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São João no Atarde
24/06/2024 às 7:00 • Atualizada em 25/06/2024 às 13:59 - há XX semanas | Autor: Kian Shaikhzadeh | Especial para o Portal A TARDE

SÃO JOÃO

Tradição em comunidade: como indígenas na Bahia celebram o São João

Portal A TARDE acompanhou celebrações juninas na Aldeia Kiriri, localizada próximo ao município de Ribeira do Pombal

Povos originários da Aldeia Kiriri celebram São João com ritos que envolvem toda a comunidade
Povos originários da Aldeia Kiriri celebram São João com ritos que envolvem toda a comunidade -

Por todo o nordeste, celebrações de São João reúnem pessoas em espírito alegre e festivo. Não seria diferente na Aldeia Kiriri. A 320 km de Salvador, próximo ao município de Ribeira do Pombal, o Território Indígena Kiriri começou a ser retomado nos anos 1980, quando o escalamento de tensões entre indígenas e fazendeiros levou à intervenção da Polícia Federal e FUNAI que asseguraram um território de 123 km² para que os Kiriri pudessem viver e preservar suas ricas tradições.

Lembro que a primeira vez que eu vi as tradicionais celebrações juninas do povo Kiriri foi no status de Whatsapp de um amigo indígena da comunidade. Já fazia três anos que eu visitava a aldeia, mas nunca tinha visto nada assim. Dezenas de pessoas alegres carregando uma árvore inteira no meio da roça, em meio àquele sol todo e, pela noite, colocando fogo na base dela. Ainda por cima, o topo da árvore estava cheio de doces. “O que é isso?”, perguntei. “Fogueira de árvore”, me disse João Kiriri.

No ano seguinte, recebi um convite para acompanhar as celebrações do Dia dos Povos Originários na Aldeia Kiriri, mas percebi que eu não ia conseguir ir na data. Falei então a Célio Kiriri, uma das lideranças, que queria saber quando é que tinha de novo a tal “fogueira de árvore”. Descobri que era no período de São João, e assim me programei para ir.

Chego na aldeia dia 19 de junho, e em um dos meus primeiros dias aqui me levam em uma festinha de São João na Escola Estadual Indígena José Pedro Batista. Há um bem-servido almoço para os convidados, com panelões com arroz, feijão, carne, quiabo e batata doce, além de guloseimas juninas diversas.

O ambiente está todo decorado. Além das bandeirolas que enchem o céu de cor, elementos tradicionais da cultura Kiriri estão dispostos na entrada da escola: maracás, vasos de barro, esteiras de palha e raízes de mandioca.

Ao Portal A TARDE, a professora Andréia Kiriri explica o papel das escolas indígenas em trazer para o dia a dia das crianças a vivência de seus antepassados e anciões.

"Nas nossas escolas, a gente faz uma pequena prévia da quadrilha e dos alimentos tradicionais que estão relacionados ao plantio e cultivo que temos em nosso território. Muitos aqui fazem o plantio durante esse período e a partilha de alimentos é um elemento de participação comunitária da celebração. De forma antecipada estamos articulando para que todos da comunidade cheguem junto. Cada estudante traz algum dos alimentos que são colhidos pelos pais para poder todo mundo fazer o panelão nesse dia de comemoração, mostrando a fartura da nossa comunidade".

Hauyra prepara sua filha Jhennyfy para a celebração junina escolar
Hauyra prepara sua filha Jhennyfy para a celebração junina escolar | Foto: Kian Shaikhzadeh | Acervo pessoal

Em todo o Brasil, escolas indígenas operam segundo a legislação do MEC que prevê ações afirmativas das identidades étnicas juntamente ao currículo escolar. Segundo o MEC, “isto se refere tanto ao currículo quanto aos modos de administrá-la”. Assim, escolas indígenas no Território Kiriri têm promovido competições de jogos indígenas, apoio a celebrações culturais e, claro, as festinhas de São João.

“É imensa a alegria de pensar na felicidade das crianças”, comenta Andréia Kiriri com sorriso no rosto. “Sei que ontem ficamos com o pique delas! É muito gratificante, porque a gente tá proporcionando isso pra nossa comunidade, para nossas crianças. Pensa na felicidade deles”, exclama.

Esse senso de empreendimento comunitário no qual realizam cada atividade, começou a me chamar muito a atenção. Em meu caminho para a aldeia, no ônibus que saiu de Salvador, conversei com uma senhora sobre minha ida à aldeia. Ela conhece os Kiriri de ter visto alguns deles em novenas no vilarejo da família dela.

Comento que estou curioso para ver na aldeia o jogo do “páu de cebo”, querendo saber se ela conhecia algo assim. Ela me informa que tinham também essa atividade na pequena comunidade dela. Que era divertido quando acontecia, mas há anos não se tem mais. “Não tem quem organize”, lamentou.

Uma das coisas que me intrigam, no contato com os Kiriri, é pensar “por que eles ainda têm suas tradições comunitárias presentes enquanto por toda parte vemos isso desaparecendo?” Ou ainda, “o que que eles têm que a gente não tem?”. Reconheço, na conversa com a senhora do ônibus, uma pista: o papel das lideranças locais nessa preservação das práticas festivas. Mas é no convívio que vou me dar conta de ainda outros ingredientes: senso comunitário, preservação da natureza e amor pelas tradições.

Fogueiras de árvore

Imagem ilustrativa da imagem Tradição em comunidade: como indígenas na Bahia celebram o São João
| Foto: Kian Shaikhzadeh | Acervo pessoal

A realização das fogueiras de árvores tem um significado espiritual. É comum que elas sejam oferecidas para pagar promessas a santos diversos. Há também um elemento de jogo e brincadeira nisso. Corta-se uma árvore inteira, levam-na até o local onde vão levantar e enchem o topo com todo tipo de brindes. Abóbora, abacaxi, goiabada, sardinha enlatada, sabão em pó, garrafas de óleo, melancias, pipoca doce e fitinhas que equivalem a premiações especiais que podem ser cinquenta reais em dinheiro, ou uma galinha. O que vai em cima da árvore depende de quem organiza e provê os prêmios.

Colocam feixes de madeira no pé da árvore e de noite, em hora marcada, se acende essa fogueira na base da árvore. É só a base que queima, mas nisso de queimar ela vai enfraquecendo e envergando. Enquanto queima, crianças jovens e adultos animados esperam embaixo a hora em que a árvore vai ceder e cair. Quando a árvore cai, essas dezenas de pessoas correm pra cima pra arrancar o seu brinde. É pura diversão, garanto.

A escolha da data da fogueira varia pela afinidade com diversos santos padroeiros. Uns dedicam fogueira a São José, outros a Santo Antônio, São João, São Pedro ou Santa Luzia.

Na véspera de São João, acordo com meu amigo Hênio Krychaòbó botando música junina bem alto na caixa de som e dançando pela casa. Já faz quatro dias que estávamos em festa!

Fomos para casa de Josué Kiriri, assistente administrativo em uma escola, que reuniu um grupo de quarenta e três adultos para buscar uma árvore para a fogueira de frente à sua casa. É uma forma de pagar uma promessa que ele havia feito a São João.

"Meu filho, quando nasceu, tinha muitos problemas de falta de ar. A gente é muito devoto a São João e acreditamos na nossa cultura. Então fizemos um pedido que se o santo desse saúde ao meu filho, nós colocávamos uma fogueira na véspera de São João. E graças a Deus hoje meu filho está com doze anos já, e, nesse tempo todo, a gente sempre esteve com obrigações, mas é a primeira vez com fogueira de árvore." Em outros anos, Josué pagou sua promessa com potes de "bureiê", uma tradicional bebida Kiriri conhecida como "vinho de milho", que, apesar do nome, não é alcoólica.

Chego na porta da casa de Josué e o clima é tanto festivo quanto solene. O ritual de busca da árvore para fogueira começa com a tradicional Zabumba Kiriri. Dois flautistas e dois percussionistas tocam melodias alegres e ritmadas, enquanto os presentes, um por um, oferecem obrigações espirituais aos antepassados.

Quando terminaram essa primeira etapa, o grupo foi caminhando da casa de Josué à roça, em busca do pé de árvore ideal para a fogueira. Devemos ter caminhado por dois quilômetros quando o grupo de quarenta adultos e dez crianças parou próximo a um pé de árvore. Ela tinha sido escolhida.

É preciso descrever o espírito alegre dessa caminhada. Durante todo o percurso os zabumbeiros tocavam e as pessoas conversavam e faziam piadas umas com as outras.

Tendo escolhido a árvore, os quatro músicos rezam e dão três voltas ao redor da árvore. Digo que rezam porque essas músicas de flauta e tambor são cânticos e preces. A ação de circundar a árvore também tem um significado espiritual e foi repetida em alguns momentos-chave do processo.

Imagem ilustrativa da imagem Tradição em comunidade: como indígenas na Bahia celebram o São João
| Foto: Kian Shaikhzadeh | Acervo pessoal

Força da comunidade

Após cumprir as obrigações espirituais, cortam a árvore. Aí é descobrir toda a logística de como vão carregar uma árvore inteira de volta por mais dois quilômetros. Essas quarenta pessoas vão se revezando e carregando a árvore por todo o caminho de volta até o local combinado.

Com a árvore no chão, o anfitrião provê os brindes e esse grupo se une para amarrar tudo no topo da árvore. São muitas pessoas trabalhando juntas, o trabalho se conclui rápido.

Por fim, resta cavar um buraco fundo o bastante pra sustentar a árvore e mais uma logística coletiva para levantá-la. Me comoveu muito uma criança de uns oito anos que foi correndo “ajudar” a levantar a árvore. Vendo todos aqueles jovens e adultos, ela não poupou esforços e deu sua contribuição.

Esse senso comunitário é um dos elementos que possibilita a preservação dessas alegres tradições. Outro desses elementos me veio à tona em conversa com o Pajé Wilson Kiriri, a liderança espiritual da comunidade Alto da Jurema. Perguntei de forma direta mesmo, “o que você tem que a maior parte do Brasil não tem?”. Ele me disse o seguinte:

"Aqui temos tudo natural. Porque tem regiões por aí em que não existe mais madeira pra fogueira como a gente tá tendo aqui. Temos abundante aí, tanto pro páu de cebo quanto pra fogueira de árvore, e aí tem pra escolher. Tem pra adulto, tem pra criança, a depender do porte da árvore".

Imagem ilustrativa da imagem Tradição em comunidade: como indígenas na Bahia celebram o São João
| Foto: Kian Shaikhzadeh | Acervo pessoal

Ouvindo os mais velhos, é recorrente que digam que quando iniciou o processo da reconquista, “a terra estava pelada”, se referindo ao estado desmatado em que estava no território. “Hoje a Mãe Terra está vestida”, ouvi eles dizendo.

Essa preservação da natureza é uma escolha. Uma pela qual os indígenas Kiriri tiveram que lutar e continuam lutando, como tantos povos indígenas espalhados pelo Brasil e pelo mundo.

Além da presença de lideranças locais que organizam a comunidade, do senso comunitário que anima as suas ações e a presença de reservas naturais, que viabilizam e sustentam diversas práticas ancestrais, é evidente o amor que tantos e tantos Kiriri têm pela sua cultura.

Vocês, indígenas Kiriri, têm um amor pelas suas tradições e cultura que me inspiram. Vocês, amigos Kiriri, tem um senso de comunidade que me intriga. Que faz eu me perguntar como posso ser uma pessoa melhor. Como posso me dedicar mais à comunidade do bairro onde moro. Vocês me fazem querer parar e escutar em detalhes a história de vida de meus antepassados, minha mãe e pai, meus avós, entender de onde eles vieram para saber de onde eu vim. E eu sei das dificuldades. Sobre como cada vez mais tem pessoas deixando a cultura de lado. Como desrespeito e desavenças são desafios em qualquer canto que você vá. Mas eu de verdade olho pra comunidade de vocês e me espanto, e me inspiro, e busco saber e aprender mais pra poder, quem sabe, repassar e compartilhar com quem encontro por aí.

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| Foto: Kian Shaikhzadeh | Acervo pessoal

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