LUTO
David Lynch fazia sua audiência pensar para além do banal
Dono de uma das mais emblemáticas e autorais filmografias entre diretores norte-americanos
Por João Paulo Barreto | Especial A TARDE
"Há coisas que você não pode conseguir em qualquer lugar, mas sonhamos que elas podem ser encontradas em outras pessoas". A frase acima é proferida por um dos personagens de Twin Peaks (1989), pilar série de televisão que modificou o modo de se construir narrativas voltadas para a telinha. Na réplica para tal observação, uma pergunta bate pesado no dia de hoje: "Talvez os nossos sonhos sejam reais”. Acreditar em sonhos reais e como os mesmos podem ser encontrados em outras pessoas é justamente o sentimento que invade ao sabermos do falecimento do co-criador de Twin Peaks, o cineasta David Lynch, ontem, aos 78 anos.
Em sua obra cinematográfica e em seu citado marco televisivo, essa sensação lúdica a misturar a brutalidade (e o agridoce) do real com uma densa fuga para dentro dos sonhos (e dos pesadelos), sempre se fez presente e conduziu seus espectadores de maneira intensa, provocativa e distante de uma inércia ou comodismo narrativos.
Desafiando o convencional do Cinema, David Keith Lynch, desde seu primeiro longa-metragem, Eraserhead , lançado em 1977, disse a que veio em sua visão de mundo com seus personagens inadequados socialmente ou lutando justamente por seus lugares ao sol. Após já dez anos de carreira com vários curtas-metragens no currículo, seu filme de 1977 abriu-lhe portas com uma proposta ousada, trazendo em seu protagonista justamente um símbolo violento da inadequação social.
Com o sucesso de crítica, seu trabalho seguinte foi um teste doloroso para o espectador. Em O Homem Elefante (1980), na figura do deformado John Merrick (John Hurt), Lynch nos trouxe, sem qualquer traço de maniqueísmo barato, um retrato da desesperança perante o egoísmo humano.
Na inaptidão social de seu deformado personagem título, bem como na figura do Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins), médico cirurgião disposto a ajudá-lo, porém, uma fagulha de otimismo, mesmo que de maneira combalida, ainda surge.
Adaptação de um clássico
Os desafios de dirigir um blockbuster viriam a se apresentar no seu projeto seguinte, Duna (1984), adaptação da obra de Frank Herbert. Em visita ao set, o já idoso e combalido autor do épico de ficção científica, chorou e confidenciou a Lynch de forma emocionada: "É tudo o que eu imaginei", disse-lhe Herbert, entre sorrisos e lágrimas.
O aspecto de sonhos em suas obras passou a se fazer onipresente a partir de Veludo Azul (1986), noir moderno com Isabella Rossellini, Dennis Hopper e Kyle MacLachlan no elenco. Elementos cinematográficos aqui ajudaram Lynch a formar a ideia básica do neo-noir Twin Peaks, seu projeto televisivo seguinte, lançado três anos depois e tendo o próprio MacLachlan repetindo a parceria iniciada em Duna.
A partir desse ponto, uma identidade bem específica foi encontrada na arte cinéfila trazida por aquele homem de cabelos cujas mechas onduladas se tornaram uma de suas marcas. Seu cinema continuaria ainda mais desafiador de uma audiência preguiçosa acostumada a receber fórmulas narrativas mastigadas. Com o quebra-cabeça lúdico, mental e sexual de Coração Selvagem (1990), bem como A Estrada Perdida (1997) e o mesmo sentimento atrelado à obra-prima Cidade dos Sonhos (título nacional preguiçoso para Mulholland Drive, lançado em 2001), Lynch se consolidou como um diretor propenso a nos testar como espectadores. Mas não dentro de uma proposta arrogante, intelectualóide e pedante, mas, sim, nos respeitando como audiência.
Alta fidelidade
Curiosamente, Mulholland Drive seria seu penúltimo filme para o cinema, tendo sido lançado há 24 anos. Há 19 anos, em 2006, outro mergulho no subconsciente humano se fez valer com o intrigante Império dos Sonhos, seu último longa metragem. Antes, em 1999, ele também lançaria um mais palatável, mas não menos amargo (lembra que citei o aspecto agridoce?) História Real, último filme do veterano Richard Farnsworth, que seria indicado ao Oscar aos 79 anos pelo papel do homem que decide viajar o país em um trator no intuito de visitar seu irmão.
Lynch retornaria, ainda, ao universo de Twin Peaks com a emblemática terceira e final temporada, lançada em 2017, na qual voltou a abraçar o sonho. E, assim, realizando o de muitos cinéfilos. Músico, dirigiu diversos clipes, a exemplo de trabalhos do Duran Duran e do Nine Inch Nails. Também ator, atuou sob a batuta de nomes como John Carroll Lynch (nenhum parentesco) e Steven Spielberg, quando interpretou de forma brilhante o cineasta John Ford, outro engenheiro de sonhos.
Marcelo Costa, jornalista e editor do Portal Scream & Yell, definiu com precisão. "Nessa coisa toda da criação artística com ideias, imagens e palavras, David Lynch foi um dos maiores. Ele não fez apenas grandes obras, ele construiu um espaço totalmente pessoal, particular, uma tag #DavidLynch dentro do universo da Arte. Só os realmente grandes conseguem isso".
Fará falta.
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