahia (IFBA). Também recebe crianças, promovendo consciência política desde cedo com hortas escolares, cantigas da roça e atividades lúdicas.

“Um dos principais focos é a formação continuada de educadoras populares, mulheres do campo que, além de cultivar a terra, cultivam saberes e lideranças. A partir das experiências locais e das demandas do território, essas mulheres se tornam multiplicadoras de conhecimentos agroecológicos, agentes políticas e referências comunitárias”, resume a coordenadora.
A moeda que gira
O futuro da Jaqueira está também na expansão do uso da Moeda Jaqueira, inspirada nos princípios da economia solidária, essa moeda fortalece os laços entre os membros da associação e circula riqueza dentro do território. Mais do que um meio de troca, ela funciona em complementaridade ao real, trazendo autonomia comunitária e resistência ao modelo financeiro excludente, afirma Crys.
“A circulação da moeda é restrita aos participantes da associação, que são cadastrados como empreendimentos, fortalecendo os laços comunitários. Essa moeda fortalece a economia interna, incentivando o consumo interno, dinamizando a produção, promovendo a equidade, valorizando os trabalhos não reconhecidos, aqueles que estão em ainda em extrema invisibilidade”, explica.

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