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CADERNO 2

O suplício da deusa

Blonde, filme sobre Marilyn Monroe na Netflix, reforça estereótipo da sex symbol desajustada

Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema

05/10/2022 - 6:00 h
Filme é livremente adaptado da obra monumental da escritora Joyce Carol Oates
Filme é livremente adaptado da obra monumental da escritora Joyce Carol Oates -

Na Hollywood dos anos 1950, não era fácil ser um símbolo sexual. A mídia sensacionalista e os tablóides americanos já tinham descoberto o filão da “vida íntima dos artistas” e sabia o quanto isso gerava lucro. Marilyn Monroe é, talvez, uma das estrelas que mais sofreram com esse tipo de assédio – e tantos outros –, ainda mais por se mostrar incapaz de enfrentar o sistema e tirar proveito dele, por conta do seu comportamento muito retraído e pouco firme.

Blonde, filme dirigido por Andrew Dominik, já está disponível na Netflix e faz uma radiografia da vida e estrelato de Monroe, reimaginando diversas passagens de sua conturbada história, pessoal e profissional – na medida em que ambas se mesclavam perigosamente.

A ideia de uma cinebiografia ficcionalizada (muito do que vemos ali é imaginado, da forma como aconteceu, ou são simplesmente projeções psicológicas da personagem) deve-se à fonte do material. Blonde é livremente adaptado da obra monumental da escritora Joyce Carol Oates, livro que já possuía essa liberdade poética ao narrar a vida de uma personalidade largamente documentada e exposta pela mídia mundo afora.

Isso permite a Dominik, que assina a adaptação desse roteiro junto com Oates, ser mais criativo na maneira como traduz audiovisualmente os muitos dramas, conflitos e cicatrizes que passaram pela trajetória de Monroe. E não foram poucos. Desde a infância, criada pela mãe solteira que começa a desenvolver problemas mentais, sendo rejeitada pelo pai que nunca conheceu, até os diversos abusos que sofreu nas mãos de produtores, diretores, atores e toda a gente do cinema, a vida da atriz é um calvário a que o filme não nos poupa.

Estão no longa alguns dos momentos mais icônicos pelos quais Marilyn é lembrada. Da famosa cena com o vestido esvoaçante em O Pecado Mora ao Lado, de Billy Wilder, à apresentação de grande sucesso em Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Em todos esses, a despeito da fama e do estrelato, Monroe sofre não só fora dos estúdios, por conta de sua exposição, mas também dentro deles, por ser tida pela maioria como apenas uma mulher bonita, burra, fútil e sem muito talento.

Os casamentos fracassados também ganham destaque na trama. Primeiro com o jogador de beisebol Joe DiMaggio (Bobby Cannavale), de quem sofria violência física; e depois com o dramaturgo Arthur Miller (interpretado por Adrien Brody), que chegou a escrever o roteiro de Os Desajustados, filme de John Huston, e o último longa em que Monroe iria trabalhar. O casal teve uma série de crises, inclusive por ser ele um intelectual de quem se duvidava que estaria verdadeiramente apaixonado por Monroe.

De estrela para estrela

Muito se especulava sobre a caracterização de Ana de Armas para o papel, atriz de origem cubana e que vive um ótimo momento de ascensão em Hollywood. Mais do que a semelhança física – vemos um trabalho de caracterização muito afinado, em termos de figurino e maquiagem –, era fundamental entender que tipo de construção se faria sobre a personagem.

Pois Ana de Armas entrega uma Marilyn fragilizada, tímida, de tom de voz baixo e quase sussurrada, completamente jogada aos tubarões da indústria do cinema e logo objetificada por essa maquinaria de fazer dinheiro, estrelas e traumas. Ela se lança com tudo na personagem e não teme a exposição, inclusive física, que tanto representa a vulnerabilidade de Monroe diante do mundo.

E esse é certamente o maior equívoco do filme de Domink: insistir na representação de violência e dor que se associa à vida de Monroe. Mas afinal, se a trajetória dela foi marcada pelo sofrimento, como fugir disso? A resposta é simples – mas não por isso fácil de concretizar: criando contrapontos e dando margem para que a própria Marilyn “defenda-se” no filme.

Ora, para um projeto que se dedica em reimaginar as situações pelas quais ela passou, que é capaz de criar momentos realmente interessantes ao entrar na psicologia da personagem e transformar isso em cenas ao mesmo tempo inventivas e desoladoras, subvertendo o próprio gênero das cinebiografias tão tradicionais hoje em dia, por que não fazer isso também em prol da própria Monroe?

Blonde cria o espetáculo das ilusões da fama e do cinema como sinônimo de sucesso, mas simplesmente lança a personagem no turbilhão de emoções e disputas em que as mulheres são vistas como troféus e objeto de exploração masculina – seja pelo olhar, pela posse ou pelo poder.

A Marilyn, por sua vez, nunca é dada a possibilidade de se defender, de dizer o que pensa, de mostrar o seu entendimento do jogo perverso de que participa, mesmo que saibamos o quanto ela só perdeu (e o tanto que sofreu) com tudo isso nas mãos dos homens – não à toa, até o fim da vida, ela busca reencontrar o pai ausente, desencadeando a carência masculina que ela precisa suprir com os homens abusivos com os quais se relaciona. Em Blonde, Marilyn Monroe é encurralada, mais uma vez, pelo desejo ardente de vê-la sofrer diante do público.

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