ESPECIAL OLHAR CIDADÃO
Pessoas com deficiências ocultas enfrentam discriminação
Episódio ocorrido em loja de Feira de Santana chamou atenção para o assunto
Por Jane Fernandes
Olhares atravessados e comentários questionadores, mesmo que não direcionados claramente a eles, fazem parte do cotidiano de Rosemary da Silva Oliveira e seu filho Gabriel, de 15 anos. Quem estranha a presença do adolescent e nos assentos preferenciais do transporte público nem observa a carteira e o colar de identificação usados por ele para indicar que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Se as violações dos direitos das pessoas com deficiência (PcD) acontecem com cadeirantes e outros grupos nos quais a condição é visível, torna-se ainda mais comum quando a deficiência apresentada não é imediatamente identificada. Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva no começo do ano em 11 regiões metropolitanas, incluindo Salvador, apontou que 77% dos PcDs já viveram ao menos uma situação de preconceito em seus deslocamentos.
Rosemary conta que embora as situações nos transportes, incluindo o por aplicativo, sejam as mais recorrentes, ela encontra dificuldades para garantir o atendimento prioritário de Gabriel até mesmo em serviços de saúde. “Ele é quietinho, ele é na dele. O celular tá ali na mão dele, tem uma aguinha para beber, tem uma merendinha para comer, ele fica ali quieto”, destaca, por acreditar que se ele fosse agitado as pessoas não duvidariam tanto do seu direito à prioridade.
O atendimento prioritário e a reserva de assentos no transporte público a pessoas com TEA foram adicionados à Lei 10.048/2000 em julho deste ano, mas outras deficiências ocultas estão contempladas desde a redação original. São exemplos a surdez, a baixa visão, a deficiência intelectual e alguns tipos de deficiência física, uma das citadas no decreto 5296/2004 (regulamentador da Lei 10.048) é referente ao público que usa bolsa de ostomia.
O documento fixa limites de perda auditiva e visual para a concessão de prioridade e preferência, e determina os critérios para enquadramento da deficiência mental, que precisa ter se manifestado antes dos dezoito anos. Além de “funcionamento intelectual significativamente inferior à média”, a pessoa tem de apresentar “limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: comunicação; cuidado pessoal; habilidades sociais; utilização dos recursos da comunidade; saúde e segurança; habilidades acadêmicas; lazer; e trabalho”.
“Ele sempre usou a identificação, só anda com a carteirinha pendurada no pescoço”, ressalta Rosemary, explicando que o cordão tem a estampa de quebra-cabeça, um símbolo do autismo.
Em julho deste ano foi sancionada a Lei 14.624, que institui o “cordão de fita com desenhos de girassóis como símbolo nacional de identificação de pessoas com deficiências ocultas”, ressaltando que seu uso é opcional e não dispensa a apresentação de documento comprobatório, caso solicitada.
Episódio em loja produziu debate
O preconceito contra pessoas com deficiências ocultas e outras condições invisíveis ficou em evidência nos últimos dias após um caso ocorrido em Feira de Santana. Após apresentar a carteira de identificação do filho, que está no espectro autista, Karla Gurgel solicitou prioridade e foi atendida.
No entanto, ao final do atendimento, a funcionária teria dito à colega que não passasse essas bombas para ela, gerando a indignação da mãe.
O vídeo gravado por Karla repercutiu nas redes sociais, provocando um posicionamento do apresentador Marcos Mion, cujo filho mais velho tem Transtorno do Espectro Autista. A funcionária divulgou vídeo alegando que “bomba” é um jargão interno e sua demissão foi anunciada pela Riachuelo do Shopping Boulevard. Mion destacou a responsabilidade das empresas na capacitação das equipes, reprovando a demissão.
A presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Comped), Silvanete Brandão, ressalta que a barreira encontrada pelas pessoas com deficiências não visíveis é ainda maior.
Falta de preparo
“A pessoa tem que usar o cordão, tem que mostrar uma carteirinha (de identificação), tem que estar o tempo todo reafirmando eu sou uma pessoa com deficiência. E o que a gente sente é que os lugares de atendimento, os estabelecimentos, não estão preparados ainda para trabalhar com a diversidade”.
A capacitação de equipes de atendimento ao público para lidar adequadamente com PcDs e pessoas com TEA é oferecida pela Apae Salvador, mas a maior parte das empresas procura apenas após uma ocorrência ou notificação de órgãos de controle.
“Nós temos percebido um crescimento do número de empresas que não esperam esse tipo de situação ocorrer e já querem preparar os seus trabalhadores”, completa a gestora de Assistência Social, Jaqueline Braz.
Um exemplo de empresa que se antecipou na parceria com a Apae é o HiperIdeal, atualmente com 23 lojas em Salvador. Segundo a gerente de Treinamentos, Patrícia Miranda, dois funcionários de cada unidade fizeram essa capacitação no mês passado e atuarão como multiplicadores para os demais integrantes da equipe, além de estarem aptos a atender alguma demanda mais específica, como a comunicação em Libras (Língua Brasileira de Sinais).
Desrespeito a garantias deve ser denunciado no Disque 100
Falta de acessibilidade, situações discriminatórias e problemas diversos no acesso a serviços podem ser denunciados pelos PcDs, pessoas com TEA e portadores de outras condições especiais no Disque Direitos Humanos – Disque 100. Quando o desrespeito aos direitos ou tratamento preconceituoso ocorrer mediante uma relação de consumo, o Procon (Superintendência de Proteção e Defesa do Consumidor) também pode ser acionado.
No caso da loja Riachuelo, de Feira de Santana, o Procon enviou uma série de questionamentos à empresa, com prazo de dez dias para o posicionamento (contando a partir do dia 17 deste mês). Preliminarmente, o diretor de fiscalização do Procon-BA, Iratan Vilas Boas, considera que a situação pode ser caracterizada como discriminação e vício (erro) no atendimento.
Entre os questionamentos enviados pelo Procon à empresa, Vilas Boas cita “quais foram as regras e critérios estabelecidos pelo fornecedor para atendimento de pessoas com deficiência” e “quais os critérios utilizados para identificar a pessoa que possui um direito de atendimento prioritário preferencial”.
“Nós vamos ouvir a empresa em relação ao que aconteceu e se o Procon julgar que o fato atacou a legislação consumerista vamos aplicar as penalidades cabíveis. Precisamos autuar, abrir um processo administrativo e garantir o direito de ampla defesa e contraditório da empresa”.
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