ENTREVISTA
Lelo Filho: "Críticas foram importantes para o ator que me tornei”
Ator garante que o sucesso da Cia Baiana de Patifaria é inexplicável
Por Eugênio Afonso

Quem frequenta os teatros de Salvador, muito provavelmente, já se deparou com o ator, produtor, diretor e autor Lelo Filho, 59, em cena.
Além da antológica comédia tipo besteirol A Bofetada, que vira e mexe está em cartaz, quase ininterruptamente, há 34 anos, Lelo tem protagonizado outros espetáculos pela cidade, afinal já lá se vão 40 anos de estrada.
E dando início à comemoração dessas quatro décadas de vida teatral, Lelo reestreia, hoje, às 20h, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, Fora da Ordem, monólogo escrito e dirigido por ele, que conta com participação de outros artistas através de vozes gravadas e aparições projetadas no cenário. A peça, livremente inspirada em uma canção homônima de Caetano Veloso, fica em cartaz até 25 de setembro, sempre aos sábados e domingos.
Em paralelo à temporada, vai ter uma exposição, no foyer da Sala do Coro, com imagens e figurinos de personagens interpretados pelo ator ao longo dessa viagem cênica de quatro décadas.
Além disso, Lelo comanda um dos grupos de teatro mais longevos que se tem notícia por aqui, a Cia Baiana de Patifaria. São 35 anos produzindo, criando e montando vários espetáculos teatrais, como A Bofetada, sem dúvida o mais famoso deles e um marco do teatro baiano – visto por mais de um milhão e meio de espectadores em mais de duas mil apresentações.
Ele garante que o sucesso da Cia é inexplicável, mas que tem a ver com o poder de comunicação de cada ator que já passou pelo grupo e também com o fato de ser uma peça que está sempre sendo oxigenada, mesmo tendo o mesmo texto.
E apesar de ter ficado mais (re)conhecido pelo papel da professora de filodramaturgia Fanta Maria em A Bofetada, Lelo também esteve em cena com Cabaré das Ilusões, Abafabanca, Noviças Rebeldes, A Vaca Lelé, Capitães da Areia e Siricotico.
Em meio a esse frenesi de comemorações, Lelo confessa estar contente em poder voltar à Sala do Coro, palco em que estreou pela primeira vez, em 1992, com uma adaptação do Decamerão, de Bocaccio. Para contar mais sobre sua trajetória, falar de teatro, sucesso, cultura e outros temas, Lelo conversou, via WhatsApp, com A TARDE.
Antes de qualquer coisa, parabéns por não ter abandonado a carreira de ator. Mas me conta um segredo, já pensou em desistir?
Obrigado pelos parabéns. À medida que o tempo passa e você lida com tantas dificuldades da profissão, você se depara com situações que te fazem repensar. Às vezes me bate uma interrogação. Por que as coisas não ficam mais tranquilas para os artistas, sobretudo os da periferia desse imenso Brasil? Desistir não é exatamente a palavra, mas me pergunto por que tem que ser tão difícil?
E Fora da Ordem, espetáculo que você reestreia hoje e toca em temas como homofobia e racismo, ainda está atual ou precisou ser reescrito?
Fora da Ordem é uma obra aberta no sentido de que posso ir atualizando a cada temporada. Homofobia e racismo estão presentes, mas vários outros temas, como o quanto foi nocivo o regime militar para o país. Trago para dentro da cena, através da história de uma família fictícia, um pouco da história de perseguição na época da ditadura militar. Esse texto fala o quanto esses movimentos de ultradireita estão crescendo no mundo e o quanto são nocivos. Essa nova ordem mundial, eu espero, é exatamente a que Caetano traz na obra dele. Enxergo a desigualdade, mas desejo que ela diminua e desapareça em algum momento.
Você está à frente de um espetáculo de teatro (A Bofetada) que faz 34 anos e é, sem medo de errar, um divisor de águas do teatro baiano. Vista por milhares e milhares de pessoas desde 1988, esta comédia de esquetes ainda lota os teatros. Qual o segredo?
É inexplicável. Não existiu uma pretensão de que a peça se transformasse nesse fenômeno de público, não só em Salvador, mas pelo país afora. Foram mais de 70 cidades visitadas. Se for buscar um fator predominante para determinar esse sucesso, tem muito a ver com o poder de comunicação de cada ator que integrou esse espetáculo. É uma peça que está sendo sempre recriada, oxigenada, embora o texto seja o mesmo. Eu diria que o grande segredo é um forte poder de comunicação.
Você deve ser modelo e exemplo para muitos jovens que estão iniciando nessa carreira tão fascinante e assustadora ao mesmo tempo. Qual o recado para eles?
Para os jovens que começam a fazer teatro hoje, e visam muito mais entrar para a TV, é preciso reconhecer que sem trabalho, pesquisa e estudo, dificilmente, as coisas acontecem. Essa profissão requer perseverança. Se a Cia serve de exemplo e referência, é bom que saibam que há muito trabalho. Esta é uma arte coletiva, com muita gente trabalhando no bastidor para que tudo aconteça.
Você acredita que a cena teatral de Salvador já foi mais efervescente e melhor? Ou tudo não passa de um saudosismo fora da ordem?
Acho que já vivemos momentos de grande efervescência (anos 1970, 80). A partir de Abafabanca (primeira peça da Cia Baiana de Patifaria, 1987) há um início de um processo de reconquista do público baiano e de fortalecimento do teatro para que outros grupos surgissem e outros artistas desenvolvessem carreira solo. E acho que saudosismo é somente uma tentativa de que a gente tente recuperar o teatro, apesar da violência e de tudo o que afasta o público. Fazemos um teatro muito plural, forte e rico.
Como lida com as críticas?
Acabei aprendendo a lidar com a crítica em grupo. Varávamos a noite discutindo as críticas, não só as boas, mas as ruins também. Elas foram importantes para a construção do que a Cia Baiana de Patifaria se tornou e de como eu me tornei um ator que chego até aqui. Elas são importantes e podem lhe dar sinais de coisas que a gente precisa prestar atenção. E são construtivas quando você sabe encará-las bem.
Depois de 40 anos no palco, você se sente reconhecido, e devidamente valorizado, por público e crítica?
Eu e a Cia Baiana de Patifaria, com todas as pessoas que passaram por essa história, dentro e fora da cena, construímos juntos uma trajetória. Depois de 40 anos de carreira, esperei que, neste momento, conseguíssemos conquistar algumas etapas de trabalho mais tranquilamente. No meu entendimento, muita gente que faz parte das comissões de projetos deve achar que a Cia já está estável e não precisa de patrocínio. Ao contrário, quanto mais trabalhamos, mais valor agregado precisamos somar ao nosso trabalho. Enfrentamos eras de dificuldades imensas na área cultural. Estamos vindo de um momento de retomada do teatro pós-pandemia em que, de certa forma, todos os artistas foram jogados no mesmo lugar. Neste momento, todos estão precisando que as leis de incentivo sejam respeitadas.
Nesses mais de 30 anos de A Bofetada, muitos atores se revezaram em diversos personagens da trama, mas Fanta sempre foi sua. Você acredita que o púbico exige isso ou é mesmo um apego, uma paixão?
Difícil não dizer que existe um apego, uma paixão por esse personagem por tudo o que ele me proporcionou, me trouxe de reverberação do meu trabalho, seja na forma de crítica, de reação da plateia, ou na troca com os atores que já fizeram o contraponto. Sempre digo que Fanta não seria o que é se não existisse o contraponto da Pandora criada por Frank (Menezes), vivida por Jarbas (Oliver), por Diogo (Lopes Filho) e que Rodrigo Vila tem interpretado ultimamente. Fatalmente, ele nunca saiu da minha mão porque defendi ele desde o início. É um personagem que ia ser cortado 15 dias antes da estreia.
Uma curiosidade. Por que nunca houve uma mulher no elenco de A Bofetada? O riso está nos homens travestidos?
O riso está sempre no inusitado, no inesperado. Um homem travestido provoca algum tipo de reação a mais. Não acredito que façamos caricatura da mulher, mas interpretações de diversos universos femininos. É um universo que, de certa forma, nos fascinou.
A Cia Baiana de Patifaria (nome ótimo, por sinal) faz 35 anos de resistência, firme e em pé. A escolha pela comédia é a maior responsável pela longevidade do grupo?
Chico Anysio tirou o peso que carregávamos nas costas de sermos apontados por aquele grupo que só fazia comédia. Ele disse assim: ator pode fazer tudo, uma criança, um velho, um homem, uma mulher, uma árvore, um guardanapo. A comédia, claro, foi muito responsável para que a gente ganhasse fôlego para tomar coragem, inclusive, de sair das fronteiras da Bahia com o sotaque baiano, e isso ganhou o Brasil. Com as novas peças, decidimos arriscar outros gêneros.
Quando é que A Bofetada, ou algum de seus recortes, volta a cartaz?
Há uma previsão de retornar a partir de 08 de outubro, no teatro Módulo, com o recorte Fanta e Pandora – Uma Folia na Primavera. Se a gente tiver que celebrar os 35 anos de A Bofetada, deve acontecer a partir do ano que vem porque aí marca uma data mais simbólica, possivelmente em uma temporada de verão com o espetáculo na íntegra, mas isso ainda está sendo planejado.
E, por fim, como será daqui pra frente? Novos projetos à vista?
Há um grande desejo de continuar fazendo o que tenho feito há 40 anos que é, principalmente, criar novas conexões, que consigamos ser assistidos por mais gente em cada canto do país. O formato do teatro digital foi importante pra gente. Pessoas do outro lado do planeta, brasileiros saudosos, estrangeiros, puderam assistir nossos espetáculos através da internet. Projeto, ideia é uma coisa que não falta para a Cia Baiana de Patifaria. Existe um grande desejo de fazer muita coisa ainda.
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