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ARTE

‘Desenvolvi portfólio robusto, sempre com ginga e riso", diz Cau Gomez

Cartunista e a rtista visual construiu grande carreira e abrirá exposição sobre sua trajetória

Por Chico Castro Jr

10/12/2023 - 3:00 h | Atualizada em 11/12/2023 - 10:42
Confira a entrevista com o artista
Confira a entrevista com o artista -

Tranquilamente o cartunista mais reconhecido e premiado a trabalhar na imprensa baiana, o mineiro Cau Gomez, colaborador de A TARDE, abre nesta terça-feira, 12, uma exposição comemorativa de sua trajetória de 30 anos em terras baianas. A Arte e o Humor Gráfico de Cau Gomez – 30 anos de Bahia reunirá trabalhos publicados não só em A TARDE, mas também no Estado de S. Paulo, Courier International de Paris, Le Monde Diplomatique e dezenas de revistas.

A noite de abertura da mostra, disponível na Galeria Arcos, da CAIXA Cultural, contará com o artista e o curador Ilan Iglesias presentes no local.

Cau Gomez é daqueles artistas que não precisam assinar uma obra para que o público saiba que se trata de um trabalho dele: seu estilo inconfundível já é naturalmente reconhecido por quem acompanha seu trabalho.

Além da maestria plástica / artística, Cau ainda é dono de afiado olhar social, capaz de resumir os mais variados assuntos do noticiário em desenhos repletos de significado e crítica política. Um artista completo, enfim.

A seguir, uma esclarecedora entrevista em que ele fala da sua trajetória, da exposição e do seu ofício na arte.

Feliz com a mostra? Como é olhar para trás e ver tudo que foi realizado ao longo das últimas três décadas?

Eu poderia te dizer que sim, mas não consigo sustentar por muito tempo essa sensação de felicidade. Mas reconheço que é um momento em que eu consigo ver premiada uma linha do tempo amadurecida, que contesta com acidez, porém, é bem-humorada, né? Uma linha do tempo que reflete quase tudo o que eu quis fazer, portanto, tive (e tenho!) um certo privilégio gráfico que, na maioria das vezes, apliquei na minha linguagem de desenho de humor com êxito. Então, eu também posso dizer que é o momento de celebrar e de ser feliz com o que eu tenho. É olhar para esses trinta anos de Salvador como um ponto referencial, um grande ponto para marcar a minha história. E assim, pude desenvolver um portfólio robusto, bem articulado artisticamente, trabalhado com uma estoicidade absurda, mas também com muita ginga e riso! Posso facilmente vislumbrar mais trinta anos desta forma, favorecido por esse ritmo de produção daqui de Salvador, em solo abençoado pelos Orixás. Aqui, eu consigo me afirmar como cartunista e artista negro, que se orienta no jornalismo de qualidade, nas artes, nas raízes ancestrais e nas influências da Mãe África. Um verdadeiro mix de estímulos que me possibilita manter a “minha aldeia” ligada a uma network operante, que abastece a minha comunicação artística com os outros artistas, em outros continentes.

Como avalia a própria evolução, ao comparar trabalhos do início, nos anos 1990, aos mais atuais?

Então, eu criei uma faceta experimentalista nesta época, com muita textura e mistura de tintas, foi uma maneira de lidar com aquela explosão toda de informação e novidades. Eu, simplesmente, só conseguia reproduzir os meus melhores desenhos através do uso das cores, na maioria das vezes. Também houve um tempo em que eu estudei profundamente as variantes do traço, né? Do gestual mesmo. Fiz muitos estudos sobre os efeitos da luz e da sombra nas ilustrações e até nas pinturas que regularmente eu pintava. E, enfim, acho que hoje tudo isso soma ao aprendizado. E isso me traz uma sensação de que ainda não aprendi tudo, o que é muito bom, não é? Mas, atualmente, lido melhor com essa coisa da ansiedade por novidades gráficas, da inquietação e das cobranças por soluções artísticas originais. Então, a experiência gráfica e artística hoje contam muito. E isso é fundamental.

Como é sua produção diária hoje? Muitos cartunistas abandonaram o papel e o lápis para desenhar direto na tela. Como é sua relação com a tecnologia digital?

A minha produção diária é pautada basicamente em fazer os desenhos das charges, que eu faço diariamente para os jornais. Eu escolho os temas na maioria das vezes, leio os artigos dos colunistas nos aplicativos, nos sites, assisto a quase todos os telejornais, numa rotina incessante. E aí depois, quase no fim do dia, eu já tenho selecionados os assuntos mais destacados e comentados, e sigo para rascunhar a charge com o lápis sobre papel. Quando o tempo permite, uso tinta gouache, que é orgânica e solúvel à base de água, tem ótima secagem e durabilidade. Em seguida, escaneio o material e utilizo o Adobe Photoshop para gerar a arte final e enviar aos editores. Mas, dentro desta revolução tecnológica toda, tenho visto ilustradores que trabalham muito bem na linguagem digital, diretamente na tela do monitor, com o uso de caneta optica. Isso sempre me chamou muita atenção e vi, pela primeira vez, nas mãos do Enéas Guerra, um grande ilustrador daqui da Bahia, que utiliza há muito tempo as técnicas digitais e filtros para colorir e editar no computador. Outro talentoso ilustrador digital é o Ademir Leal, jovem artista negro baiano, do tipo que vai ficar por pouco tempo disponível para o mercado nacional de ilustração, e que descobri através dos aplicativos das redes sociais, via Instagram. Ele desenha páginas de HQs (história em quadrinhos) excelentes, com um perfeccionismo encantador e que domina profundamente os comandos das técnicas digitais para ilustrações. Porém, apesar de utilizar um destes softwares para retocar meus desenhos, eu sinto que ainda tenho uma certa barreira que me afasta da frieza do touch screen. As cores, texturas e papéis virtuais não me seduzem tanto quanto o toque do lápis na superfície do papel orgânico. Contudo, o mais importante é que a gente tem que estar sempre criativo e se reciclando. E isso é essencial.

Como foi o processo de seleção dos trabalhos exibidos? Por quais critérios você e Ilan Iglesias se guiaram?

Foi muito árduo e criterioso o processo de escolha, tanto para o Ilan Iglesias, da RV Cultura e Arte, quanto pra mim. Me lembro que, em um determinado momento, me pareceu quase inviável escolhermos algumas e abandonarmos outras obras nas pastas. Elas estavam interligadas e senti até dó na separação delas durante esta etapa. O ideal seria levarmos todas para a galeria, mas isso seria um delírio. Tivemos de reavaliar diversas vezes e trabalharmos o desapego também. E eu posso confessar isso porque eu tive que remexer em muitos desenhos com estilos bons e ruins, acondicionados em pastas, caixas abarrotadas de desenhos, ilustrações, charges, cartuns, caricaturas coloridas e em preto e branco, posters, jornais e revistas impressas que estavam lacradas e guardadas em armários e gavetões no meu estúdio por décadas. Imagine que eu sempre fui ilustrador de jornal, trabalhei quatro anos no jornal Hoje em Dia, no Estadão, JB, Bahia Hoje e Playboy por sete anos. No jornal A TARDE, onde publico atualmente, eu desenhava, por uma época, uma média de três ilustrações por dia ao longo de 18 anos. Tenho mais de 20 mil trabalhos publicados! E isso só para jornais e revistas. No final, escolhemos prioritariamente, em primeiro momento as obras premiadas nos festivais nacionais e internacionais. Seguimos então para o critério de seleção por obras originais e com técnicas orgânicas, com uso de grafite, tintas nanquim, acrílica e gouache. Selecionamos também desenhos relevantes historicamente e com mensagens de cunho social, como a preservação das florestas e o combate à violência contra as mulheres, por exemplo. As caricaturas, em particular, foram de difícil escolha, tivemos de priorizar as personalidades da nossa terra, do Nordeste, mas também incluímos perfis mundialmente famosos e icônicos.

A exposição também traz alguns rascunhos, mostrando um pouco do seu processo criativo. Você testa muitas alternativas e versões até chegar à arte final?

A minha condição é de não menosprezar os esboços, ou os rascunhos. Rascunhar é trabalhar com a ausência. E a arte final, depois, vem para preencher isso tudo. Na verdade, são registros gestuais livres, e que detectam uma angústia artística quando, normalmente, um artista se depara com um papel em branco sem ter nenhum argumento convincente ou ideia preconcebida. O tal vazio criativo. Contudo, recomendo exercitar o gestual com o lápis ou outro marcador no papel, incansavelmente, digamos assim, até que o processo se apresente satisfatoriamente. É um momento que pode demorar a acontecer, mas acho que é determinante para se conseguir uma arte final de excelência. Estes rascunhos registram ali toda aquela carga. Acho até que o estilo do meu trabalho funciona muito bem associado com eles. Quando eu consigo preservar a característica gestual dos rascunhos na estrutura dos meus desenhos, é o máximo. É um processo espontâneo bem acabado, com final feliz.

Esta é a sua maior exposição em Salvador? E fora dela?

Eu considero que essa exposição individual é a mais diferenciada dos últimos tempos, mesmo com alguns obstáculos oriundos da rigidez estabelecida pelo edital de ocupação dos espaços culturais, desde a aprovação até a execução. Porém, apesar disso, sou otimista e creio que esta mostra poderá ser muito bem lembrada pelos frequentadores do circuito das artes da capital baiana. Digo isso, pois já tive participações em outras importantes exposições também, com outras propostas e características, e que foram bem marcantes para a minha carreira profissional. Tenho pelo menos mais três exposições de destaque. Por exemplo, posso citar o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, em 2013, que estava completando 30 anos, quando fui convidado para uma exposição individual, onde pude mostrar minhas pinturas de telas em grandes formatos e muitos desenhos de humor, além de também criar e desenhar o cartaz do evento, numa encomenda que veio do meu saudoso amigo e mestre cartunista Paulo Caruso (in memoriam). Participei também a convite da Bienal Internacional da Caricatura no Brasil, no Centro Cultural Justiça Federal, em 2013, no Rio de Janeiro, onde eu também participei da concepção do cartaz desta Bienal, que teve a organização e curadoria do pesquisador e historiador Luciano Magno. Nesta Bienal, mostrei diversos originais na exposição individual CAU GOMEZ, A Magia do Traço.

Por fim, outro evento que repercutiu internacionalmente e impactou positivamente na minha carreira, veio de um convite da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, pelas mãos do caricaturista português António Antunes – que organizou uma mostra individual com cerca de 100 trabalhos assinados por mim. Esta mostra aconteceu na Galeria do Celeiro da Patriarcal no ano de 2020, em Vila Franca de Xira, em Portugal. E contou ainda com o lançamento de um livro-catálogo, CAU GOMEZ, Desenhos à Flor da Pele, um livro de capa dura e design excepcional, muito bem editado pela editora Sistema Solar (Documenta).

Cau, me diga aquilo que você realmente gostaria que o público soubesse sobre esta exposição, o que é realmente importante ser dito, mas eu não perguntei.

Olha, eu gostaria que os soteropolitanos, baianos do interior e os turistas que estiverem visitando a cidade por algum momento, possam se deslocar e conferir de perto essa exposição. Ela está sendo feita com muito esmero, com muito respeito e dedicação pelo pessoal da RV Cultura e Arte, e o suporte da TANTOcria, que assina o projeto gráfico e expográfico. Eu creio que celebrar esses 30 anos com esse público, pra mim, verdadeiramente, já é uma grande vitória, né? Um grande acontecimento, sem dúvida. Eu penso que assim valerá a pena, porque você vai poder contemplar de perto a obra de um artista negro de Minas Gerais, radicado na Bahia, que gosta de sempre enfatizar as suas raízes e a ancestralidade afrobrasileira que carrega na pele. Tenho de valorizar a abertura dessas galerias, em espaços públicos para esse tipo de arte, né? A produção de desenhos de humor gráfico está em crise no mundo todo, infelizmente. Tenho acompanhado o fechamento de revistas e jornais impressos que, além disso, vem acompanhado pelo drama da concorrência desleal que surgiu com o avanço tecnológico da IA (Inteligência Artificial), que está sufocando o combalido mercado de trabalho para ilustradores. Vislumbro a reação ao expor estes trabalhos, e valorizar a popularização da produção de desenhos de humor, caricaturas, cartuns e charges, mesmo entendendo os limites retrógrados e reagindo às regras que suprimem o pensamento crítico e o acesso à cultura. Então, aproveito para convidar a todos e todas para poder em algum momento, repito, se deslocar e ver de perto esse material artístico na CAIXA Cultural. E lembro que, quem for visitar a galeria, poderá contemplar originais de trabalhos em preto e branco, e pintados com várias tintas como a acrílica, o gouache, e até a ecoline. O público vai poder conferir de perto a influência de artistas da caricatura como o Paulo Caruso, Chico Caruso, Mário Vale, Cássio Loredano, Luiz Trimano, Hermenegildo Sábat, Carlos Nine e outros tantos, na construção de uma identidade autoral na minha obra. Além de outros grandes pintores clássicos como Toulouse Lautrec, Francisco de Goya e Amedeo Modigliani, que me influenciaram diretamente na maneira de pintar e abordar a arte.

“A Arte e o Humor Gráfico de Cau Gomez – 30 anos de Bahia” / Abertura: terça-feira (12), 19h / Galeria Arcos da Caixa Cultural (Rua Carlos Gomes, 57) / Visitação gratuita de terça-feira a domingo, das 9h às 17h30 / Em cartaz até 04/02/24

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