CADERNO 2
Paul McCartney completa 80 anos como símbolo de mudanças culturais
Cantor possui anos de carreira e passou pelas principais transformações no século XX
Por João Paulo Barreto | Especial A TARDE
Nenhum jornal noticiou à época. Mas no dia 6 de julho de 1957, um evento de importantíssima relevância aconteceu durante uma festa nos jardins de uma igreja em Liverpool, cidade portuária da Inglaterra. Neste dia, um garoto de 15 anos chamado James Paul McCartney se tornou amigo de um jovem de 16 anos chamado John Winston Lennon. Em um exercício de imaginação, se tal evento não tivesse acontecido por qualquer razão, seja um ônibus quebrado que impedisse um dos dois de estar ali naquele momento, ou se, por ventura, uma chuva torrencial caísse durante aquele dia de verão adiando a festa, o século XX teria sido outro.
Tal data, em 2022, completa 65 anos. O mais jovem dos dois rapazes chega aos oitenta em sua longevidade plena. O outro, infelizmente, foi brutalmente retirado de nós aos quarenta. Mas este relato aqui propõe algo que vai além da falta que John faz. Essa breve homenagem é sobre o marco alcançado pelo eternamente jovem, mas, agora, octogenário, Paul McCartney. Ou, para alguém que alcançou algo para além da simples "fama", ser reconhecido apenas por "Paul" define sua importância dentro dessa muitas vezes fugaz e insípida Cultura Pop. No caso de Sir Paul, nada de fugaz ou insípido pode adjetivar sua sólida trajetória artística.
Fama vs. sanidade
Em sua biografia autorizada, Many Years From Now, escrita por Barry Miles e lançada em 1997, o autor relembra a ocasião em que Paul lhe contou acerca de um passeio a cavalo que fez com sua então filha mais jovem, Stella, nascida em 1971. Durante a cavalgada, o eterno beatle ouviu da criança uma estranha pergunta que ressoou profundamente em sua mente e foi de encontro a algo que durante todos aqueles anos de estrelato lhe fizera refletir. "Você é Paul McCarney, não é?", perguntou seu rebento. Stella ouvira falar do tal músico na escola como se ele fosse uma figura diferenciada do seu próprio pai.
No livro, Miles aprofunda essa impressão através das palavras do próprio Paul, afirmando que ele está consciente dessa outra persona que só em parte se relaciona com ele.
"Sempre tive essa coisa da diferença entre 'ele' e 'eu'", explicou Paul ao seu biógrafo. "Ele está no palco e é famoso. Eu sou apenas um garoto de Liverpool. Mesmo na minha idade, ainda me sinto a pessoa que tenho sido desde que me lembro, desde os cinco ou seis anos. Sinto-me o mesmo cara e, claro, sou ele mesmo. Todos os troços que aconteceram depois não chegaram a afetá-lo tanto assim. O que eles afetaram foi a figura lendária que eu talvez estivesse encarnando", disse Paul no mesmo depoimento ao livro.
A questão do equilíbrio psicológico diante de tamanho status de sucesso alcançado pelos Beatles; o modo como ele lidou com isso nas últimas seis décadas; a forma como a fama refletiu em sua visão de mundo e foco em seu bem-estar; a sua notória tendência à vida doméstica e familiar. Em sua separação entre o homem "Paul McCartney" e o símbolo cultural que esse nome representa, o ser humano filho do casal James e Mary McCartney alcançou em sua serenidade um modo de não se tornar escravo de seu próprio sucesso.
"De vez em quando, paro e penso: 'Puta que pariu! Sou Paul McCartney! Que viagem! Paul McCartney!'", comentou Paul na mesma conversa com Miles. "O nome já soa como uma lenda. Mas é claro que a gente não vai querer ficar pensando muito assim, porque a coisa alucina. Existe a tentação de acreditar nisso tudo, de ser e de viver essa lenda. E há também a tentação de usar a lenda em vez de vivê-la. Quando saio em turnê, fico feliz por ter a lenda. Não gostaria de tentar entreter estádios lotados sendo apenas um cara comum", brinca o beatle.
Influências no Brasil
Outro hitmaker e compositor multi-instrumentista, Guilherme Arantes define Paul de modo direto: "No aspecto musical, ele é impecável como contrabaixista. Cravou uma marca e linhas de baixo históricas que fizeram com que os Beatles tivessem um alicerce único no pop mundial e na história do Rock. Para mim, como contrabaixistas, ele, o Sting (The Police) e o Chris Squire (Yes) são pilares", exemplifica Guilherme para A TARDE.
"Paul McCartney me parece que cumpria uma função que seus lóbulos intuitivo e racional se alternavam nessa lobotomia dos Beatles. Ali, ele cumpria uma função ordenadora. Era a disciplina da música dos Beatles. Sua melodias têm um rigor melódico maior do que as das músicas do Lennon. Então, essa competição fez com que essa química Lennon & McCartney fosse imbatível", pontua Guilherme.
Ainda em relação a essa disciplina do compositor de She's Leaving Home, Arantes vai além e o compara a Johann Sebastian Bach. "Ele consegue as músicas mais sucintas e mais geniais, como Hey Jude e Yesterday, que são canções minimais. Ele é o mais assertivo musicalmente. Consegue ser o mais sintético e, portanto, o mais bachiano", descreve o compositor de clássicos como Meu Mundo e Nada Mais, Planeta Água e Coisas do Brasil.
Disciplina, genialidade, equilíbrio, vida familiar, vida saudável e respeito aos próprios limites. "Desejo a você uma boa morte", lhe disse uma senhora irlandesa certa vez, causando-lhe um inicial susto, mas, em seguida, fazendo sentido em sua mente e despertando-lhe uma consciente fagulha em seu instinto de compositor. A canção que surgiu desse encontro se chama The End of The End, pepita escondida em seu disco de 2007, Memory Almost Full. Na letra, um pedido não de modo mórbido, mas consciente de uma existência plena: "No dia da minha morte, quero que piadas sejam contadas e histórias de antigamente sejam desenroladas feito tapetes nos quais crianças brincam e se deitam enquanto escutam essas histórias".
Poucos compositores podem falar com tamanha naturalidade e sem dramatização barata sobre sua própria finitude. Aquele que escreveu Eleanor Rigby, Maybe I'm Amazed, The Long and Winding Road, Let it Be e outra obras que pavimentaram a estrada da música na era moderna é um deles.
Que esse final tarde a chegar. Feliz aniversário, Paul.
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