AVALANCHE DE ERROS
Além das polêmicas extra filme, ‘Emilia Pérez’, de Jacques Audiard, fracassa
Filme fracassa duramente ao intentar fazer um musical sobre uma traficante mexicana que muda de sexo
Por Rafael Carvalho - Especial para A TARDE
![Karla Sofía Gascó e Zoe Saldana em cena de 'Emilia Pérez'](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1300000/1200x720/Alem-das-polemicas-extra-filme-Emilia-Perez-de-Jac0130640300202502071847-ScaleDownProportional.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1300000%2FAlem-das-polemicas-extra-filme-Emilia-Perez-de-Jac0130640300202502071847.jpg%3Fxid%3D6549117%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1739200130&xid=6549117)
Um cineasta francês resolve fazer um filme musical que se passa no México, mas filmado em locações na França, com elenco majoritariamente de não mexicanos e que lida com dois temas nos quais há pouco esforço em estudar a fundo: o narcotráfico e a transição de gênero.
Mesmo com tantos problemas de concepção e conceito, Emilia Pérez, dirigido por Jacques Audiard, vinha conseguindo um grande destaque internacional desde que estreou no Festival de Cannes. Ali, venceu o Prêmio do Júri e de atuação feminina para as atrizes principais. Mais do que isso, na atual temporada de premiações, está em todos os principais eventos, incluindo as 13 indicações ao Oscar, feito inédito para uma produção de fora dos Estados Unidos.
Na trama, uma narcotraficante (Karla Sofía Gascón), ainda na sua identidade masculina, contrata uma advogada insatisfeita com seu trabalho (Zoe Saldaña) para que ela cuide de sua transição de gênero às escondidas. Na verdade, Manitas del Monte, como é conhecido no submundo, quer encerrar sua carreira do crime, mudar de gênero e refazer a vida como uma mulher nova.
Assim nasce Emilia Pérez que, para se redimir de todo mal praticado enquanto chefe de um poderoso cartel de drogas, resolve fundar uma ONG para ajudar os familiares das pessoas mortas ou ameaçadas pelo crime organizado no México. O único problema é que ela possui filhos com a esposa (Selena Gomez) e não quer ficar longe das crianças, além de ainda manter ciúmes da agora ex-mulher.
As polêmicas que surgiram recentemente em torno do filme e, principalmente, sobre o comportamento e as opiniões de Sofía Gascón – foram divulgadas postagens de suas redes sociais com conteúdos racistas e islamofóbicos, além dela ter criticado a própria premiação do Oscar em anos anteriores – parecem ter minguado as chances do filme no próprio Oscar e atingido em cheio sua reputação.
Mas nem precisava disso para ver o quanto Emilia Pérez é uma produção cheia de contradições e imprecisões narrativas. Longe de bairrismos – porque agora a produção brasileira Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, começa a se tornar favorita para o Oscar de Filme Estrangeiro –, não é difícil perceber não apenas os erros de representação que vemos em cena, como também fica evidente uma trama cheia de furos de roteiro e um desenvolvimento que chega a ser desinteressante.
Crime e gênero
A ideia de representação não é, de fato, o forte do filme. A começar pela forma como a personagem trans é posta em tela. Sua mudança de gênero está muito mais a serviço da necessidade de aparentar ser uma persona diferente diante da sociedade, a fim de fugir de um passado inglório, mais do que indica uma vontade latente de assumir uma identidade feminina.
É claro que isso não tem de ser uma imposição generalista. Emilia Pérez não precisa ser um espelho da maioria das mulheres trans, como se representasse esse coletivo por completo – ela é, no fundo, um caso muito específico.
Mas ao mesmo tempo, ao construí-la dessa forma, o filme reforça um estereótipo da transgeneridade como alternativa de escape e não como completude do indivíduo nos seus desejos, anseios e formas de existir no mundo com outro gênero diferente daquele com que nasceu.
A questão do ser feminino nunca é discutida por ela ou por ninguém no filme, o que denota uma despreocupação sobre o tema e suas implicações na vida da própria personagem. Além disso, a mudança de comportamento dela depois da transição – feita através de procedimentos cirúrgicos – é muito pouco crível.
É como se, ao trocar de gênero, ela se tornasse instantaneamente uma pessoa boa e justiceira, arrependida de seus crimes.
Também a dimensão sociopolítica do filme em relação ao retrato feito do México, circunscrito apenas ao narcotráfico e ao mundo sujo dos cartéis, dimensiona muito pouco aquela cultura e sua gente. Não ajuda nada o fato do próprio cineasta ter afirmado que não precisava pesquisar muito sobre a cultura mexicana para fazer um filme como esse.
Fora isso, a trama policial, especialmente no terceiro ato, é bem mal resolvida e até moralista na maneira como retoma a agressividade de Manitas/Emilia.
Musical desproposital
É certo que, visualmente, Emilia Pérez tem méritos e qualidades. Audiard buscou fazer um filme vistoso, ainda que toque em temas pesados e controversos. A escolha por contar a história como um musical não necessariamente se justifica na trama, mas acrescenta uma dose de exotismo ao conjunto do filme.
Apesar disso, os números musicais são propositalmente desglamourizados se pensarmos em musicais recentes e mais clássicos (exemplos mais imediatos são La La Land ou a refilmagem de Amor, Sublime Amor). Aqui, os números são um tanto desengonçados e “imperfeitos”. Mas nem por isso as músicas precisavam ser tão desinteressantes como acabam se apresentando.
O roteiro, assinado pelo próprio diretor e baseado no capítulo de um livro francês sobre o crime no México, perde a chance de explorar seus temas com mais afinco; e depois que a personagem passa pela transição de gênero, a trama torna-se arrastada e sem muita força, até o clímax desconjuntado. Há, portanto, uma contradição aí ao preferir dar um tratamento visual afinado, ao invés de focar nas temáticas que precisariam de um maior cuidado.
Rita, a advogada interpretada por Saldaña, acaba sendo uma das personagens mais interessantes do longa – ela é a verdadeira protagonista do filme, apesar de ter sido indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante (um dos poucos prêmios, aliás, que o filme deve levar para casa).
Mas nem ela seria capaz de defender Emilia Pérez da avalanche de erros que tem cometido – dentro e fora das telas de cinema.
'Emilia Pérez' / Dir.: Jacques Audiard / Com Karla Sofía Gascón, Selena Gomez, Zoë Saldaña, Édgar Ramírez, Adriana Paz, Agathe Bokja, Mark Ivanir, Anabel Lopez, Shiraz Tzarfati / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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