ENTREVISTA
João Jorge Rodrigues: “O racismo não descansa, é uma luta constante”
Fundador do Olodum e presidente da Fundação Palmares diz que será preciso “recriar e refundar” a instituição
Por Divo Araújo
O fundador do Olodum, João Jorge Rodrigues, ainda não tomou posse como presidente da Fundação Palmares, o que só deve acontecer em março, mas já está trabalhando bastante. E não é para menos: depois da polêmica gestão de Sérgio Camargo – que se referia ao Dia da Consciência Negra como “Dia da Vitimização do Negro”, só para dar um exemplo – trabalho é o que não vai faltar pela frente. Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, ele conta dos planos para a entidade e afirma que será preciso “recriar e refundar” a Palmares. Nos últimos anos, diz ele, a fundação deixou de existir como um órgão público para a população afrodescendente. Além dos planos para a Palmares, João Jorge fala sobre a história do Olodum, a importância dos tambores e de racismo estrutural no Brasil.
Depois de uma gestão hostil ao movimento negro como foi a de Sérgio Camargo, que chegou a chamar o Dia da Consciência Negra de “Dia da Vitimização do Negro”, como você encontrou a Fundação Palmares? Já dá para fazer um diagnóstico?
A Fundação Palmares deixou de existir como um órgão público para a população afrodescendente. Ela passou existir para o ex-presidente atacar o movimento negro, atacar pessoas da comunidade negra, da juventude negra. Ela passou também a funcionar num lugar muito ruim. E ela não desenvolveu nenhum projeto interessante no período em que ele (Sérgio Camargo) esteve à frente. Mais do que isso: a fundação passou a atacar personalidades negras, como Gilberto Gil, Alcione, entre outros. Em nenhum momento, exerceu o papel institucional que era a atribuição da Palmares, que é defender os afro-brasileiros, promover a cultura afro-brasileira. Por exemplo: uma grande discussão que se teve foi em relação à retirada do machado de Xangô do logo da fundação. Quer dizer, Xangô é patrimônio afro-brasileiro. Quando você tira esse símbolo da fundação e coloca uma bandeira brasileira, você renega a religiosidade plural que nós temos no País.
Diante desse quadro, o que fazer para reconstruir a Fundação Palmares? O que deve ser prioridade nesses primeiros momentos?
O que nós queremos de imediato é dinamizar a Palmares. É trazer a juventude para perto da fundação. Quero também que a fundação ouça as pessoas, os estados. Entender o que os movimentos sociais querem, mas não só do Rio, São Paulo. Vamos promover reuniões virtuais em Sergipe, Amapá, Acre, Rio Grande do Sul, Salvador, Santa Catarina... Para daí montar um plano estratégico. Essas serão as linhas de ação da Palmares. Nesse primeiro momento, além das comunidades quilombolas, a gente está pensando também na juventude negra nas periferias, empreendedorismo e o mundo digital. Porque a Palmares precisa ingressar no mundo digital, precisa ter um canal no WhatsApp, por exemplo. Precisa fazer reuniões virtuais. Os recursos da Palmares precisam chegar ao artista individual afrodescendente. Aquele artista que não é pessoa jurídica. A Palmares precisa ainda retomar as parcerias com as universidades, com os órgãos investidores. E, ao mesmo tempo, buscar emendas através de parlamentares parceiros. Ou seja, é um trabalho de refundação, reconstrução e de plantar uma energia positiva em volta da Palmares. Afinal, ela foi criada em 1988, ano da instituição da Constituição Federal, pelo movimento social negro. A fundação é o único órgão importante do governo federal que foi criado pelo povo para representar, hoje, 110 milhões de brasileiros. A Palmares não é um ministério, mas tem o papel importante de representar 110 milhões de brasileiros de origem africana, que tem culturas diversas, religiosidades diversas, e que precisam do apoio público.
Você citou algumas personalidades atacadas pela gestão anterior da Fundação Palmares. E tivemos aquele episódio da exclusão de nomes de uma lista de personalidades negras homenageadas, a exemplo da deputada Benedita da Silva, a escritora Conceição Evaristo, Elza Soares, Gilberto Gil e Martinho da Vila, entre outros. Primeiro eu queria saber como você, como expoente do movimento negro, recebeu à época essa medida? E como a fundação vai tratar essa questão daqui por diante?
Eu e todo movimento negro recebemos com muita tristeza a notícia de que personalidades citadas pela Palmares iam ser retiradas por causa da desconfiança do presidente anterior. Personalidades são personalidades. Você pode não gostar de alguma delas, mas ainda assim precisa respeitar. Felizmente, essa portaria foi barrada pelo Ministério Público. Portanto, os nomes voltarão. E vamos incluir também outras mulheres negras, que não estão tão bem contempladas ali. Então, o martelo de Xangô voltará a ser o símbolo da Palmares, os nomes vão retornar, a fundação vai para um novo lugar e atuar nesse Brasil contemporâneo intensamente. E alguns lugares vão ser importantes: Maranhão, Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, Santa Catarina, Amapá, Sergipe...
Você pretende então descentralizar o trabalho da Fundação Palmares?
A Palmares é um órgão federal e deve atuar em todo País. Temos o exemplo do Acre. Porque nunca fizemos nada no Acre? Vamos fazer algo. Nossas parcerias se darão, sobretudo, através das secretarias de Cultura, das universidades e com os municípios. Vamos fazer uma teia fantástica. Vamos esperar terminar o Carnaval. Logo a seguir, começaremos a implementar as ações para reorganizar a casa. Estamos agora num momento de escuta.
A gente sabe que, durante a gestão de Sérgio Camargo, existia um clima de insatisfação e até de assédio moral dos funcionários da Palmares. Qual foi o clima que você encontrou na Fundação?
Nós encontramos um clima de descontentamento generalizado e até de medo. Agora isso está sendo corrigido. Uma parte dos funcionários da fundação vai continuar, mas vai chegar também um monte de gente nova. O importante é que o método de trabalho vai mudar e não vai ter mais perseguição, mas essencialmente colaboração.
Você já falou um pouco sobre esse assunto, mas gostaria de aprofundar. A gente sabe que esse debate sobre racismo, reparação acaba ficando restrito aos ambientes mais intelectualizados. Como democratizar esse debate através da fundação?
A Palmares vai atuar onde está a maioria do povo negro. Estou falando das periferias de Salvador, de São Luís, do Rio, São Paulo... Historicamente, a Palmares sempre atuou mais na zona rural, onde estão as comunidades quilombolas. Mas, se a gente quer atuar junto ao povo negro, precisa atender também essas zonas urbanas. E tem muita coisa boa acontecendo nessas periferias. A produção cultural na periferia de São Paulo é fantástica, assim como no Rio, Salvador. Há também outra questão importante que vamos priorizar: boa parte do desenvolvimento negro é feito por mulheres negras.
Antes de passar para outros assuntos, eu queria que você falasse mais do fato da Fundação Palmares, nesses últimos anos, ter sido presidida por um negro que hostilizava o movimento negro de forma tão agressiva.
Sérgio Camargo foi um péssimo representante da comunidade negra. Ele entrou na fundação para representar os interesses do governo anterior e daqueles que são contra as mulheres, índios e negros. O fato é que o presidente anterior, em nenhum momento, representou os interesses da sociedade brasileira, da população negra. Ele foi colocado lá para atuar ideologicamente e dizer que não há preconceito, não há sofrimento, que não houve escravidão e que o país não precisa fazer nenhum tipo de reparação. Mas agora, felizmente, é outro momento. Nós vamos fazer com que a Fundação Palmares sirva de fato a população, sempre, claro, com um olhar voltado para a população afro-brasileira. A Palmares sempre foi liderada por pessoas com representatividade no movimento social negro. E com uma visão de apoio à população negra. Não essa visão de ódio, de intolerância, de perseguição religiosa.
Não só a Palmares, mas a cultura de forma geral foi tratada como inimiga pela gestão anterior. Nesse sentido, qual é sua expectativa em relação à gestão de Margareth Menezes?
Margareth trabalha em parceria conosco desde 1987, quando ela gravou a música do Olodum, “Faraó”. Tenho certeza que ela vai ser uma grande ministra e vai ter todo apoio da Palmares, apoio da Secretaria de Cidadania e Diversidade, o apoio do Iphan. A comunidade negra está vendo nela a oportunidade de ter uma mulher negra, nordestina e produtora de cultura no comando dessa área tão importante.
Em entrevista dada para a gente, Gilberto Gil disse esperar que Margareth represente no comando da Cultura o que ela já representa: uma mulher afro-brasileira, com todas as responsabilidades ligadas a herança africana. Qual é a responsabilidade dela e sua, nessa área cultural, com a herança africana?
Margareth Menezes é uma menina da Ribeira, uma mulher da Ribeira, de Salvador, defensora da luta individual e coletiva do povo negro. Se ela fosse americana, ela seria pop. Ela só não é pop aqui por causa do racismo sistêmico e estrutural. Mas, ainda assim, agora ela chegando ao ministério da Cultura é uma vitória incrível de uma mulher poderosa, da cultura. E tenho certeza que o País vai se orgulhar disso. Lembre: quais foram os últimos representantes da Cultura que o país se orgulhou? Para ocupar esse espaço é preciso ter história individual, ter história coletiva. Então, para mim, depois disso é o céu ter uma mulher como Margareth, mulher nordestina, negra, compositora, cantora, produtora de cultura popular no comando da Cultura. Da mesma forma que eu, como produtor de cultura, de Carnaval, autor de diversas ações nesse campo, tenho minha história até chegar a Palmares. Não é apenas alguém que pensa essas questões. É alguém que tem botado o bloco na rua durante os últimos 40 anos. Que tem feito Carnaval, feito ações no cenário nacional, internacional. Acredito que isso me dá uma expertise para dirigir a Palmares.
Falando um pouco de Carnaval, depois de dois anos sem festa por conta da pandemia da Covid-19, como você está vendo essa retomada nesse novo momento?
Hoje estamos aqui no Pelourinho, no espaço do Olodum, e vamos fazer um Carnaval incrível, homenageando os tambores, a batida do coração. Amanhã (sexta de Carnaval), às 16h, vamos sair do Pelourinho, mais uma vez pelas ruas daqui, passando por Alaíde do Feijão, que é simbolicamente importante, com a galera cantando nossas canções: “Avisa lá”, “Requebra”, “Faraó”... E contribuindo para um entendimento melhor da história dos tambores, da batida do samba-reggae, da batida do coração. Esse caminho da eternidade que o Olodum está trilhando. Vamos agora, em abril, fazer 44 anos de fundação do Olodum. São 43 carnavais, 45 países visitados... E temos o Bando de Teatro Olodum, a Escola Olodum, uma fábrica do Olodum, uma linha de literatura do Olodum, e estamos publicando livros. E temos realizado seminários e conferências sobre direitos humanos, sobre as mulheres. O Olodum é o diamante mais precioso do Carnaval de Salvador.
Diante dessas novas atribuições da Fundação Palmares, como está sua relação com o Olodum hoje?
Temos uma nova gestão representada por Marcelo Gentil, Jorge Furtado, os novos diretores. Eu estou ajudando apenas como cidadão. A ideia é que, logo depois do Carnaval, o Olodum vai seguir o seu caminho. E de onde eu estiver, vou poder ajudar. Margareth também vai poder ajudar. Gil foi ministro e continuou na música. Não são atividades incompatíveis, muito pelo contrário.
Depois de todos esses anos de estrada, o que representa o Olodum na formação da identidade de Salvador, da Bahia e do Brasil?
O Olodum é o grupo, a instituição que abriu caminho para todo povo afro-brasileiro para uma nova identidade cultural. Levou a Bahia para o mundo. É uma marca brasileira em evidência na Copa do Mundo, um símbolo no Carnaval, na educação... Ou seja, é uma das marcas brasileiras mais poderosas já criadas no Brasil.
Ainda sobre o Carnaval, você já lembrou que este ano o Olodum vai homenagear os tambores, a “batida do coração”. Queria que você falasse um pouco da relação do Olodum com os tambores, e deste instrumento com a cultura baiana de forma geral.
Os tambores são uma herança dos africanos que vieram para cá escravizados. Eles têm um significado muito importante não só para o Olodum, mas também para Ilê Aiyê, o Badauê, para todos os blocos afros e também para criação do samba-reggae. E, ao longo do tempo, os tambores saíram da cozinha, saíram do fundo do palco e foram para frente. E ganharam o mundo, com Neguinho do Samba, com o Olodum, na batida do samba-reggae, e formou-se com isso uma história que não começa aqui. Começa muito antes, com o povo de Benim, de Angola, de Gana, do Congo. É um instrumento de comunicação com os orixás, com o Divino, comunicação com o corpo humano. É um instrumento que tem uma sintonia com o coração. Nós já falamos dos tambores no Carnaval. Os tambores dentro da história da comunicação, da escrita ao Twitter. Agora estamos falando dos tambores como saúde. Batida de coração é saúde. O coração, quando para, o corpo morre. O coração é central. Na cultura africana, o coração é o órgão mais importante. Estamos falando também da eternidade. Porque, de agora em diante, quando se escrever e falar na história do Pelourinho, na história da Bahia, vai se falar do Olodum.
Como você vê a questão do racismo estrutural no Brasil hoje? O senhor vê alguma evolução nessa questão?
Infelizmente, o racismo estrutural no Brasil e na Bahia ainda é muito forte. Tem a ver com a violência que sofre a população negra, que morre todos os dias. Tem a ver com a falta de apoio ao Carnaval, tem a ver com a falta de assistência às mulheres negras. O racismo não descansa, não tira férias. Todo dia se reinventa e aparece de outra forma. É uma luta constante.
Dentro disso que você falou, a gente vê que os jovens negros são as principais vítimas da violência. Muitas vezes da própria violência institucional. Você vê alguma solução a curto, médio prazo para isso?
Semana passada eu estava em São Paulo e muito se falou sobre a violência policial, a violência do Estado, contra o racismo. A própria CBF, nesses dias, se pronunciou contra o racismo. Na Copa do Mundo nos fizemos uma campanha junto com a CBF contra o racismo no futebol. Não dá para continuar assistindo esses fatos lamentáveis e não ter uma ação do Estado brasileiro, do Judiciário, da sociedade. A luta contra o racismo não pode ser mais uma luta somente do povo negro, tem que ser de toda a sociedade. A pergunta que precisamos responder: nós queremos continuar com isso? O Estado brasileiro, o Estado da Bahia, querem continuar com isso? Essa é a pergunta que nós todos precisamos responder.
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