CADERNO 2
Fotógrafa africana capta força das ruas de Salvador
Projeto da malinesa Fatoumata Diabaté junto a fotógrafas negras terá um estúdio na praça Castro Alves
Por Lila Sousa*
A ação Estúdio África: Conexão Mali-Bahia promete deixar um legado para prática cultural ao introduzir um novo repertório que permite a expansão da arte diaspórica afro-brasileira em Salvador. A iniciativa realizará atividades junto à fotógrafa malinesa Fatoumata Diabaté, numa residência voltada para fotógrafas negras (pretas e pardas) e indígenas da Bahia e a produção de estúdios fotográficos de rua criados em colaboração.
Uma das primeiras etapas do projeto é a aula aberta ao público sobre a estética da fotografia africana, ministrada pela antropóloga Goli Guerreiro, idealizadora do projeto, que acontece nesta quinta-feira (dia 22) no Teatro do Goethe-Institut. Em seguida, as fotógrafas baianas que irão participar da residência com Fatoumata, criando seus próprios estúdios de rua.
No dia 1º de outubro, a Praça Castro Alves sediará o Le Studio Photo de la Rue, onde a artista do Mali irá fotografar quem passar pelo local.
As imagens vão compor a Coleção Mali-Bahia, que será apresentada na Casa do Benin no dia 04 de outubro em evento público.
“O convite a Fatoumata foi feito em 2019, e ela amou a ideia de vir à Bahia. Esse desejo de trazer pela primeira vez ao Brasil a arte fotográfica desenvolvida na África, num dos nomes mais importantes dessa criação artística, ficou guardado e vai ser lindo realizar essa terceira edição do Estúdio África, com a colaboração de fotógrafas residentes na Bahia, da capital e do interior”, afirma Goli, idealizadora do projeto.
O Festival Estúdio África fecha a série de programações do projeto. Nesta etapa, as residentes apresentam ao público os estúdios fotográficos criados a partir da residência. Cada sábado, entre os dias 05 de novembro e 03 de dezembro, uma dupla de fotógrafas monta seu estúdio em diferentes pontos da capital e interior da Bahia, retratando a população durante todo o dia.
O projeto é uma realização da Ana Camila Comunicação & Cultura, com a parceria do Consulado da França em Recife e com o apoio financeiro do Estado da Bahia através do Fundo de Cultura, Fundação Cultural, Secretaria de Cultura e Secretaria da Fazenda.
Fatoumata Diabaté
Fatoumata Diabaté é retratista e fotógrafa social, uma das primeiras mulheres a receber formação no Centro de Formação em Fotografia de Bamako.
Seu trabalho se concentra em mulheres e jovens, sendo exibido na França, Mali e internacionalmente. A artista foi escolhida pela UNESCO para ser um dos 10 modelos do setor criativo e cultural na África Ocidental em uma campanha digital.
Admiradora do trabalho de Malick Sidibé, Seydou Keita, Abderhamane Sakaly, Mamadou Cissé, Tijane Sitou, Sadio Camara, ela se inspira na encenação e nos cenários deste período para criar novos retratos. “É uma forma de celebrá-los e também de promover a cultura africana”, declara a artista.
Vencedora de vários prêmios fotográficos, sempre está presente em festivais de fotografia, como Rencontres d’Arles e La Gacilly, atuando também como presidente da Associação de Mulheres Fotógrafas do Mali, desde dezembro de 2017. Já foi curadora no último Rencontres de la Biennale Photographique de Bamako. Além de ter integrado o Programa de Residências Fotográficas do Musée du Quai Branly com o seu projeto Nimissa, vencedor em 2020.
A artista relata que o projeto Le Studio Photo de la Rue surgiu da saudade do país natal junto ao desejo de homenagear um dos pioneiros da fotografia africana, Malick Sidibé. Ambos foram motivação para criação do conceito do Studio Photo de la rue.
“Uma noite de junho, apresentei a ideia ao meu então marido (que Deus o tenha), que achou o projeto interessante e me pediu para formulá-lo. Passei a noite inteira escrevendo, pensando em cada detalhe dos adereços, da decoração, da estampa em preto e branco para fazer uma viagem no tempo”, explica Fatoumata.
O estúdio fotográfico de rua tem como marca estética os adereços, o vestuário, a decoração, e a encenação, que nos intervalos tem um papel decisivo, ajudando a tornar mais realista o conceito de estúdio fotográfico dos anos 1970 e 1980.
“Permitem-me viajar no tempo e imergir nossa geração no passado”, ressalta a artista.
Fatoumata acredita que a mestiçagem e a mistura de culturas são imprescindíveis para o processo criativo, assim como são elementos cruciais para a convivência. “Na minha humilde opinião, há muitas semelhanças em nossas duas culturas, e os olhares das artistas podem contribuir para enriquecer nossas futuras colaborações.”
Ser inspiração para artistas baianas, negras e indígenas é fonte de orgulho para Fatoumata, que exerga esta missão com grande responsabilidade. Para artista, esta é uma oportunidade de conhecer a cultura brasileira, passar seus conhecimentos, além de acompanhar as residentes no processo de criação e desenvolvimento pessoal. Como objetivo, a malinesa destaca que é fundamental dar ferramentas para que as residentes voem alto.
“Estou orgulhosa e grata por todos aqueles que me tomam como exemplo. Além disso, gosto de motivar as jovens, encorajá-las a sonhar mais alto e acima de tudo a dar-se os meios para alcançar os seus sonhos. Eu as encorajo a ter fé em si mesmas, nunca subestimar seu potencial, mas sobretudo não se deixar abater sob o peso do preconceito”, conclui.
Estúdio África
O Estúdio África foi idealizado pela antropóloga Goli Guerreiro com o objetivo de atuar na formação e difusão da estética da fotografia africana. Sua primeira edição aconteceu em Salvador, como ação premiada pelo edital Arte Todo Dia (Fundação Gregório de Mattos).
“A primeira ação do Estúdio África criou os retratos da Coleção Salvador, em 2017. Ela foi feita em três fundos decorativos pintados em grafite pelo artista visual Eder Muniz (Calangoss) e reproduzem cenas de cidades africanas. As peças em madeira foram instaladas como um estúdio de rua, no bairro de Castelo Branco. Moradores e frequentadores da feira dominical foram convidados a se deixar fotografar”, explica Goli.
No ato da tomada de fotos, realizada por Arlete Soares, as pessoas foram convidadas através de um cartão postal para que fossem buscar seus retratos em formato analógico em um evento que contou com uma mostra de fotografia africana, seguida da exibição do minidocumentário sobre o processo criativo e da projeção da Coleção Salvador.
Goli relata que em um lance próprio da terceira diáspora, as imagens da Coleção Salvador foram digitalmente visualizadas em Dakar pelo dramaturgo senegalês Mamadou Diol, criador do grupo de teatro Kaddu Yaraax e do Festival Internacional de Teatro Forum do Senegal. E a partir de então, surgiu convite para que o Estúdio África fosse realizado em Dakar.
Em 2018 o projeto cruzou o Atlântico e envolveu fotografia, artes plásticas e performance. Na ocasião, Eder Muniz pintou in loco um fundo decorativo inspirado em Salvador que foi instalado no bairro de Yaraax, para a realização da performance teatral do Kaddu Yaraax e, em seguida, para o estúdio de rua, no qual a comunidade foi fotografada para a criação da Coleção Dakar.
“Foi imensa a emoção de criar esses retratos no berço de Meissa Gaye e Mama Casset, dois dos maiores mestres da fotografia senegalesa. Agora vamos criar a Coleção Mali-Bahia, em Salvador, com uma fotógrafa africana!”, destaca Goli, entusiasmada.
A idealizadora do projeto ressalta que o Estúdio África inspira-se na história da fotografia africana como também na atualidade de suas práticas. “O trabalho da malinesa Fatoumata Diabaté, Studio Photo de la Rue, que consiste na montagem de estúdios de rua para recriar a estética dos grandes mestres da fotografia africana, foram fundamentais para a idealização do projeto, dedicado a criação de coleções deslocadas de matrizes euro-centradas”, afirma Goli.
Uma das selecionadas para participar da residência é Larissa Paixão, moradora de Ilhéus e fotógrafa há seis anos, que foi incentivada pelo amigo a se inscrever no projeto.
Para Larissa, esta é uma oportunidade valiosa, principalmente pelo contato com a artista malinesa. “Ansiosíssima, acredito que é uma grande oportunidade, além de ser um momento para troca de experiências e aprendizado em conjunto com outras fotografas”, declara.
Larissa gosta de fotografar espetáculos e eventos culturais, tendo contato maior com ensaios fotográficos de drag queens da sua região.
Troca cultural
Mariana Alfaya, artista visual da capital, vê neste momento de troca a possibilidade de construção. “Estudar a fotografia africana; experenciar o processo criativo de Fatoumata; aprender a inventar um estúdio a partir desse diálogo; partilhar essa vivência com colegas fotógrafas, traçando aproximações entre nossos trabalhos; e dessa fricção produzir uma exposição é uma proposta incrível. Acho que vão surgir muitos desdobramentos artísticos depois desta vivência”, relata a residente.
Eram apenas 10 vagas, mas das 50 candidaturas recebidas, 16 mulheres foram selecionadas para conviver com uma das maiores referências da fotografia africana durante sete dias. “A artista ficou feliz e impressionada com o alto nível das candidatas. Considerando impossível escolher apenas 10 nomes, propôs que ampliássemos o número de vagas”, explica Goli.
Através da terceira edição do Estúdio África, Fatoumata quer partilhar sua paixão pela fotografia, com a proposta de levar as residentes a fazer, descobrir e transmitir uma parte da cultura africana. “Atrevo-me a esperar que no final deste encontro tenha transmitido não só o meu conhecimento, mas a minha paixão e parte da minha rica e diversificada cultura africana”, acrescenta a artista.
O desejo da malinesa de uma troca cultural é o mesmo esperado por suas residentes. Por exemplo, Marina Alfaya declara a felicidade de ter sido selecionada junto com outras fotógrafas da sua geração que tem trabalhos maravilhosos, fortes, com identidades próprias e que demarcam nitidamente de onde vem sua cultura visual. “Essa convergência orientada por Fatoumata Diabaté e Goli Guerreiro vai ser uma experiência intensa e rica demais”, declara Marina.
Artista visual, Marina trabalha com desenho, gravura, e principalmente com fotografia documental, que desenvolve na rua, investigando o imaginário, memória, e como isso se revela na dinâmica coletiva da cidade, nas dinâmicas sociais, na espacialidade, na materialidade do tempo. A jovem considera Fatoumata uma mestra da fotografia social.
“A pesquisa dela carrega tradição, mas tem a vivência contemporânea da rua, e uma forma muito particular de propor a fotografia à pessoa retratada e não de impor isso a ela. Eu acredito que essa prática é uma espécie de fundamento e tenho certeza que vivenciar e ver materializar o estúdio, os retratos de Fatoumata e depois criar a partir dessa imersão vai ser incrível”, complementa Marina.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes