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ENTREVISTA | ANGELA RO RO

“Continuo suingando, sambando miudinho que nem no Recôncavo"

Angela Ro Ro é uma das grandes cantoras e compositoras da música popular brasileira

Por Eugênio Afonso

20/04/2022 - 6:05 h
Cantora Angela Ro Ro
Cantora Angela Ro Ro -

Angela Maria Diniz Gonçalves, nacionalmente conhecida como Angela Ro Ro, 72, está, inegavelmente, no time das grandes cantoras e compositoras da música popular brasileira. A estrofe ‘enquanto me tiver que eu seja a última e a primeira, e quando eu te encontrar, meu grande amor, me reconheça’, da icônica Amor, Meu Grande Amor, uma das pérolas de sua carreira, já dá a dimensão do tom visceral e poético de sua obra.

Além dessa, Angela tem inúmeras canções que há mais de 40 anos vem embalando a vida do brasileiro. Dentre elas, Fogueira, Só nos Resta Viver, Compasso, Mares da Espanha, Gota de Sangue, Came e Case, Renúncia, Balada da Arrasada, A Vida é Mesmo Assim e Cobaias de Deus (parceria com Cazuza).

No show Angela Ro Ro: 40 anos de Amor à Música, que a carioca apresenta hoje, às 21h, na sala principal do Teatro Castro Alves (ingressos entre R$ 150 e R$ 35), ao lado do maestro Ricardo Mac Cord (teclado e efeitos), várias dessas baladas estarão no repertório.

Quando surgiu, em 1979, com um disco que leva seu nome, Angela Ro Ro já revelava que era uma artista de peito. Diante de um cenário conservador e machista, assumiu publicamente sua homossexualidade, inclusive nas baladas que compunha, como no trecho ‘tola foi você ao me abandonar, desprezando tanto amor que eu tinha a dar’ da música Tola Foi Você. Isso numa época em que era um imenso tabu falar abertamente sobre questões relacionadas à orientação sexual.

Claro que acabou pagando caro pelo “atrevimento”. Foi logo estigmatizada como artista marginal e dada a escândalos. Agredida cinco vezes pela polícia, ficou com algumas sequelas graves e, apesar de ter sido castigada por amar mulheres, Angela não se intimidou, desprezou solenemente quem a feriu e seguiu em frente, conservando sempre o bom humor.

Hoje, com uma carreira consolidada - mais de dez discos gravados, sendo três ao vivo -, Angela tornou-se uma artista consagrada por público e crítica, sendo autora de músicas famosas e gravadas pela nata da MPB, como a cantora Maria Bethânia. E, parafraseando Rita Lee, Ro Ro quer agora mais saúde enquanto está viva e cheia de graça, já que seguramente ainda pretende fazer um monte de gente feliz.

Para falar dessa caminhada artística e de temas como música, homossexualidade, o apelido inusitado, o projeto cultural do atual governo, os espancamentos que sofreu, o show de hoje à noite e sua relação com a música baiana, Angela conversou, pelo WhtasApp, com o Caderno 2+.

Seja, mais uma vez, bem-vinda a Salvador. Qual o propósito desse show?

O propósito do meu ofício, da minha arte, não é apenas me exibir comercialmente, profissionalmente, mas dedicar a minha arte a quem está assistindo, à plateia, porque ela é o único alicerce para a cultura. Sem ela, a arte não tem seguimento. Portanto, é uma oferenda que faço a quem me assiste com todo carinho, humor e amor à música. Esse público é a razão pela qual o artista existe.

Qual será o repertório?

Eu faço um passeio por todos os gêneros que já gravei e curto, baladas românticas, blues, samba-canção, rock, bossa, Aloísio de Oliveira, sempre um Jobim, um Vinícius de Moares talvez, e as minhas músicas. Graças ao sagrado público, tenho sucessos há quarenta e poucos anos. Tem ainda coisas que tocaram e tocam em rádios, novelas, seriados. E as baladas, canções românticas que faço, como Fogueira, Tola Foi Você, Nossos Enganos e Simples Carinho porque é inevitável um João Donato e Abel Silva no cardápio.

São 40 anos de amor à música e...?

Eu pertenço à música e à arte. Sou uma pessoa feliz sendo eu. Me sinto agraciada pelo dom de juntar, unir as pessoas através da minha música. Quantos casais homossexuais, heterossexuais, já uni em amores duradouros ou paixões avassaladoras. Cada vez mais minha gratidão aumenta por poder emocionar as pessoas, seja com risos ou lágrimas.

Qual sua relação com a música baiana?

Dorival Caymmi é fundamental para qualquer pessoa que goste de música, que faça música então é inevitável. A música baiana, sem dúvida alguma, foi uma grande impressão na minha vida, como ouvinte e como profissional, estudante de música. A música baiana é muito fértil. Tem sempre uma coisa religiosa da Bahia infiltrada na música popular brasileira, o que é maravilhoso. Bahia está com tudo.

O que quer a sua música?

Minha música não quer nada, ela existe. É como uma criança correndo pra brincar sozinha ou acompanhada. Ela é um animal correndo nos prados, nas gramas, na terra. Ela é livre e tem sua vida própria. É uma oferta que a vida me deu e eu repasso.

Que balanço você faz da carreira?

Agradecer sempre pela música me possuir, pela vida ter me dado algum talento. Agradeço à minha pessoa por ter sido corajosa, não valente, mas corajosa, de prosseguir sempre na meta que é a música, a arte cênica, a comédia, desprezando solenemente qualquer mágoa, calúnia, infâmia ou qualquer ferida que alguém possa ter me feito. O balanço da minha carreira é o balanço da minha vida. Continuo balançando, suingando, sambando miudinho, gostosinho que nem no Recôncavo (risos).

É verdade que você não bebe mais nada alcoólico? No entanto, dizem que o álcool relaxa e ajuda a compor. Verdade ou mito?

Não bebo mais nem fumo desde 1998. Tem gente que bebe um pouco de vinho e fica mais relaxado. Para compor, mesmo na época em que eu bebia, praticamente quase 100% da minha obra foi feita caretinha, sóbria, sem nada, nada. De repente, a bebida funciona pra alguns, pra mim vou na bucha mesmo, sempre fui, mesmo quando bebia.

Já li em algumas entrevistas que você foi agredida pela polícia cinco vezes. Que sequelas isso te deixou?

Fui espancada homofobicamente e em tentativa de estupro cinco vezes, dos 31 aos 45 anos. Quatro pela polícia militar e uma pela civil. Começavam tentando estuprar, depois tentavam matar. As sequelas, infelizmente, foram severas. Perdi a visão do olho direito, mas consegui com cirurgia conservar o olho. Me arrebentaram também os dois tímpanos. Escuto pela metade e é muito mais penoso para a minha profissão do que o olho que não enxerga direito.

Você acredita que as agressões têm a ver com a sua homossexualidade?

Não. As agressões têm a ver com os crimes que eles fazem. Não teve prisão, foi só ataque. Não tinha delito, não tinha razão, eles tinham que me soltar, mas soltavam toda arrebentada. A minha libido sadia vai ser a culpa de agressões criminosas, covardes, torpes, vis, hediondas? São crimes inafiançáveis. A imprensa, infelizmente, preferiu quase sempre o lado da mentira.

O que te fascina na música?

Como ela conduz, como ela traduz um momento, um sentimento, uma cultura, uma tradição, os hinos religiosos, os cânticos em louvor aos orixás. Ela é o veículo maior de comunicação, onde não tem barreira de linguagem. A música é a forma mais competente e bonita de comunicação.

Para onde caminha a música popular brasileira?

Comparo a música popular brasileira a uma couve-flor ou a uma hortênsia, são várias florezinhas numa flor só, então não sei para onde caminha. Só espero que a cultura brasileira seja mais respeitada, mais dignificada e acolhida. Não só os autores, compositores, instrumentistas, mas também os técnicos, as pessoas que lidam com o bastidor, a coxia.

O que tem achado da nova geração de artistas que tem surgido na música brasileira?

Para ser sincera, ando meio defasada. Tem muita gente boa que está por aí e eu não estou sabendo. Tem muita gente de valor sempre, em todas as gerações.

O que acha da política cultural do atual governo federal?

É penoso, desastroso, pérfido, desrespeitoso, absurdo, irreal, indigno, sofrido, deplorável o que estão fazendo com a cultura nacional. Ela está sendo massacrada. Tenho 72 anos, nasci na época do Getúlio Vargas, que era dantesco, e estou vivendo agora o pior momento do Brasil. A personalidade de um país está em sua cultura. Espero que, em breve, mude e que a nossa cultura seja preservada.

O que acha do movimento LGBTQIA+ hoje em dia? Se sente uma precursora?

Tem muita letra aí. Tem letra que nem sei o que é. Seja que letra for, que tenha direito, que tenha sua privacidade mantida e respeitada. Só o respeito vai trazer o bem-estar social. Sem dúvida alguma, sou precursora. Teve diversas antes, só que ninguém assumiu e eu assumi. Fui castigada severamente por amar as mulheres. Dei minha cara a tapa, fui muito caluniada. Até hoje ainda criam escândalos e pretenso sensacionalismo com meu nome e minha imagem, mas eu sigo em frente. Espero que eu tenha deixado alguma herança de amor entre as pessoas.

Finalmente, o Ro Ro é por causa do sorriso ou do choro? De onde vem esse apelido?

Eu jogava boliche com os meninos da rua e era a única menina. Jogava bem, até melhor do que eles às vezes. Aí teve um campeonato, eles ficaram com medo que eu ganhasse e não me deixaram participar. Aí eu comecei a querer chorar fazendo ro ro ro. Aí eles saíram atrás de mim a debochar, fazendo ro ro ro. O diabo do apelido, que não é dos melhores, pegou e acabou sendo o meu nome artístico.

Quais os próximos projetos?

Cuidar da minha saúde, ficar forte, aguentar. Continuar nessa terceira idade com humor e saúde pra poder trabalhar. Não estou reclamando da vida, mas não tenho pensão, carteira assinada, emprego, previdência, aposentadoria, INSS, nenhuma segurança. O que como amanhã eu tenho que trabalhar hoje. Então, preciso de saúde. Meu projeto é ficar bem, forte, pra poder prolongar o meu ofício até o final da minha eterna existência.

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