CADERNO 2
Livro reúne obras de pintor viajante retratando o Brasil colonial
Thomas Ender tem obra resgatada em portentosa edição de luxo com a totalidade de sua produção local
Por Chico Castro Jr.

Como pudemos testemunhar nos eventos deploráves do último domingo, pessoas portadoras de baixos quocientes de inteligência têm sérias dificuldades em entender qual seria a importância da preservação de obras de arte e objetos de caráter histórico. Como a prestação de serviços de interesse público é uma das missões de A TARDE, vale dar uma colher de chá ao eventual (im)patriota que esteja lendo isto: obras de arte e objetos de caráter histórico são registros que nos permitem, de alguma forma, acessar o tempo em que foram produzidas. Tais objetos nos dizem muito sobre o período em questão, sobre o artista (ou artesão) que o produziu, sobre a técnica utilizada, sobre o lugar, os costumes, a política etc. Não é tão difícil.
Para facilitar, pode-se pegar o livro Ender e o Brasil, recém-lançado pela Editora Capivara, como exemplo. Trata-se de um catálogo raisonné, ou seja, um livro que cataloga todas as obras de determinado artista, além de trazer todos os dados possíveis referentes a cada criação: título, data, técnica utilizada etc. Em Ender e o Brasil, o historiador da arte Julio Bandeira recupera toda a produção do “artista viajante” austríaco Thomas Ender (1793-1875) na passagem de onze meses pelo Brasil, em 1817.
No total, 1.048 imagens, em portentosas 728 páginas. “São sete óleos, 28 aquarelas acabadas – prontas para serem gravadas –, 989 aquarelas e desenhos e 24 gravuras”, enumera Bandeira.
Assim como o alemão Johann Moritz Rugendas e o francês Jean-Baptiste Debret, Ender era um “artista viajante”, ou seja: era o artista responsável por viajar para as terras colonizadas pelos europeus e registrar tudo o que fosse possível, em desenhos, telas e gravuras, para que os nobres do outro lado do Atlântico entendessem melhor como eram as paisagens, edificações, figuras humanas e costumes de suas colônias.
O Brasil teve três grandes artistas viajantes: os já citados Rugendas, Debret e, claro, Ender, que vem a ser o menos conhecido deles, principalmente porque, ao contrário do alemão e do francês, o austríaco nunca publicou um álbum iconográfico em vida.
“Parte importante desta produção ficou oculta porque, além de pintar e desenhar o Rio de Janeiro e São Paulo, Ender fez um álbum de aquarelas e desenhos paralelo da viagem. Esse álbum não chegou ao conhecimento de Francisco I” (imperador austríaco que enviou o artista ao Brasil), explica Bandeira.
“O ‘Álbum de Viagem’ foi adquirido pela Biblioteca Nacional, em Viena, pouco antes da Segunda Guerra, por intermédio da Livraria Kosmos, do Rio de Janeiro, às vésperas da anexação da Áustria pela Alemanha nazista, o Anschluss de 1938. Talvez pela associação do ‘Álbum de Viagem’ com a guerra, talvez pelo desconhecimento prévio sobre Thomas Ender, foi preciso que a descoberta desse artista viajante, cuja obra rivaliza com a de Debret e Rugendas, se desse a partir do material vendido em 1955 e divulgado em calendário daquele ano por Gilberto Ferrez. Foi Ferrez quem publicou as duas primeiras edições coloridas de Ender, em 1957 e 1976. Das 300 imagens do ‘Álbum de Viagem’, do acervo da Biblioteca Nacional, apenas oito foram reproduzidas em preto e branco, publicadas em 1968 em pequeno catálogo com a relação das obras. O restante está sendo publicado pela primeira vez nesse raisonné”, detalha o historiador.
E aqui entramos na importância dessa obra, esquecida por tanto tempo, ser resgatada: com a arte de Thomas Ender acessamos um Brasil que não existe mais: “As aquarelas de Ender mostram os grandes palácios de pedra e cal construídos durante o Reino Unido de Portugal e Brasil, que desapareceram. Muitos deles sobreviveriam até o século XX, quando começa uma sucessão de bota-abaixos. Um patrimônio perdido que só pode ser revisitado por intermédio dessa iconografia”, conta Julio.
Mas não só o que não existe mais nos interessa, tanto como arte, quanto como registro histórico – há detalhes que Ender registrou há 206 anos que causam espanto por ainda persistirem existindo na vida nacional: “Quanto àquilo que permanece, são as populações de rua que tanto Ender como Debret denunciam em suas obras: figuras nuas e seminuas, largadas nas calçadas. Outrora eram escravizados miseráveis que se tornaram inúteis para os proprietários. Ora, são milhares de desempregados andrajosos, excluídos sem-teto, cuja violência social remete à realidade de 200 anos atrás”, observa.
“Ender é uma caixa do tempo de 1817, quando uma restrita América portuguesa, fechada aos estrangeiros, pôde finalmente ser pintada. Algo assim só acontecera no início do século XVII, durante o chamado Brasil holandês, com os artistas de Maurício de Nassau, Frans Post e Albert Eckhout”, acrescenta.
O mais realista
Um trabalho de tamanha magnitude (são 1.048 imagens escaneadas, tratadas, catalogadas, analisadas etc) exige certamente um plantão rigoroso, meticuloso e cercado de cuidados, mas também teve fatores que o facilitaram.
“O trabalho de pesquisa foi muito facilitado pela concentração da maioria das obras em duas instituições: em Viena, a Academia de Belas Artes; e no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional. O levantamento começou por Viena, cujo acervo de Thomas Ender sobre o Brasil foi publicado em 2000, por Robert Wagner, então diretor da Biblioteca da Academia, e por mim. Todas as imagens foram escaneadas”, relata Julio.
Segundo o historiador, Ender foi o mais realista dos três grandes artistas viajantes. E apesar de ser menos conhecido, é de estatura equivalente aos outros dois: “Ender chega ao Brasil com 24 anos e já tinha sido contemplado com dois grandes prêmios de desenho e pintura de paisagem. Seu talento foi determinante para a escolha desse pintor vienense para pintar as paisagens urbanas e naturais do País. A escola Biedermeier, adotada por ele, era o que havia de mais realista entre as tradições europeias. Ele buscava registrar rigorosamente aquilo que via. Como Debret, ele desenhava diretamente das ruas e florestas, completando os traços a lápis com as amostras de cores colhidas in loco”, detalha.
“Thomas Ender seria o mais fiel dos artistas viajantes, focando sua arte nas ruas e na natureza luminosas. O jovem austríaco buscava um realismo que não interessava a Debret, com suas figuras exóticas algo engessadas. Já Moritz Rugendas, o terceiro grande artista viajante, não hesitava em reinventar o que via. Ele não teve escrúpulo, por exemplo, em acrescentar um monumento natural da cordilheira dos Andes, a Ponte do Inca, em um desfiladeiro da Serra do Mar – com o Dedo de Deus aparecendo ao fundo, sendo cruzado por tropeiros paulistas”, conclui Julio.
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