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Cineasta narra luta de personagens que enfrentam a Aids no Brasil

Filme 'Os Primeiros Soldados' tem a direção do capixaba Rodrigo Oliveira

Publicado domingo, 10 de julho de 2022 às 07:10 h | Autor: Rafael Carvalho | Crítico de cinema
Renata Carvalho é Rose, “diva da noite” e uma das vítimas do vírus
Renata Carvalho é Rose, “diva da noite” e uma das vítimas do vírus -

Na virada do ano 1982 para 1983, alguns personagens se cruzam numa Espírito Santo pacata, ainda que algum mal-estar pareça rondar a vida dessas pessoas. Suzano (Johnny Massaro) acabou de voltar da França, tem um ar melancólico e passa os dias com a sua irmã, Maura (Clara Choveaux), e o sobrinho Muriel (Alex Bonini), por quem nutre grande afeto. 

Maura é enfermeira e, nesse 31 de dezembro, ao chegar para trabalhar no posto de saúde, encontra Rose (Renata Carvalho) na rua aos berros, acusando os funcionários do local de terem se recusado a atendê-la. Será que é apenas pelo fato dela ser uma travesti? É com esse clima geral que a celebração da passagem do ano ganha um tom de pesar, de algo prestes a desandar. 

No fundo, Os Primeiros Soldados trata das ondas iniciais do vírus HIV no Brasil, em um momento em que ainda se sabia muito pouco sobre a doença, sobre seus efeitos e formas de contágio – a palavra Aids nem sequer é dita por alguém no filme. O diretor Rodrigo de Oliveira elege um grupo de amigos que vão sentir as mazelas da doença no corpo e se juntam, de alguma forma, para enfrentar isso juntos. 

Ao lado de Suzano e Rose, que já se conheciam de antes dele ir para fora do país, junta-se também Humberto (Vitor Camilo), uma espécie de videomaker que estava fazendo um “exercício audiovisual” sobre Rose e seu trabalho na noite. São personagens que trafegam dentro do mesmo círculo de amizades e universo underground das pessoas LGBTQIA+ – ainda que o estigma sobre a Aids contaminar apenas essa população ser uma inverdade que o filme está longe de querer reforçar.  

O longa caracteriza uma Vitória do início dos anos 1980 em que o preconceito era ainda muito maior – a boate Genet era o ponto de encontro deles –, com intimidade e cuidado. É quase como se Oliveira quisesse cercar apenas aquele microcosmo para a narrativa que pretende construir. É um filme que quer ser menos um retrato didático sobre a doença no seu início e mais uma elegia para aqueles que primeiro enfrentaram o vírus, com pouquíssima informação e acolhimento médico e social. 

Os Primeiros Soldados faz também um paralelo bastante complementar com o também recente filme Deus Tem Aids, da dupla de diretores Fábio Leal e Gustavo Vinagre. É um documentário que reúne diversas pessoas que falam sobre sua experiência de existência e resistência como soropositivos na atualidade. 

Intimismo e melancolia 

A chegada da Aids e os primeiros surtos da doença já foram tema de muitos filmes e obras diversas. Daí que Rodrigo de Oliveira elege um recorte muito específico para tratar do assunto, tanto geográfica como temporalmente. Existe uma atmosfera de muito intimismo e afeto com que os personagens são levados a enfrentar aquele calvário. 

Rose performa na boate (inclusive naquele réveillon em que já sentia algo estranho no seu corpo) e, pelo menos no seu círculo, é muito querida e reconhecida como “diva da noite” – o que não a impede de se sentir sozinha também; assim como se ensaiam aproximações amorosas (Humberto e seus encontros) e também familiares (a bonita amizade de Suzano com seu sobrinho). Tudo isso, no entanto, esbarra no pesar que paulatinamente toma conta do filme à medida em que a doença pesa mais sobre aqueles indivíduos.

Não dá para fugir do sofrimento que recai sobre eles e, sobretudo, do sentimento de finitude, cada vez mais próximo, enquanto o corpo definha. Mas aqueles três personagens encontram uma maneira de lutar contra a doença – e mesmo de investigá-las juntos. Há até mesmo uma saída pela fabulação, que se dá pelos experimentos em vídeo que eles buscam fazer.

É, portanto, um equilíbrio muito difícil o que Rodrigo de Oliveira consegue aqui: o peso do tema contrapõe-se com a força dos afetos que eles criam ao redor de si – contra todos, contra uma sociedade pouco acolhedora. Essa talvez seja a maior batalha que eles enfrentaram nessa jornada cruel, desoladora, mas inevitavelmente importante para as gerações futuras.

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