TOQUE DE PIONEIRO
Misturas fizeram alquimia que gerou transformações no axé music
Das raízes da axé music até hoje, misturas enriquecem a música
Por Ícaro Lima

O ano de 1985 marcou a história do Brasil em diversas frentes. Naquele momento, Tancredo Neves foi eleito presidente de forma indireta, encerrando o período de 20 anos de ditadura militar; Ayrton Senna conquistou o primeiro campeonato mundial de Fórmula 1; e o Rock in Rio nasceu, atraindo mais de um milhão de pessoas em dez dias de evento.
Esses acontecimentos ecoaram rapidamente pelo País, mas houve um outro, que começou de forma tímida e ganhou força em poucos anos, até conseguir também ser reconhecido por grande parte dos brasileiros. Nascia a axé music.
O momento que marca o início do movimento é o lançamento do LP Magia, de Luiz Caldas. A obra, com dez faixas, incluindo a estrondosa Fricote, foi um sucesso, e é tida por muitos como a afirmação das concepções de uma nova musicalidade que já vinha se formando nos anos anteriores. É aí que entra o toque especial dos precursores e pioneiros, que araram todo o terreno antes e o cultivaram até que brotasse a axé music.
Como explica o jornalista e pesquisador musical Luciano Matos: “Dá para falar de vários artistas, o próprio Chiclete [com Banana], Lui Muritiba, Novos Bárbaros, Gerônimo [Santana]. Um disco importantíssimo dessa formação é o Bahia Jamaica, de Jorge Alfredo e Chico Evangelista. Todo esse pessoal já produzia uma sonoridade, algo que teria muito a ver com que virou a axé music”.

Luciano destaca também os ritmos e instrumentos musicais essenciais para que a axé music encontrasse uma identidade capaz de ser reconhecida com facilidade.
“A gente tinha os blocos afro, os afoxés, o trio elétrico com a guitarra baiana e, aos poucos, é como se essas coisas fossem se encontrando. Moraes [Moreira] é o cara que promove esse encontro de forma mais concreta. Ele grava algumas músicas, consegue encontrar uma levada no violão que os afoxés fazem, e cria uma coisa ali. Então, eu acho o Moraes fundamental nisso. Acho que até o próprio Luiz Caldas consideraria ele como o avô da axé music”, comenta.
Misturas produtivas
Foi nesse mesmo período que artistas já consagrados da música nacional até então - como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Baby do Brasil [è época, Baby Consuelo], Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor - experimentaram novos sons, que absorviam muitos elementos de manifestações culturais populares nas ruas de Salvador.
“Acho que esse sentimento que rolava não foi algo que Luiz Caldas, do nada, pensou e fez. Rolava, na cena musical, uma movimentação que resvalou naquilo. Só que Luiz era ‘o cara’: multi-instrumentista, muito novo, ele já estava puxando o trio do Tapajós. Então, ele foi quem conseguiu aglutinar aquilo tudo. Lançou um disco que impactou tudo e mudou a história. Por isso, tem todo sentido o [disco] Magia ser esse marco de fundação", explica Luciano.
Vários outros personagens contribuíram de forma importante para a formação da axé music, como a cantora Sarajane, que misturou ritmos como lambada, merengue e samba-reggae para embalar os corpos dos fãs além da Bahia. Eternizada pela música A Roda, ela ajudou a popularizar outros artistas baianos durante diversas participações no programa Cassino do Chacrinha, da TV Globo. A letra da música - que começa com o inesquecível “Vamos abrir a roda / enlarguecer” - também foi uma das fontes de inspiração do grupo teatral Los Catedrásticos, ao criar o Recital da Novíssima Poesia Baiana, espetáculo de imenso sucesso à época.
Houve também a contribuição de grupos que se transformaram em máquinas de sucessos e mega-hits, como a Banda Mel, dona de clássicos como Protesto do Olodum, Prefixo de Verão e Baianidade Nagô.
Outro grupo essencial para o amadurecimento da axé music foi a banda Reflexu's, que apresentou letras mais voltadas para temas sociais e que se conectavam de maneira mais próxima com a identidade do público.
“A banda Reflexu’s dialogava com Olodum, com blocos afro. Tem ali Madagascar, Senegal, Alfabeto do Negão e Libertem Mandela. Pela primeira vez, era uma banda baiana falando da negritude daquela forma, do Pelourinho, fazendo sucesso nacional”, relembra Luciano.
De volta para o futuro
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Apesar de chegar aos 40 anos com demonstrações de firmeza, a axé music, na opinião de Luciano Matos, passou por transformações que fizeram alguns elementos surgidos na criação do movimento ficarem de lado.
O pesquisador observa que diminuiu a preocupação, por parte dos artistas e bandas, de absorver características, costumes e representações de outros ritmos. Nesse cenário, ele destaca o nascimento do maior fenômeno do Carnaval de Salvador na última década: o BaianaSystem.
“Na época em que o Baiana surgiu, não tinha uma banda nova chegando com a música autoral, sabe? E falando assim: ‘Olha, é outra coisa aqui’. Porque as bandas que surgiram da axé music faziam menção ao sucesso da axé music. Lançavam uma música ou outra, mas era uma banda de sucessos da axé music. Quando o Baiana surge, é rompendo tudo”, explica Luciano.
Na avaliação do pesquisador, o grupo - que parte de inspirações na guitarra baiana e nos sound systems jamaicanos, passeando por gêneros como eletrônica, pagode, samba-reggae, entre outros - inovou também ao aproveitar elementos da axé music e conseguir renovar a cena ao atrair novos públicos para o Carnaval.
“É música autoral, resgatando coisas que tinham sido, inclusive, rejeitadas na axé music. A guitarra baiana fez parte no começo, depois foi completamente negada. Os próprios blocos afro, os compositores negros, completamente rejeitados. Então, o que essa galera retoma é o que a axé music perdeu”, avalia.
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