Três anos após naufrágio em Mar Grande, sobreviventes tentam superar e retomar a vida | A TARDE
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Três anos após naufrágio em Mar Grande, sobreviventes tentam superar e retomar a vida

Publicado segunda-feira, 24 de agosto de 2020 às 06:00 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Ashley Malia, com colaboração de Victor Rosa
Naufrágio em Mar Grande completa três anos nesta segunda-feira, 24 | Foto: SSP | BA
Naufrágio em Mar Grande completa três anos nesta segunda-feira, 24 | Foto: SSP | BA -

Ocorrido em agosto de 2017, o naufrágio da lancha Cavalo Marinho I, durante a travessia Mar Grande-Salvador, completa três anos nesta segunda-feira, 24. A tragédia deixou 19 mortos. Atualmente, os sobreviventes e familiares das vítimas tentam seguir a vida da melhor forma possível.

Mesmo buscando superar o trauma, alguns sobreviventes contam que suas vidas mudaram completamente após o naufrágio, causando traumas diversos como medo da travessia e tensão ao ver o tempo chuvoso se aproximar, mesmo que estejam em terra firme. Com o acidente completando mais um ano, chega a ser inevitável não lembrar dos momentos de desespero e sofrer pelas perdas.

Acostumados a fazer a travessia, muitas vezes, diariamente, algumas das vítimas já se conheciam e tornaram-se amigas, de tanto se ver no transporte marítimo. Elenira Alcântara da Silva, 43 anos, é uma das sobreviventes do naufrágio e contou, em entrevista ao Portal A TARDE, que passou 11 anos fazendo a travessia, vendo sempre as mesmas pessoas.

“De pessoas próximas a mim, morreram três”, contou ela, que precisou fazer acompanhamento psiquiátrico no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) por conta da depressão. Segundo Elenira, o tratamento não resolveu, já que precisava fazer a travessia todos os dias para manter o emprego de diarista em Salvador.

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Naufrágio em Mar Grande completa três anos nesta segunda-feira, 24 | Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE

“Abandonei minha casa própria e vim morar de aluguel em Salvador. Eu não consegui mais fazer a travessia todos os dias, é mais devastador do que as pessoas podem imaginar. Eu só sofri algumas lesões, mas a minha maior lesão é na alma. Porém, a gente tem que continuar vivendo, não é?”, relatou ela, que mora na capital baiana junto com a filha, de 22 anos.

Três anos após o naufrágio, Elenira conta que as marcas continuam. Para ela, podem se passar 30 anos e sempre vai ser difícil, não só ao completar mais um ano desde a tragédia, mas sempre que o tempo fica chuvoso. No prédio onde trabalha como diarista, Elenira consegue ver o mar e, toda vez que o vê quando o tempo fecha, ela reza para que nada aconteça.

Eu gostava muito de estar em contato com o mar. Agora o vejo como uma arma.

“Você não esquece, você lembra o tempo todo do momento, do desespero das pessoas, da hora que os corpos começaram a boiar do seu lado. Não têm palavras para explicar, é devastador. Eu mudei e minha vida mudou por causa disso. Eu me fechei, estou outra pessoa, não tenho mais o mesmo brilho e alegria que eu tinha. Eu gostava muito de estar em contato com o mar. Agora o vejo como uma arma, que nas mãos de pessoas como Lívio Galvão pode matar, como matou”, descreveu.

Atravessar na busca por oportunidades

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João Lucas é um dos sobreviventes da tragédia | Foto: Arquivo Pessoal

Assistente social formada, Elenira nunca teve a chance de trabalhar na ilha e, por isso, foi contratada como diarista. “Sou lavadeira e passadeira, nunca tive oportunidade na minha ilha, essa é a realidade de lá”.

A busca por melhores oportunidades de emprego e estudo é uma das grandes motivações para as travessias de Mar Grande para a capital baiana. É o caso de João Lucas dos Santos, 24 anos, que mora em Mar Grande e faz a travessia diariamente para frequentar a faculdade onde estuda.

No dia do acidente, ele relatou que estava dormindo na parte de baixo da lancha, como de costume, já que sempre fazia a travessia no horário das 6h30.

“Estava muito cansado e fui na parte de baixo dormindo. Uns 10 minutos depois aconteceu. Foram duas ondas. A primeira me molhou e a segunda onda me fez cair pela janela, neste rápido momento eu só vi uma luz. Depois disso eu despertei e nadei para ficar em cima da lancha, ajudei algumas pessoas. Cheguei a salvar a médica que fez o parto da minha mãe para eu nascer”, relatou o jovem.

A vida após o trauma

Para Elenira, a força para superar o trauma veio da própria filha. Ela contou que a vida mudou completamente após o acidente e, atualmente, morando em Salvador, sente que está em um lugar estranho, já que é na ilha onde estão os amigos e a família.

“Agora eu sou soteropolitana, mas antes eu era mar-grandense e gostava de ser”, contou ela, que chega a passar seis meses sem ir em Mar Grande, por conta do medo do mar.

“E ser mãe solteira não é fácil, principalmente em um lugar onde você não tem parente e não conhece ninguém. Até hoje continua sendo um lugar estranho. Eu tirei forças de algum lugar, foi a força de minha filha, tive que levantar a cabeça”, afirmou.

João Lucas relatou que é difícil superar o momento, mas hoje está tranquilo, já que trabalhou muito a própria mente e continuou viajando por causa da faculdade. Segundo ele, o trauma é revivido durante o inverno.

“Quando pego uma lancha no inverno e ela balança, tem vezes que chego a chorar. Quando se aproxima da data do acidente também fico triste, revivendo o dia”, contou.

Respostas que nunca chegaram

Tanto Elenira quanto João Lucas nunca foram indenizados pela tragédia. A diarista pontuou que nunca teve resposta de ninguém. Ela chegou a entrar com um processo na Defensoria Pública, porém muito atrasado, pois, segundo ela, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) ficou sumido durante um ano.

“Eu sou uma das pessoas que entraram por último com o processo. A resposta é muito demorada. Fui para uma audiência de conciliação apenas, mas nunca soube o resultado”, declarou Elenira.

Já João Lucas tinha desistido de correr atrás da indenização, mas procurou uma advogada depois. “Tinha deixado tudo isso pra lá, da questão da indenização. Mas as pessoas começaram a falar e eu procurei uma advogada. Pelo que ela comentou, tudo indica que devo ficar numa expectativa boa sim e que já é uma causa ganha. Resta esperar”, concluiu o jovem.

Julgamento

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Julgamento foi realizado na última quinta-feira, 20 | Foto: Sg. Wanessa Lira | Divulgação TM

>> Engenheiro, proprietário e empresa são condenados por naufrágio da Cavalo Marinho I

Na última quinta-feira, 20, o Tribunal Marítimo (TM), no estado do Rio de Janeiro, condenou Henrique José Caribé Ribeiro, Lívio Garcia Galvão Júnior e a CL Empreendimentos EIRELLI-EPP por dolo eventual - quando se tem noção do risco, pelo naufrágio da lancha Cavalo Marinho I. A sessão ocorreu quase três anos após o acidente, que deixou 19 pessoas mortas e 59 feridas, em 24 de agosto de 2017.

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