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ENTREVISTA

“Ter um dom não significa que algo lhe foi dado", diz João Machado

Herança do Pai, exposição do fotógrafo baiano, abre dia 30 na Fundação Pierre Verger

Por Chico Castro Jr.

20/03/2023 - 8:00 h
Foto da exposição Herança do Pai, do fotógrafo baiano João Machado
Foto da exposição Herança do Pai, do fotógrafo baiano João Machado -

Parte da espetacular produção iconográfica do fotógrafo baiano João Machado poderá ser vista pelos seus conterrâneos a partir do fim deste mês, quando a Fundação Pierre Verger abrir a mostra Herança do Pai, uma apurada seleção de fotografias captadas na romaria de Bom Jesus da Lapa.

Esta é a segunda exposição do projeto 16 Ensaios Baianos, promovido pela Fundação, com o apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia. As 23 imagens da exposição e as demais que vão integrar o catálogo foram escolhidas pelos fotógrafos Célia Aguiar e Paulo Coqueiro e pelo coordenador cultural da Fundação Pierre Verger, Alex Baradel, numa curadoria coletiva.

“A edição se deu por critérios notadamente plásticos, poéticos e emocionais. Nós nos esforçamos para escolher imagens que fossem características do olhar de João. A Festa de Bom Jesus da Lapa já foi muito fotografada, provavelmente por Verger pela primeira vez, no início dos anos 1950, mas consideramos muito original a forma de João ver e fotografar a peregrinação”, afirma Paulo Coqueiro.

“Assim, nossas escolhas não se pautaram tanto pelos aspectos de contexto da festa, e se dirigiram sobremaneira para as imagens menos descritivas, menos documentais, que justamente criam a autenticidade do um ensaio de João”, acrescenta.

Para Célia Aguiar, a força de João está no pleno domínio da linguagem – tanto que ele é capaz de faze-la evoluir: “É o amadurecimento da linguagem, o pleno domínio do que se passa à sua frente e transformar esse entendimento em uma imagem que reflete suas aspirações. E João, sem dúvida, tem um forte domínio de aspectos técnicos, como o tratamento de luz, notadamente as fotografias tiradas em contraluz, assim como uma grande originalidade nos enquadramentos”.

Falando pela Fundação Pierre Verger, Alex Baradel conta que, as próximas exposições do projeto 16 Ensaios Baianos trarão trabalhos de artistas ainda desconhecidos. “Buscamos também atrair pessoas pertencente de grupos que tenham pouca representatividade, que precisam ampliar seu espaço na cena da fotografia baiana. Isso inclui perfis tão diversos como mulheres, fotógrafos do interior da Bahia, pessoas de origem indígena ou afrodescendente. Nosso desejo é alternar a escolha de trabalhos já consolidados, como é o caso dos dois primeiros ensaios apresentados - Ricardo Prado e João Machado - com os de outras pessoas com trabalhos menos conhecidos”.

A seguir, João Machado fala de sua trajetória e olhar únicos na Bahia.

De uma casa de taipa no interior da Bahia para as páginas de alguns dos maiores jornais do mundo é um salto e tanto. Te espanta até onde você já chegou? Como se sente ao repassar essa magnífica trajetória em sua cabeça?

Às vezes eu me dou conta que a ficha não caiu quando olho pra trás e vejo onde tudo começou e da forma que tudo começou. Eu faço fotografia há trinta anos e nosso encontro foi lá nos meados dos anos 1990, quando cheguei em São Paulo sem saber o que queria da vida e como seria o futuro. Hoje, ter uma foto publicada em grandes veículos do mundo, em grandes revistas, ser visto como um grande fotógrafo na área da fotografia documental, que é a área em que eu atuo, passando pelo fotojornalismo, pela fotografia social, pela fotografia de estúdio, eu me sinto um vencedor, graças a Deus. Às vezes ficha ainda não caiu mas eu creio que o melhor ainda está por vir. Porque são sementes que plantei lá atrás. Com muita dignidade, com muita honestidade, princípios que aprendi com meu pai. Venho de uma família de origem humilde do interior da Bahia e hoje ser reconhecido como um dos grandes nomes da fotografia nacional é um motivo de orgulho não só pra mim como pra todos aqueles que acompanharam a minha trajetória. Eu só tenho que agradecer a Deus e continuar esse processo, continuar essa trajetória. Eu aprendi que ter um dom não significa que algo lhe foi dado, significa que você tem algo a dar. E hoje o que mais penso é compartilhar todo esse aprendizado, tudo de bom que já aconteceu comigo eu faço questão que aconteça com outras pessoas que vem do mesmo destino. Que vêm de origem humilde e que sonham em vencer na vida.

A luz natural parece ser um fator inescapável em sua produção, dado o seu imaginário original. Como é essa relação com a luz em seu trabalho? Você espera aquela hora exata do dia? Acorda cedo, ou espera o fim da tarde e mede a luz? É praticamente um diálogo com o sol, confere?

Eu tenho uma boa relação com a luz porque a fotografia documental nos permite conhecer bem de luz, conhecer bem os lugares, fazer o mapeamento da região onde você vai fotografar para conhecer todas essas nuances. Depois que passei a fazer cor, em 2004, uma das coisas pelas quais mais lutei foi para ter uma originalidade na minha paleta de cor. Hoje, o que predomina na minha fotografia são os tons quentes do amarelo da última luz do dia e os tons frios da primeira luz da noite. São horários-chaves que uso pra fotografar, sempre no período da manhã, na primeira luz do dia, e no final da tarde, a partir das quatro e meia da tarde. Eu trabalho esta luz quente até umas 18h, 18h30 e a partir daí eu trabalho a luz fria. Então, já são horários e técnicas que busco na minha fotografia que fazem que eu tenha essa identidade fotográfica.

O que mais te fascina, o que mais atraiu seu olhar na questão dos romeiros em Bom Jesus da Lapa? É a presença humana, as expressões nos rostos, a interação entre personagens e ambiente, tudo isso e mais alguma coisa junto?

Quando eu cheguei em Bom Jesus da Lapa em 2002, eu comecei fazendo com película, com filme preto e branco, e assim que eu voltei a São Paulo fiquei encantado com a amplitude do evento, com a grande quantidade de pessoas, uma festa totalmente diferente do que já tinha feito na vida e presenciado. Eu me deparei com este romeiro que tem uma característica original, esse sertanejo, que carrega seu chapéu branco com sua fita verde, que simboliza a esperança e a paz e adentrei neste universo da romaria de Bom Jesus da Lapa com muita peculiaridade. Eu trabalho este olhar, estas técnicas, essa luz e principalmente o ser humano, porque antes de ser romeiro ele é um ser humano e ele faz todo um sacrifício para viajar, ele às vezes deixa a família, não sei as condições que deixam, uns vêm de barco outros vem de caminhão. Eu tento buscar dentro de toda essa trajetória esse mais fiel registro, essa foto que fala por si, esse clique que seja tão original quanto eles.

Com a cultura digital, parece que todo mundo é "fotógrafo", é smartphone com câmeras sofisticadas, filtros etc. Como é sua relação com essa disseminação, esse império da imagem? Desvaloriza ou ressalta o trabalho dos profissionais como o senhor? Por outro lado, como o senhor se relaciona com esses recursos digitais todos?

Eu sou a favor das tecnologias porque a gente vive hoje num mundo tecnológico, digital. O que mais cresceu nos últimos tempos foram os dispositivos móveis, captura de imagens, principalmente na época da pandemia, quando nunca se viu tanto curso de fotografia, centenas de cursos apareceram e o mundo hoje tá a cada dia mais remoto. Mas eu tenho algumas restrições em relação a esses dispositivos. Eu tenho uma frase que diz: Eu não tenho um celular pra fotografar, eu uso uma câmara para me expressar. É uma inversão de valores. O que foi feito para falar tá sendo vendido para fotografar e o que foi feito para fotografar está sendo deixado de lado. Hoje o que você menos vê são as pessoas que usam uma câmara para fotografar. E também o que mais se vê hoje é a quantidade de fotógrafo que surge todos os dias. A pessoa dorme e acorda fotógrafo. E ele pode ser um fotógrafo new born para fotografar bebê, pode ser fotógrafo social para fotografar casamento, pode ser um fotógrafo de estúdio para fazer fotografia corporativa, que tá na moda. Mas não se dorme e acorda um fotógrafo documental, não se dorme e acorda um fotógrafo artista. É necessária a busca, e necessário o mergulho, é necessário adentrar no universo, é necessário conhecimento, história. Como já dizia Ansel Adams, você não fotografa com uma câmara, você fotografa com os livros que você lê, os filmes que você assiste, com as pessoas que você ama. Ou seja, você fotografa com sua cultura.

Quando o senhor fotografa o sertão ou os romeiros, na sua cabeça o que o senhor prioriza mais: o registro mais documental ou o belo quadro estético? Como o senhor equaliza essas duas vertentes, conseguindo resultados tão extraordinários?

Eu fotografo o sertão porque o sertão é minha vida, o sertão é minha pátria, eu fotografo as minhas origens eu fotografo o sertão das minhas origens. Em 1993, em uma das minhas viagens de férias quando eu cheguei em Xique-Xique com uma câmara película e um filme Fuji Neopan ISO 400, eu vi que tudo começou ali , naquele mês de junho, quando eu passei a fotografar as minhas origens basicamente tudo que eu estava buscando para fotografar, tudo que eu estava fazendo era o que eu tinha vivido na infância, ali foi um reencontro com a minha a memória afetiva. E só aprimorei esse meu conhecimento, aprimorei o meu olhar aprimorei meu trabalho , aprimorei os horários de buscar essa luz, de buscar esses personagens e hoje eu fotografo esse sertão de forma fatiada de janeiro a dezembro. Sempre eu busco dentro desse universo sertanejo sua diversidade, sua festa, seu folclore, suas crenças, suas religiosidades. Tudo o que acontece eu quero registrar.

Herança do Pai, exposição fotográfica de João Machado / Abertura: 30 de março, 18h / Fundação Pierre Verger Galeria (Rua da Misericórdia, 09, loja 1, Centro Histórico) / Visitação: de segunda-feira a sábado, 9h às 19h.

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