ESTREIA
Após sucesso de ‘Parasita’, sul-coreano Bong Joon-ho retorna ao cinema
Bong Joon-ho conta sátira sobre a exploração da vida operária em ‘Mickey 17’
Por Rafael Carvalho - Especial para A Tarde

Era de se esperar que depois do estrondoso barulho feito por Parasita – o filme sul-coreano tornou-se o primeiro longa-metragem em língua não inglesa a vencer o Oscar na categoria principal, depois de ganhar a Palma de Ouro em Cannes –, o cineasta Bong Joon-ho tivesse carta branca para fazer o que ele quisesse.
Logo foi anunciado que seu próximo trabalho seria a adaptação do romance Mickey7, escrito por Edward Ashton, e protagonizado por Robert Pattinson. Depois de pronto, o filme chegou a ficar na geladeira por um tempo e, curiosamente, não foi lançado para ser apreciado na última temporada de prêmios no final do ano passado, nem sequer foi selecionado por um grande festival como costuma acontecer com os filmes do diretor – mesmo as produções mais “comerciais” dele.
O filme acabou sendo exibido no Festival de Berlim, mas fora de competição e logo nos primeiros dias de evento, longe do burburinho em torno da campanha do último Oscar que estava prestes a acontecer.
Tudo isso criava uma suspeita enorme do possível desastre narrativo que viria pela frente.
Pois Mickey 17 vem na esteira de produções como Okja (2017) e O Expresso do Amanhã (2013), filmes assinados por Bong dentro do esquema de mega produções de estúdios hollywoodianos com grandes orçamentos – até mesmo visualmente os filmes são parecidos.
No entanto, se o longa de fato não supre as expectativas para se tornar um grande sucesso de apelo popular como o estúdio queria, também está longe de ser o fracasso que se antevia, caminhando com as próprias pernas e em um tom muito particular.
O filme novo tem na sátira e na ficção científica a base de um drama que interessa a um público mais específico. Ainda assim, é possível se divertir e também refletir sobre os condicionamentos impostos pelo capitalismo com as peripécias de um jovem que embarca numa viagem de expedição espacial cuja missão é explorar um novo planeta, o gélido Niflheim.
Mais-valia no espaço
Mickey, na sua estupidez ingênua, somada à ânsia de fugir da Terra por estar sendo perseguido por perigosos agiotas, acaba se alistando na expedição como um “Dispensável”, sem saber exatamente que função é essa e nem por que ninguém mais se alistou como tal. Só dentro da nave ele descobre que seu emprego é servir de cobaia humana, já que uma inovadora tecnologia permite reconstruir o corpo físico e restituir a memória de um ser humano após a morte. Ele então é pago para morrer constantemente e ser “reimpresso” por uma máquina.
É como se Mickey 17 estampasse literalmente a expressão “morrer de tanto trabalhar”. O filme faz isso, por sua vez, a partir da chave cômica e do absurdo da situação. A expedição espacial, por exemplo, a bordo de onde se passa grande parte da trama do filme, é chefiada por um suspeito congressista (Mark Ruffalo), levando a tiracolo sua esposa perua (Toni Collette). Ambos são figuras caricatas e exageradas que carregam um quê de trumpismo babaca, perigoso pela inconsequência e pelo desprezo aproveitador que nutrem pelas classes mais baixas.
E é com descaso que não apenas eles, mas quase todos na espaçonave tratam as muitas “reencarnações” daquele dispensável, o único a bordo da nave, algo possível apenas longe da atmosfera terrestre por conta das implicações éticas que isso provoca. Com tudo isso, o filme faz sua leitura ácida de uma mais-valia marxista aplicada a essa vida operária no espaço, com uma grande dose de absurdo e graça.
Apesar de lidar com as agruras de um ofício que o coloca na escala mais baixa da cadeia de trabalho, Mickey acaba se apaixonando por Nasha (Naomi Ackie), experimentando um pouco de prazer em uma existência fadada ao esquecimento e ao reiterado descarte. Seu melhor amigo (Steve Yeun), com quem fugiu da Terra, é um espertalhão que representa o lado aproveitador dos que estão por baixo, mas não se deixam vencer fácil.
As coisas começam a se complicar para o protagonista a partir do momento em que um acidente de exploração no desconhecido planeta deixa o rapaz ferido. Tido como morto, depois de ser levado pelas temidas criaturas que povoam o planeta – espécies de vermes gigantes, logo apelidadas de “rastejadores” – ele é reimpresso na nave, mas sem ter morrido antes, já que as criaturas poupam o rapaz.
Subverter o sistema
Mickey 17 caminha com os dois pés pela vereda da ficção científica e possui muitos elementos que podem agradar aos fãs do gênero – e, de fato, o personagem encarna uma cobaia humana que serve ao experimento científico em um planeta novo e desconhecido com muitas boas sacadas e certa lógica interna eficiente em termos de roteiro bem amarrado.
O filme respeita e trabalha muito bem com os elementos científicos, ainda que a trama em muitos momentos se alongue mais que o necessário em certas situações – sobretudo no terço final, com a rebelião dos rastejadores.
Falta dar ao filme um ritmo mais empolgante, algo que ele fez exemplarmente no Okja. O projeto novo parece realmente aquém do talento do renomado cineasta sul coreano. É certo que pesa sobre ele uma pressão pelo sucesso do filme, uma demanda que cruelmente vem muito mais do público e dos investidores do que dele próprio.
Bong parece se divertir com a história extravagante que está contando, assim como os atores parecem muito à vontade nos seus papéis – Pattinson funciona muito bem como paspalhão manipulado.
A exceção é um deslocado Mark Ruffalo, que poderia se soltar um pouco mais como o vilão hediondo e caricato que encarna.
Os temas sociais e humanos perpassam pelas frestas da ficção científica e rendem discussões pertinentes, sem que isso seja um peso martelado pelo filme, com uma aparente profundidade dentro de uma trama tão estapafúrdia e grotesca. A opção pelo humor é sempre muito arriscada por fazer suspeitar de seus resultados como algo mais marcante e depende muito de como o público o encara. Um passo arriscado após a seriedade de um Parasita, mas ainda assim uma aposta no mainstream para subverter e chacoalhar o sistema por dentro.
Mickey 17 / Dir.: Bong Joon-Ho / Com Robert Pattinson, Naomi Ackie, Steven Yeun, Mark Ruffalo, Toni Collette, Anamaria Vartolomei, Daniel Henshall, Patsy Ferran, Steve Park / Salas e horários: cineinsite.atarde.com.br
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