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26/10/2022 às 6:00 - há XX semanas | Autor: Bruno Santana*

CADERNO 2

Oitenta Mil Tons

Voz de tantas gerações, Milton Nascimento chega aos 80 anos cimentando de uma vez trono no Olimpo da música

Farol de múltiplas gerações do Brasil, desde as primeiras notas de uma voz prodigiosa
Farol de múltiplas gerações do Brasil, desde as primeiras notas de uma voz prodigiosa -

Ser considerado a voz de uma geração é para pouquíssimos artistas. Capturar o zeitgeist, absorver a voz das ruas, sentir a energia fervilhante da juventude, transcodificar em palavras e melodias os anseios de um povo são missões que, sendo extremamente sortudo e talentoso, estando na hora certa no lugar certo com o estado de espírito certo, um músico alcançará uma vez na vida.

Não é o caso de Milton Nascimento. Ao longo de 80 anos de vida, hoje completados, o carioca mais mineiro de todos os tempos conseguiu ser a voz de múltiplas gerações do Brasil – quiçá todas – desde que deu ao mundo as primeiras notas de uma prodigiosa voz.

Em Travessia (1967), composta com Fernando Brant e o primeiro grande sucesso, Milton colocou em palavras e música a angústia dilacerante e a vontade da fuga de um país mergulhado na repressão. Em Clube da Esquina (1972), juntou-se a Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Wagner Tiso, Toninho Horta e ao próprio Brant para traduzir numa viagem sônica, quase cinematográfica, a encruzilhada de uma juventude dividida entre a busca pela própria identidade nacional e a paixão pelas referências que vinham de fora, desde os Beatles e Emiliano Zapata até John Wayne e Perdidos na Noite. No processo, criaram um dos movimentos mais importantes da história da música brasileira – e um dos maiores álbuns.

Como se não bastasse, Milton foi também a voz da redemocratização: com Coração de Estudante (1983), escrita com Wagner Tiso, homenageou Edson Luís, estudante morto pela ditadura militar em 1968, e criou o hino extra-oficial das Diretas Já. Os versos de esperança foram eleitos pelo (também mineiro) Tancredo Neves como uma das canções favoritas, e o País foi embalado por esta melodia durante a reconstrução democrática – especialmente após a morte de Tancredo.

A improvável amizade com o ator River Phoenix, por sua vez, gerou algumas das imagens mais inusitadas da década de 1980: o jovem astro de Hollywood, no auge da fama, tranquilamente perambulando com Milton pelas pacatas ruas de Três Pontas (MG), cidade onde o músico cresceu. Desta relação, saiu ainda River Phoenix (Carta a um Jovem Ator), de 1988. Milton viajou ainda às profundezas da Floresta Amazônica para produzir, com a participação de nomes como Davi Kopenawa e do próprio Phoenix, Txai (1990), parte de uma campanha de proteção aos povos nativos, lançada pela União das Nações Indígenas.

Em 1994, Canção da América (1979) deu voz e melodia a mais um momento nacional de desespero: a morte e os funerais de Ayrton Senna, que tinha a música como uma das preferidas dele.

O que faltaria? Impossível dizer, mas Milton fez mais, muito mais. Fez teatro na companhia de Chico Buarque e Edu Lobo, com O Grande Circo Místico. Participou do movimento Nordeste Já. Foi tema de escola de samba no Carnaval do Rio. Trabalhou com Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mercedes Sosa e Herbie Hancock, para citar alguns nomes.

E, em 2022, tem rodado o Brasil com a turnê A Última Sessão de Música – que, como o nome já diz, marca a despedida dos palcos.

São muitas gerações de Miltons.

A voz de Deus

“A voz de Milton Nascimento tem poderes especiais”, diz Paulo Costa Lima, compositor, membro da Academia Brasileira de Música e professor titular de composição e teoria musical na Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Rapidamente atravessa o mundo das significações de palavras e habita esse além da significação, como se fosse mesmo um lugar da experiência do sagrado. Essa voz nos acolhe, nos envolve, nos abraça, se solta na amplidão das estradas... na verdade, ela é a própria amplidão”.

Costa Lima dá à voz de Milton uma faceta de outro mundo, quase etérea. “A amplidão de ao mesmo tempo dar corpo aos significados da poesia e observá-los de longe, ultrapassá-los. As vogais são essenciais para Milton. Assim como o deslumbramento da extensão da voz, não se trata de falsete, é tudo uma cadeia só de som, como se estivéssemos diante de uma moringa mágica com seu sopro enternecedor... no entrelugar do nada (e de tudo) que a música promete como jardim familiar e inacessível”.

Neste sentido, poucas canções revelam de forma tão avassaladora o dom vocal de Milton quanto Beatriz (1983), composta por Chico Buarque e Edu Lobo para O Grande Circo Místico. Em cinco minutos de marés melódicas imprevisíveis, o cantor faz uma ode apaixonada à titular bailarina dos seus sonhos, atingindo com a mesma graça a nota mais alta da música – incorporada na palavra “céu” – e a mais baixa – na palavra “chão”.

Sobre as melodias, quem guarda memórias e vivências marcantes com Milton é Carlos Prazeres, maestro, regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica da Bahia. “Quando criança, entendi que Milton era a expressão máxima do nosso País e a voz deste para o mundo. É a ele que recorremos quando estamos tristes, como nas mortes de Senna e Ulisses Guimarães; ou ainda quando estamos felizes e esperançosos, como nas Diretas Já. Mais tarde, quando atuei como maestro da série MPB & Jazz, do meu amigo e pai postiço Wagner Tiso, é que tive, pela primeira vez, a felicidade de reger Milton. Ali entendi porque ele usa tanto os óculos escuros. É que sua luz é muito forte”, opina o maestro.

“Em cada uma das três vezes em que nos encontramos no palco, digo, sem medo de errar, foi das coisas mais extraordinárias que vi na vida. Ao longo do tempo, no entanto, procurei desconstruir um pouco o Milton épico de minha infância para este dar lugar ao Milton do amor da minha maturidade. E Mistérios passou a ser minha canção favorita dele”, conclui, fazendo referência à canção lançada em parceria com o grupo Boca Livre, no álbum Clube da Esquina 2, de 1978.

Outra opinião contundente sobre a importância de Milton Nascimento para a música – e a própria história – brasileira vem de Luciano Aguiar, músico da banda Matita Perê e jornalista. “Milton é um gênio em meio a um coletivo genial. O Clube da Esquina, do qual ele é o catalisador e expoente maior, é a música popular mais moderna desde o século XX”, opina.

“Como apontou [o compositor] Ivan Vilela, difícil alguém inaugurar tantas frentes musicais, seja na complexidade rítmica, permeada por compassos híbridos, na complexidade harmônica, que carrega em polimodalismos fundidos aos traços tonais, ou na abstração moderna das letras. E na garganta de Milton, todo esse desregro se torna palatável em canções como Vera Cruz, Clube da Esquina, Maria Três Filhos, Cravo e Canela (um samba em três tempos), Leila, Trastevere e Cadê. Milton é MPB, samba, rock, jazz, pop, andino, fusion, é caminho ao centro do Brasil e da América, é do mundo, é Minas Gerais”, finaliza Aguiar, citando o célebre verso de Para Lennon e McCartney.

De fato, como perguntou Caetano Veloso em Podres Poderes: “Será que apenas os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais nos salvam, nos salvarão dessas trevas, e nada mais?”.

*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

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