GUERRILHEIRO DAS PALAVRAS
Documentário sobre Clóvis Moura estreia com entrada gratuita
Filme entra em exibição na SaladeArte Cinema do Museu

Por Maiquele Romero

No ano em que completaria 100 anos, Clóvis Moura – sociólogo, jornalista, poeta e historiador – volta ao centro do debate público pelas lentes do documentarista Carlos Pronzato. O filme Clóvis Moura, o protagonismo negro (2025, 80 min) estreia hoje, no Cinema do Museu, com entrada gratuita e debate pós-exibição.
A obra busca recolocar o autor no lugar que sempre lhe coube: o de um dos intelectuais essenciais para compreender a formação social brasileira e a lógica de resistência construída pelo povo negro.
Pronzato, teatrólogo, poeta e escritor, acumula cerca de 90 documentários e se consolidou como uma das vozes mais ativas do cinema político latino-americano.
Ele escolheu o Nordeste como espinha dorsal narrativa não apenas por questões logísticas, mas por entender que ali pulsa a matéria-prima da obra de Moura. O documentário percorre Amarante (PI), terra natal do pensador, e Teresina, ouvindo familiares, pesquisadores e militantes que guardam a memória viva do intelectual.
Quilombo: resposta política
Em sua vasta obra, que inclui Rebeliões da Senzala (1959), Os Quilombos e a Rebelião Negra (1981), Sociologia do Negro Brasileiro (1988), História do Negro Brasileiro (1992) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994), Moura revolucionou o modo como a historiografia compreendia o sistema escravista.
Influenciado pelo marxismo e guiado pela sociologia da práxis negra, ele afirmava que os quilombos não eram resquícios culturais, mas formas organizadas de resistência e contrapoder, criadas por pessoas escravizadas diante de um sistema baseado na exploração.
“Ele vem dar um soco, um pontapé numa estrutura que se considerava intocável, onde o mundo escravizado não tinha nenhuma potência histórica. Com Clóvis, passa a ter”, afirma Pronzato. Essa virada teórica ecoa até hoje nos estudos sobre raça, classe e desigualdade no país.
É em Amarante que nasce o jovem Clóvis Steiger de Assis Moura, ainda aspirante a jornalista, e onde se formam seus primeiros gestos literários. De lá surge Argila da Memória, livro fundamental de sua poesia, dimensão que o documentário faz questão de resgatar.
“Ao lado do pesquisador disciplinado e do homem político convivia o poeta, o ficcionista, o boêmio, o grande contador de histórias”, lembra sua filha, a historiadora Soraya Moura.
O filme também se aproxima do quilombo Mimbó, uma das comunidades quilombolas mais antigas e preservadas do Brasil, com mais de 205 anos. A ancestralidade pulsante do lugar ecoa diretamente na leitura de Moura sobre a rebelião negra. E o próprio Rio Parnaíba, paisagem afetiva decisiva em sua vida, completa o percurso: ali repousam suas cinzas desde 2003, por vontade expressa do autor.
Palavras e rostos
Pronzato define seu cinema como um gesto de escuta. “Eu sempre digo que uma palavra bem colocada vale por mil imagens”, afirma. Por isso, o filme se apoia em depoimentos longos, sem interrupções, numa estética de presença que ele chama de “olho no olho”.
Não há excesso de imagens de arquivo ou recursos audiovisuais que disputam a atenção: “A fluidez é dada pelas vozes. É um contínuo melodioso, harmônico, quase uma música para os ouvidos. Não temos as imagens atrativas que o cinema costuma ter, mas temos as pessoas falando, algo que se perdeu bastante com as tecnologias”, observa Pronzato.
Entre as vozes que estruturam o documentário estão Kabengele Munanga, antropólogo congolês-brasileiro e amigo pessoal de Clóvis; o sociólogo Fábio Nogueira, pesquisador de sua obra; e o historiador Petrônio Domingues. São eles que costuram, em camadas, o pensamento mouriano, sua atualidade e alcance político.
O filme também dialoga com a própria trajetória de Pronzato, autor de produções sobre Zumbi, Amílcar Cabral, Renato Freitas e outras figuras e lutas que compõem o mosaico das resistências negras e populares no Brasil e no mundo.
Mesmo assim, ele ainda não está satisfeito. “O dia que me sentir satisfeito, eu vou parar de trabalhar”, afirma. Mas reconhece a importância do documentário: “É mais um elemento de satisfação, digamos, de estar contribuindo com as lutas sociais e trazer um personagem como Clóvis Moura, que está pouco frequentado pela academia, mas que o centenário está recolocando, de alguma maneira, retirando do ostracismo para conhecimento de toda a nação”.
Resgate necessário
O centenário de Clóvis Moura passou despercebido por parte das grandes celebrações do 20 de Novembro, mas não por Pronzato. Para ele, o apagamento está ligado ao fato de Moura não ter seguido o percurso institucional das universidades. “Ele não era um intelectual ortodoxo, alguém formado pelas cadeiras acadêmicas. E isso contribuiu para silenciá-lo”, diz.
Ainda assim, seu trabalho moldou, e continua moldando, gerações de militantes e pesquisadores. Como lembra Soraya: “Meu pai tem uma importante contribuição sobre o negro brasileiro, situando-se nas regiões de fronteira entre história, sociologia e política, construindo sua trajetória ao dar sentido político à rebelião escrava e à luta dos negros contra a escravidão e o preconceito”.
Filme que provoca
Para Pronzato, a força do documentário está justamente em reabrir feridas históricas: “É um conteúdo atualíssimo. Estamos falando de temas que não estão resolvidos, nem serão rapidamente. É cutucar, provocar, debater o que é essencial: eliminar o racismo e as desigualdades sociais”.
O cineasta também vê sentido simbólico na estreia em Salvador: “a Bahia é o polo dinamizador desse tema. Não poderia ficar de fora como primeiro espaço de exibição”.
O diretor reconhece o estranhamento diante da ausência do nome de Moura em marchas e agendas dos movimentos negros. Ainda assim, vê na exibição na Cultne.TV, o primeiro canal da televisão brasileira 100% dedicado à cultura negra, e no Cinema do Museu, um gesto simbólico de reparação e estímulo ao debate.
“O primeiro impacto que eu pretendo é que tenham uma primeira informação sobre o tema”, diz. O segundo é provocar, cutucar, reacender discussões sobre racismo e desigualdade, “colocar o dedo na ferida e seguir andando”.
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