ENTREVISTA – LIGIA AQUINO
‘Vivi um luto invisível; ninguém falava o nome da minha filha’
Criadora do Instituto do Luto Parental transformou a dor da perda da filha em luta por acolhimento às famílias que enfrentam perdas gestacionais
Por Divo Araújo

A dor de perder um filho durante ou após a gestação ainda é tratada com silêncio e despreparo no sistema de saúde brasileiro. Fundadora do Instituto do Luto Parental, Lígia Aquino relata que, após a morte da filha Laura no final da gravidez, enfrentou um processo marcado por desinformação e ausência de acolhimento.
A experiência pessoal com a falta de protocolos e o apagamento social levou Lígia não só a fundar a entidade, como também a contribuir de forma ativa para a elaboração da Lei de Humanização do Luto Materno e Parental, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em maio deste ano.
Em entrevista exclusiva ao A TARDE, Lígia avalia que a nova legislação é um marco, mas insuficiente sem a devida implementação. “A gente entende que deu o primeiro passo, e agora será necessário um trabalho intenso, principalmente na formação dos profissionais de saúde”, diz. Saiba mais na entrevista a seguir.
Você teve participação ativa na formulação da Lei de Humanização do Luto Materno e Parental, ao lado do hoje ministro Alexandre Padilha. De que maneira sua experiência pessoal com o luto contribuiu para evidenciar lacunas nas políticas públicas e fundamentar, com vivências concretas, a construção dessa legislação?
Toda a nossa experiência, no primeiro momento de assistência quando a Laura morreu, foi muito traumática. Foi a partir daí que eu idealizei primeiro a Casa Mães para Sempre, que depois se transformou na ONG. E, em 2020, a gente conseguiu chamar a equipe de Padilha, que era deputado na época, para desenvolver esses protocolos. O que percebi naquela ocasião é que havia uma necessidade de protocolos institucionais que ajudassem a equipe médica a se organizar e saber que tinha ali uma família em luto. Então, teve muita ligação, sim, principalmente depois que comecei a estudar e entender melhor como todo esse processo dificultou muito o nosso luto. Tudo foi muito traumático, para além da dor de perder a Laura e de não ter o nosso bebê ali, porque tiveram outras camadas de traumas somadas que dificultaram a nossa elaboração do luto. Tudo se somou e foi muito importante para esse trabalho com a equipe do Padilha, além dos outros coletivos. Porque a gente foi ali, cada coletivo, nomeando essa falta de protocolos e trazendo as experiências. Foi muito precioso, como um processo de construção coletiva mesmo.
A criação da Política Nacional de Humanização do Luto Parental representa um avanço importante. Mas o que ainda precisa ser feito para que essa política se torne efetiva na ponta, especialmente no SUS?
A lei é o primeiro passo. Até então, nenhuma família tinha esses direitos garantidos. O direito de estar numa ala separada, o direito de poder nomear o seu bebê, o direito de poder doar o leite. A gente entende que deu o primeiro passo e vai ser necessário um trabalho, primeiro, muito forte de formação dos profissionais de saúde. E no Instituto do Luto Parental a gente já trabalha há quatro anos formando profissionais. Mas agora vai precisar de um esforço massivo de formação e depois de cobrança de que a lei seja cumprida. Que o governo colabore fazendo a fiscalização e também destine verbas para as prefeituras formarem os seus profissionais. Então, o primeiro passo é que os profissionais tenham instrumentos e sejam fortalecidos com essa formação para a humanização do luto. E que as famílias consigam ter os direitos garantidos. Enfim, é uma força em conjunto - o setor público, o setor privado e instituições como nós, que são os coletivos de luto, que estarão também ajudando nessa frente.
O Instituto do Luto Parental, criado pela senhora, tem como missão humanizar o luto materno e parental nos casos de perdas gestacionais, perinatais, neonatais e infantis. Como essa missão se concretiza, na prática?
Primeiro, surgiu a Casa Mães para Sempre, ali em 2018 para 2019. A Laura morreu em 2015 e eu passei uns dois, três anos que foram muito difíceis. A gente passou por bastante coisa na maternidade. Eu não conseguia colocar o nome dela na certidão. Eu sentia muita dificuldade, porque era como se vivesse um luto invisível. Ninguém falava o nome dela no meu trabalho, nem meus amigos ou minha família, exatamente pelo medo de me deixar triste. Eu pensei muito nesse lugar para a gente poder se unir, fazer conversas, e aí começamos o Casa Mães Para Sempre com as rodas de apoio. A nossa primeira roda foi no Dia das Mães, de 2019. Esse foi o primeiro pilar do instituto, que foi o acolhimento. Só o fato de você falar o nome do bebê, poder conversar, já traz um pertencimento para essa família. Depois, em 2020, começamos a formação para profissionais de saúde. Nós fomos apoiados por um instituto alemão, chamado Mali. Esse instituto custeou duas turmas. A primeira foi a Casa Ângela, que é uma instituição de São Paulo. Depois, veio o Instituto Campo Limpo. Aí começamos essa formação, que é bem extensa. São de três a quatro meses, e passam por questões sociais e culturais, protocolos institucionais, rituais de despedidas. Outro pilar nosso são as políticas públicas. É esse trabalho que, desde 2020, a gente vem desenvolvendo, não só com o Padilha, mas com outras deputadas, outras pessoas que estão engajadas na parte de políticas públicas. E tem um quarto pilar, que é o de informação. Nós lançamos um livro escrito pela Damiana Angrimani, que é a nossa psicóloga coordenadora, com os direitos das famílias, com cartas de famílias, com acolhimento. Essa é uma frente muito importante, porque as famílias que passam por um luto estão muito vulneráveis, e às vezes nem sabem como lidar com ele, o que fazer, quais são os seus direitos. Então, esses são basicamente os quatro pilares do Instituto. Nós viramos Instituto do Luto Parental em 2022, antes nós éramos a Casa Mães para Sempre.
Quais são os relatos mais comuns de mulheres e famílias que passam por esse tipo de perda? O que elas mais sentem falta no acolhimento oferecido hoje?
Acho que, em primeiro lugar, o que nós sentimos é a falta de validação de que elas são mães. A falta de validação de que existe uma vida, de que foi um filho. E a segunda questão, que agora com o projeto de lei a gente entende que vai melhorar muito, é a assistência. Eu acho que é uma assistência mais humanizada, mais preparada, mais acolhedora. Porque a assistência pode ser um processo que dificulta, como foi o nosso caso, meu e do Tales. Ou pode ser um processo que te acolha e que vai ajudar aquela família a conseguir lidar de maneira melhor com essa dor.
A senhora acredita que ainda há resistência entre os profissionais da saúde em reconhecer a dor das perdas gestacional e neonatal como um luto legítimo?
Eu não sinto que é uma resistência. Eu entendo que as famílias contam muito com a sorte de encontrar um profissional que consegue ali separar, mandar para um leito um pouco mais longe. Mas acredito que existam barreiras institucionais, porque o profissional também vive um luto. Ele também perde um bebezinho, um paciente, também é muito difícil para o profissional. E muitas vezes eles têm um tempo ali com aquela família, e o hospital não tem uma ala separada. Então, eles também precisam desse apoio e dessa estrutura institucional. Eu entendo mais como um conjunto de ações, que é preparar melhor o profissional de saúde. Os profissionais contam que, na formação, têm poucas matérias sobre esse luto. É preciso preparar melhor, trabalhar a comunicação compassiva, a humanização, e ao mesmo tempo trabalhar com a instituição uma estrutura para que esse profissional possa ter esse espaço. Acho que é mais o tempo e a estrutura física. É interessante pensar que, para a família, é o último momento com seu filho, e para o hospital não. Para o hospital é mais um leito, é mais um tempo que aquele paciente está ficando ali. É um trabalho em conjunto e de sensibilização principalmente.
Na sua opinião, esse tipo de conscientização e conteúdo já deveria fazer parte da formação dos médicos e profissionais de saúde em geral?
Sim, nós entendemos que falta. Se você pensar sobre os dados de 2023, por exemplo, foram 20 mil perdas neonatais no Brasil, 20 mil bebês que morreram. Isso sem contar as mulheres que perderam em casa e essas vidas não são contabilizadas. Se a gente pensar nesse número, e que os bebês infelizmente morrem diariamente, com certeza a parte acadêmica precisa de uma formação mais extensa em perdas neonatais, perdas gestacionais. Nós fazemos também um trabalho nas faculdades. Já fomos na Semana de Obstetrícia da USP, e os estudantes falam, às vezes tem uma ou duas matérias só sobre luto. É importante que tenha essa formação básica, e depois o profissional vai buscar uma formação mais extensa, Mas a base ali na formação na faculdade precisa melhorar sim, com certeza.
Mesmo garantido por lei, o direito à licença-maternidade em casos de natimorto ainda é pouco conhecido e muitas vezes negado. Como o Instituto Luto Parental tem atuado para garantir que essas mulheres sejam devidamente orientadas e respeitadas em relação a esse direito?
De fato, existe uma lei que garante que toda perda, a partir da vigésima semana, e aí tem o tamanho e o peso do bebê, essa mulher vai ter no mínimo quatro meses de licença maternidade. Em algumas empresas já são seis meses, mas no mínimo são quatro. Mas muitas mulheres não sabem, e pior, muitas empresas, incluindo o próprio RH, estão desinformadas. Até esqueci de comentar que a gente também faz um trabalho também com as empresas. No meu caso a empresa não sabia, a obstetra não informou e eu voltei a trabalhar com um mês. Eu estava com uma cesárea, imagina, com o leite descendo. Essa informação a gente já deixa clara nos nossos canais, e para todo mundo que tem dúvida também, mas já é lei garantida. O que nós lutamos é para que as mulheres que têm as perdas antes das 20 semanas, consigam um tempo maior. Muitas mulheres só têm 15 dias. E tem uma terceira questão que é, mesmo as mulheres que passam por perdas a partir da vigésima semana, mas que não são CLTs, às vezes são militares, estatutárias, elas também só tem 30 dias. O nosso esforço, e que agora com a mudança da lei, é que elas tenham os quatro meses no mínimo. A lei também não engloba licenças parentais na integralidade. A gente trabalhou mais com os protocolos institucionais, com o apoio psicológico da família.
A nova legislação estabelece uma diretriz nacional para a possibilidade de nomeação do bebê natimorto? Como a senhora avalia a importância desse reconhecimento simbólico para as famílias enlutadas?
Em setembro de 2023 já saiu um provimento que garante o direito a nível federal de nomear o bebê, e na lei aprovada também consta. Tem muita família que não sabe, mas agora já está na lei, é um direito mesmo para as famílias que perderam antes. No nosso caso a gente não tinha, e eu consegui mudar o documento. Tem um custo no cartório, e aí você vai e muda o documento, e coloca o nome do seu bebê, que é muito importante para a família.
A senhora relata que, após a perda de sua filha Laura, foi tratada como se ela nunca tivesse existido. De que forma o silêncio e o apagamento social afetam o processo de luto parental e dificultam a reconstrução emocional das famílias?
Nós sempre trazemos essa questão do pertencimento. Hoje tenho um segundo filho, o Gael, e o quanto é importante para as famílias serem vistas como pai e mãe desse bebê, e também até para os irmãos, para a família, para a ancestralidade ali. Tem muitas famílias que sofrem com essa falta de visibilidade, de que essa vida existiu. A gente sempre traz a importância, e sempre traz a necessidade de a gente falar dos nossos filhos. Porque, imagina, não tem nenhum nome para quem perde filho. Para quem perde um companheiro é viúva, viúvo, para quem perde um pai e uma mãe é órfão, mas não existe um nome de tão forte que é. A gente entende que trazer esse pertencimento, traz uma dignidade para esse processo de luto. Então é muito importante falar desse bebê. Por mais que você saiba que é um luto, trazer para a família o nome do filho, perguntar como a família está, falar o nome, perguntar se a pessoa quer conversar sobre isso, ajuda bastante no processo, e traz esse sentimento de pertencimento mesmo. É uma vida que existiu, que nunca vai ser esquecida, e que para quem perde é essencial que seja falado.
Homens e mulheres elaboram o luto parental de maneiras diferentes? O Instituto Luto Parental também acolhe os pais enlutados ou o luto masculino ainda é tabu?
Sim, os homens sofrem muito calados, porque tem essa questão estrutural, que traz a necessidade do homem ser forte, de cuidar de tudo. No meu caso, eu fiquei ali no hospital, e o Tales foi até o IML, até a delegacia, cuidou do sepultamento. Existe essa questão estrutural que dificulta muito para o homem, para ele se vulnerabilizar, para falar das emoções. As mulheres, naturalmente, já falam mais, já trocam mais, já se permitem chorar mais. Então, existe uma diferença grande, e cada vez mais a gente tem recebido pais, homens, voluntários, e entendido a importância de dar esse espaço. Já há algum tempo tem um projeto que é o Luto do Homem, que tem as rodas dos homens, dos pais, e aqui no Instituto, a gente, inclusive, mudou o nome. Mudou de Casa Mães para Sempre, para Instituto do Luto Parental, exatamente, para ser mais inclusivo, e olhar para esse homem, para esse pai, que muitas vezes está ali sozinho, resolvendo tudo.
O índice de separação de casais pós-perda acaba sendo muito alto também...
Essas separações acontecem por esse abismo que se abre ali. A mulher, muitas vezes, se sente sozinha, entende que o homem não está sofrendo, porque ele está mais calado. E muitas vezes, não, ele está ali sofrendo e não está demonstrando. Essa é uma questão de saúde pública, porque, se ocorrem mais separações, se não tem um acompanhamento psicológico dessa família, de maneira integral, homem, mulher, filhos, começam a acontecer outras questões, em decorrência do luto, que abalam ali a família. E que, muitas vezes, acabam indo para uma separação.
Para concluir, fala um pouco sobre a importância do trabalho voluntário?
Tem um trabalho muito bonito nosso, chama-se Tecendo Amor. São mais de 100 voluntárias crocheteiras que desenvolvem roupinhas bem pequenininhas para os bebês que falecem com um tamanho pequeno demais, e nem a roupinha de RN dá. A gente manda essas roupas para instituições, a gente já mandou aí para a Bahia, para Climério de Oliveira, para o Hospital das Clínicas. Essas famílias, têm essa despedida com uma roupinha, sabe. E traz uma dignidade ali, e também uma humanização, para essa despedida com esses bebês. E é um projeto todo voluntário. A gente tem o apoio das linhas Círculo, e estamos chamando a sociedade, as pessoas que querem colaborar, para apoiarem.
Raio-X
Ligia Aquino é mãe de Laura e Gael, idealizadora da Casa Mães para Sempre, hoje Instituto do Luto Parental. Após passar pela perda gestacional tardia de sua primeira filha, Laura, com 39 semanas de gestação, em 2015, fundou em 2019 o projeto social Casa Mães para Sempre, com o objetivo de acolher e apoiar as famílias enlutadas. É cofundadora e CEO da Iamaní Chás Orgânicos, uma das empresas apoiadoras da ONG, e atualmente está à frente do pilar de políticas públicas no Instituto.
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