COZINHA, QUINTAL E FAMÍLIA
Com Edvana Carvalho, ‘Arroz de Hauçá’ encerra gravações esta semana
A TARDE visitou o set do primeiro longa de Camila Cordeiro Ribeiro
Por João Paulo Barreto
Existe um desafio para uma pessoa que mergulha na função de dirigir um primeiro longa-metragem que pode ser bastante intimidante. E se este filme for um processo criativo no qual o roteiro é de autoria dessa mesma pessoa, alguém cuja entrega na escrita e dedicação em pesquisas tornaram aquele projeto ainda mais valioso, a busca por uma equipe técnica e um elenco que trabalhe em uníssono com a visão dessa pessoa estreante na direção de longas se torna algo primordial.
A cineasta Camila Cordeiro Ribeiro, experiente profissional na função de diretora de arte e já tendo dirigido dois curtas-metragens anteriores, sabia da importância da busca pelo equilíbrio desses elementos na produção de Arroz de Hauçá, longa de estreia na direção, uma produção Tesoura Filmes e Raccord Produções, e que encerrou esta semana as gravações.
“O primeiro longa assusta em várias camadas, em vários lados. Para mim, de onde vêm as escolhas de quem está junto? Eu acho que as escolhas vêm muito da primeira conversa. De entender se a pessoa está disposta a conversar. Acho que esse é o primeiro passo. Porque tem muitos profissionais muito bons, mas pode correr o risco de não haver um diálogo. E isso era algo impossível para mim. Já tem muita gente fazendo o primeiro filme e com medo das pessoas", explica a diretora e roteirista Camila Ribeiro, em entrevista ao A TARDE.
“Pensei: 'Com meu filme, não posso ter medo'. Todo mundo sabe que é o meu primeiro. Todo mundo sabe que é um baixo orçamento e que essas já são questões sensíveis. E só faz sentido se a pessoa estiver disposta. Disposta a trocar, disposta a dialogar, a entender as minhas limitações, as minhas ignorâncias. Praticamente toda a equipe é composta por pessoas com quem eu trabalhei muitas vezes. São meus amigos pessoais. E isso me trouxe um conforto muito grande", celebra Camila.
"Ela me ganhou"
Dentre essas escolhas presentes em um diálogo e uma sintonia que vão refletir no citado uníssono criativo buscado por quem lidera a equipe, está o nome de Edvana Carvalho.
A atriz baiana , cujo rosto pode ser visto em Ó Paí ó (2007), Ó Paí ó 2 (2023), Receba! (2021) e na novela da Rede Globo, Renascer, foi o resultado da busca de Camila por alguém que tivesse a mescla exata de altivez e doçura que sua protagonista, Lurdinha, exigia: uma mulher que precisa dar uma notícia sobre sua saúde cujo impacto será grande para sua família. Para este momento, Lurdinha escolhe um almoço no qual decide transmitir aos filhos a receita do arroz de hauçá, prato no qual é especialista, e que remete a diversas lembranças familiares.
O modo como Edvana abraçou a personagem de Lurdinha denota bem a busca de Camila para apresentar à atriz o seu roteiro. "Ela foi me caçar no Rio de Janeiro", diz Edvana entre sorrisos durante o papo com o jornal A TARDE. "Eu estava fazendo Renascer, sem tempo até para respirar direito, porque eram muitas cenas, muito texto. Na primeira vez que ela me convidou, eu disse que não poderia ir. Porque ela queria fazer a preparação do elenco em setembro. E eu terminava a novela e ia fazer o meu solo, Aos 50 - Quem me aguenta?, no Rio de Janeiro. Respondi a ela que não tinha como eu fazer. Aí ela foi ao Rio pessoalmente para a gente conversar e me chamou para um café. Essa menina é virada no mói de coentro! Aí ela me ganhou", relembra Edvana.
O esforço de Camila para recrutar a atriz não foi em vão. Edvana reflete sobre a busca da diretora e como o teor do seu roteiro lhe foi importante na decisão de aceitar o trabalho "Eu pensei: 'como é que uma pessoa faz todo esse movimento'? Aí a gente foi se ajeitando com outras datas para poder estar aqui presente. E o que me ganhou, eu acho que foi mesmo a história, o roteiro. Contar sobre uma família preta, baiana, que, dentro do cinema, às vezes, a gente não tem esse lugar. Ou estamos em um lugar meio que marginalizado. E eu vi nesse filme essa possibilidade de contar uma história de uma família normal brasileira, que é preta e que está nesse momento de acolhimento por conta da notícia que Lurdinha precisar dar", observa a atriz.
Camila define seu filme e sua protagonista de modo a nos mostrar a desconstrução de alguém que se vê em uma necessidade física e emocional diante de seus entes queridos. "É sobre essa mulher que sempre cuidou de todo mundo, que sempre teve que ser forte, sempre teve que engolir sua emoções para ser um porto seguro, ser uma fortaleza para todo mundo. Pela primeira vez, ela tem que se permitir ser frágil, se permitir ser vulnerável, se permitir ser vista em um lugar no qual ela nunca foi vista. É sobre esse dia. É sobre uma mulher que sempre estava ali para todo mundo e, pela primeira vez, ela precisa baixar a guarda e se permitir ser vista em outro lugar por essa família", afirma a diretora.
Ainda sobre sua decisão de aceitar o convite de Camila, Edvana comenta que outro aspecto pesou em sua decisão: o de apoiar diretoras baianas. “Eu estava fazendo sucesso com Renascer, e as pessoas sugeriam que eu fizesse outras coisas no sudeste. Eu respondia: 'Não, gente. Vou voltar para a Bahia e fazer filme baiano com essa galera' Eu acho que tenho que servir a isso, também. Ir lá fora, fazer sucesso, é muito bom. Mas eu acho que tem o nosso lugar de a gente apoiar quem está começando. Porque eu também tive um momento no qual eu estava começando. E eu recebi apoio de pessoas. Então, eu precisava apoiar", pontua.
“Camila é uma mulher querendo fazer cinema. Uma mulher que está em um lugar no qual a maioria é masculina. Ela está fazendo o primeiro filme dela. Sabíamos do baixo orçamento e tudo. Mas eu acho que, às vezes, para a gente que está na finalização da arte, que é quem dá a cara, que é o ator, a atriz, para a gente é muito importante o roteiro. Se o roteiro nos ganha, e aí a gente vai", carimba Edvana.
Confie no espectador
Durante o processo de escrita do roteiro, entre 2019 e 2023, o diretora Camila Ribeiro também escreveu e apresentou uma dissertação de mestrado intitulada "Espelhos negros: o olhar de diretoras negras no criação de personagens negras no cinema nacional (2011 - 2020)", na qual se debruçou sobre os aspectos relacionados à representação no cinema brasileiro.
“Eu me incomodo muito com cenas explicitas de estupro, cenas explícita nas quais o corpo da mulher é exposto em uma lógica de poder, uma lógica de voyeurismo, de violência, com uma necessidade da violência explícita, sabe?", observa Camila. A diretora pontua caminhos oferecidos pelo Cinema contra esse padrão.
“Temos uma linguagem que tem tantos artifícios, conseguimos falar sobre qualquer coisa. Conseguimos trazer a sensação, o sentimento, a emoção. Por que precisamos ser tão explícitos? Por que temos que ir pelo óbvio? O espectador é inteligente. Confie nele", orienta a cineasta.
No processo de criação de Arroz de Hauçá, Camila norteou suas decisões como diretora nesses aspectos citados e, claro, contando com a sintonia de sua equipe para criar um filme cuja história se passa quase que completamente em um único cenário, no caso, a casa de Lurdinha, e em um único dia. "É um desafio muito interessante pensar em como posso fazer uma coisa muito bem feita, trazer o que queremos, mas tendo poucos elementos. E foi muito gostoso pensar junto com a equipe, com o elenco, como não deixar a peteca cair, sendo que o tempo todo a gente está no mesmo lugar. Como é que a gente consegue construir ritmo, trazer emoção, trazer a história passada, pensar no futuro?", finaliza a cineasta, deixando essa reflexão que define a confiança em seu espectador.
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