"Funcionários de estabelecimentos são 'treinados' para tratar pessoas negras de forma diferente", afirma advogado | A TARDE
Atarde > Brasil

"Funcionários de estabelecimentos são 'treinados' para tratar pessoas negras de forma diferente", afirma advogado

Publicado quinta-feira, 14 de novembro de 2019 às 19:39 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Ashley Malia
Crispim Terral foi vítima de racismo em fevereiro deste ano, na Bahia | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
Crispim Terral foi vítima de racismo em fevereiro deste ano, na Bahia | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE -

Mesmo após 131 anos da suposta Abolição da Escravatura no Brasil, o País ainda enfrenta resquícios desse crítico momento vivido pela população negra. Ao longo do ano, diversos casos de racismo ganharam repercussão na mídia, alinhados a dados que comprovam o quanto a questão racial deve ser uma temática cada vez mais debatida entre a sociedade brasileira, principalmente dentro de empresas, estabelecimentos e órgãos do Estado.

Representando 54% da população, os negros são 71,5% das pessoas assassinadas a cada ano no Brasil, segundo o Atlas da Violência 2018, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados comprovam que a população negra está mais exposta à violência no Brasil. Durante o ano de 2019, o País assistiu alguns acontecimentos emblemáticos, que repercutiram nas grandes mídias e mobilizaram a sociedade para discutir o racismo institucional, presente na maioria das empresas e órgãos estatais.

Casos como o de Pedro Henrique Araujo, estrangulado até a morte por um segurança do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, em 14 de fevereiro deste ano; o do músico Evaldo Rosa, assassinado pelo Estado com mais de 80 tiros, enquanto se dirigia a um chá de bebê com a família, no Rio de Janeiro, em 7 de abril deste ano; e o de Crispim Terral, humilhado e agredido com um golpe conhecido como 'mata-leão' de um policial, dentro de uma agência da Caixa Econômica Federal, em Salvador, em 19 de fevereiro deste ano; despertam a dúvida se as empresas e órgãos são ou não responsáveis pelos casos de racismo que acontecem dentro desses estabelecimentos.

Após o caso ocorrido na Caixa Econômica Federal, em Salvador, a empresa afastou o funcionário acusado de racismo contra o empresário Crispim Terral, 34 anos. Entretanto, segundo a vítima, em nenhum momento a empresa demonstrou atenção ou apoio.

"Tinham vários funcionários da Caixa Econômica e nenhum deles se manifestou, todos eles cruzaram os braços para aquele momento trágico, quando poderia acontecer o pior. Esse tempo todo, não tive nenhum tipo de apoio, nenhuma ligação... Nada", relatou Crispim, nove meses após o ocorrido.

Violentado na frente da própria filha, Crispim relatou, em entrevista ao Portal A TARDE, que viveu momentos de tristeza e dor, que podem ser revividos a cada vez que ele assiste o vídeo ou descreve o caso. "Eu não esqueço. Isso aqui ficou registrado, juntamente com essa ferida que me dá forças para lutar pelos nossos irmãos negros nesse país, que sofrem e morrem só pelo fato de serem negros. É difícil ser negro no Brasil e na Bahia. É sobreviver", contou ele, emocionado.

De acordo com o advogado Vinícius Matos, membro da Comissão Especial da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), o afastamento de um funcionário envolvido em um caso de racismo não é o bastante, é apenas uma projeção natural dos fatos para um funcionário que cometeu um crime grave e a empresa foi lesada diante da repercussão nacional.

Imagem ilustrativa da imagem "Funcionários de estabelecimentos são 'treinados' para tratar pessoas negras de forma diferente", afirma advogado
Advogado Vinícius Matos ressalta que o afastamento de um funcionário envolvido em um caso de racismo não é o bastante

"Os estabelecimentos comerciais têm obrigação de garantir a segurança e bem-estar dos seus clientes. Havendo crime, ou até mesmo tentativa do crime, por parte dos seus prepostos, a empresa será obrigada reparar os danos morais na espécie in re ipsa, que é o dano moral presumido, por ser presumível a tristeza, o vexame, a aflição e a humilhação experimentada, surgindo, portanto, o dever de indenizar aos familiares do jovem Pedro Gonzaga e a Crispim Terral", explicou o advogado.

Vinícius Matos ainda frisou que situações como as vividas por Crispim e Pedro Gonzaga são reflexos do racismo institucional no Brasil, "em que funcionários de estabelecimentos comerciais e policiais militares são “treinados” para tratar pessoas negras de forma diferente".

Autor do livro Oportunidades Invisíveis, publicitário, consultor em diversidade, fundador da Vale do Dendê e considerado um dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo em 2018, pela organização Most Influential People of Africa Descent (MIPAD), o publicitário Paulo Rogério Nunes, evidencia que o discurso da diversidade está muito grande entre as empresas atualmente, entretanto é necessário atuar e pensar nessa diversidade no modo 360, para que casos de racismo parem de acontecer dentro desses espaços.

Imagem ilustrativa da imagem "Funcionários de estabelecimentos são 'treinados' para tratar pessoas negras de forma diferente", afirma advogado
Paulo Rogério Nunes frisa que empresas devem pensar na diversidade de forma holística

"Envolve treinamento de funcionários, mudanças na sua cadeia produtiva para contratação de empreendedores negros e de grupos socialmente excluídos, para serem fornecedores, e da própria contratação de funcionários. O discurso não deve ficar apenas na parte publicitária. A diversidade deve ser encarada como algo 360, algo holístico, que passa por várias áreas da empresa, porque senão é apenas uma forma de vender o discurso da diversidade, mas não ter a prática real", ressaltou o publicitário.

Segundo Paulo Rogério, as empresas devem estar atentas às demandas da sociedade e incorporá-las, de maneira integrada, toda a sua cadeia produtiva, a política de contratação do corpo de funcionários, na publicidade e também na estrutura hierárquica dessas companhias.

O advogado Vinícius Matos ainda orienta que, diante de um caso de racismo, a vítima busque a criação de provas no momento do ato, através de gravação do áudio, filmagem, e sempre chamar a atenção das pessoas ao redor para que presenciem os fatos e para que possam testemunhar na delegacia ou em juízo. Além disso, o profissional recomenda que a vítima busque o respaldo de um advogado, que deverá orientar em relação às provas que devem ser apresentadas e também à punição que caberá ao criminoso.

Em outubro deste ano, o Ministério Público do Estado da Bahia denunciou o gerente do banco, acusado de racismo contra Crispim Terral. "É uma dor que dói na alma, mas olhei para os meus filhos, para esse Brasil, para a Bahia... Estamos aqui, firmes e fortes, na luta pela resistência", declarou Crispim.

Publicações relacionadas