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A origem do privilégio

Após pesquisa sobre antepassados, a jornalista baiana Helena Vieira identificou que eles tinham escravos

Publicado terça-feira, 24 de outubro de 2023 às 07:00 h | Autor: Tamires Silva*
Helena lançará livro sobre descobertas nesta quarta, 25
Helena lançará livro sobre descobertas nesta quarta, 25 -

Jornalista soteropolitana com passagem por grandes veículos do Brasil e do exterior, Helena Vieira traça um paralelo de 200 anos da história do Brasil com a história pessoal de seis gerações da própria família, uma linhagem de imigrantes portugueses, em Jussiape, a Cidade onde Nada Acontecia. A escritora relata com emoção ter descoberto o uso de mão de obra escrava pelos ancestrais no alto sertão da Bahia, fato comprovado por documentos e histórias orais.

O lançamento será amanhã, dia 25, 19h, na Livraria Escariz (Shopping Barra), com bate-papo com a autora e o marchand, fotógrafo e colecionador Dimitri Ganzelevitch. “A ideia de escrever este livro veio de um amigo, o Dimitri Ganzelevitch, quando lhe contei a história de como meus avós levaram toda a família de Jussiape para Salvador em 1937 em lombo de burro, trem e barco (o vapor de Cachoeira)”, conta Helena.

A autora conta que teve a ideia do livro após ver uma entrevista na TV norte-americana. “Nos anos 1990 eu morava em Nova York, quando um ex-professor da escola secundária escreveu As Cinzas de Angela, um livro que entrou na lista de best-sellers. Era um relato da história da família, imigrantes de origem irlandesa que, fugindo da fome, foi para os Estados Unidos. Lembro de um comentário que alguém fez na televisão de que era preciso entrevistar os mais velhos antes que eles perdessem a lucidez ou morressem. Aquilo me inspirou”, relata.

“Liguei para meu pai e fiz uma entrevista com ele sobre Jussiape, a cidade natal. Ali fiquei sabendo sobre como foi a transferência da família para Salvador, uma realidade totalmente diferente do contexto cosmopolita em que eu estava vivendo e olha que havia só uma geração de diferença entre eu e meu pai. Foi como se um clarão tivesse se aberto na minha mente. A semente foi plantada ali”, conta.

Foram dez anos de pesquisa por documentos no Arquivo Público do Estado da Bahia, somados aos relatos coletados com moradores – alguns quase centenários.

Misturando ensaio pessoal e relato jornalístico, em Jussiape, a Cidade onde Nada Acontecia, Helena faz um passeio ao longo de 200 anos da história do Brasil, do século 19 ao 20, por meio da história pessoal de seis gerações da família Vieira. Raimundo Magalhães Vieira, pai de Helena, era um homem cuja voz alta e peremptória causava trepidações e distanciamento dos filhos. No livro, Helena assume várias personalidades ao longo das páginas, na tentativa de compreender o pai.

“Quando eu tinha sete anos, por um motivo que só consegui vislumbrar quase quarenta anos depois, meu pai me deu uma surra de cinto que deixou hematomas nas pernas e um trauma difícil de superar. Eu passei a primeira parte da minha vida acuada e planejando escapar. Bem mais tarde e agora, escrevendo este livro, consegui resgatar o afeto que sempre senti por ele”, conta.

“Eu comecei estudando a história da família por curiosidade, porque gosto de ler sobre a história e porque achava que poderia descobrir algo que explicasse culturalmente meu pai. Quando eu comecei o projeto, não tinha a menor ideia de que acabaria revelando meu relacionamento com ele. Neste sentido o livro adquiriu uma personalidade eclética. Aborda a história da Bahia, mas também memórias e reflexões pessoais”, acrescenta.

O comportamento raivoso demonstrado pelo pai de Helena acabou sendo a ponta de um fio que a levou a pesquisar sobre os parentes. “Da herança cultural dos antepassados, descobri uma fúria que vem de longe, pelo menos de meu trisavô, um homem que tinha um caráter explosivo. Mas elementos que pudessem explicar o comportamento de meu pai, só vim a encontrar na infância e juventude dele, na história pessoal”.

“Vi como a vida dele virou um turbilhão aos 11 anos, quando ele saiu de Jussiape com a família. Aquela criança não tinha nem ideia do que teria de enfrentar dali por diante. Passou por eventos super traumáticos, do tipo que leva a gente a perder o chão. Primeiro, deixou a cidadezinha natal de mil habitantes e veio com a família morar numa Salvador de 290 mil pessoas. Pouco depois perdeu o pai como consequência do alcoolismo, uma doença tornada ainda pior por causa do estigma que acompanha não só o alcoólatra, mas também a família”, relata.

Três gerações separando

Em luto, o jovem que no futuro seria pai de Helena resolve tornar-se padre. “Ele começou como coroinha no Convento do Carmo. A minha mágoa derreteu quando eu juntei os fatos isolados que tinha ouvido dele e de minha mãe e vi que a história dele foi muito trágica desde muito cedo. Se eu não tivesse pesquisado e escrito este livro, não teria me dado conta da tragédia que tudo aquilo significou. A religião exacerbada foi uma muleta que o ajudou a seguir adiante, em vez de sucumbir à devastação. Todos nós nos apegamos a muletas de vez em quando. Olhando para trás, agora, começo a entendê-lo muito mais”, observa.

Na obra, Helena passa também por uma pesquisa sobre os antepassados, que revelam à autora o flagelo da escravidão negra no Brasil presente no legado da família. Desde o uso desta mão de obra nas fábricas do tataravô ao comércio de venda de escravos para produtores de café do interior paulista. Para ir atrás de todos os documentos guardados no acervo público da Bahia, a autora contou com o apoio de Urano Andrade, historiador especializado em pesquisas de arquivo. Luis Tenorio Oliveira Lima, psicanalista da autora, a ajudou a ressignificar essas memórias.

“Os antepassados que compraram e venderam pessoas escravizadas vieram pelo menos três gerações antes de mim. Nunca os conheci nem formei laços afetivos com eles, o que me permitiu vê-los, em parte, como personagens históricos. Pela primeira vez vi, na micro história da minha família, o mecanismo que coloca alguns no trilho da classe média, enquanto os outros seguem um trilho paralelo de pobreza e exclusão”, percebe.

“Vi o meu privilégio e não tenho nada de que me orgulhar desta situação. Acho que este ponto é importante para o atual debate que a gente vê no Brasil e no mundo sobre o racismo estrutural. Foi um momento de perda da inocência que a ignorância dos fatos históricos provoca. Eu não levava em consideração a possibilidade de que meus antepassados tivessem alguma coisa a ver com a escravidão. Imaginava os escravizadores como um ‘outro’, abstrato e distante. Sabendo o que eu agora sei, me pergunto como eu poderia imaginar que uma família de sobrenome português poderia viver no sertão da Bahia no século XIX sem o uso de mão de obra escravizada”, conclui.

Lançamento: amanhã, 19h / Livraria Escariz Shopping Barra / Bate-papo com a autora e Dimitri Ganzelevitch

*Sob a supervisão do editor Chico Castro Jr.

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