ESTREIA
Filmado em Salvador, ‘Café, Pepi e Limão’ retrata crianças em situação de rua
Capitães do asfalto
Por Rafael Carvalho

Café e Limão vivem nas ruas de Salvador e tentam ganhar alguns trocados fazendo ‘malabares’ nos sinais de trânsito. Certo dia, eles encontram Pepi sozinha nos arredores e fazem amizade com ela. Está formado o trio mirim que o espectador acompanha em Café, Pepi e Limão, dirigido pelos cineastas baianos Adler Kibe Paz e Pedro Léo.
O filme, já em cartaz nos cinemas, retrata a dura realidade de crianças e jovens que vivem em situação de rua.
O longa começa com a imagem interna dos passageiros de um ônibus comum, mas a câmera abaixa-se para mostrar garotos que estão escondidos na parte inferior do veículo, quase raspando o chão. O movimento de descida serve não apenas para revelar o esconderijo dos garotos, mas também é um indicativo de que o filme está interessado em retratar o underground da cidade de Salvador e a rotina cruel e perigosa de quem sobrevive nas ruas, com foco em crianças e jovens nessa situação.
O diretor Pedro Léo, em conversa exclusiva com A TARDE, contou que durante as pesquisas e vivências com pessoas em situação de rua, ele ouviu de uma das crianças essa história de se esconder debaixo dos ônibus. Dali surgiu a primeira imagem do filme e a vontade de contar casos como esse nas telas.
“Eu sempre estive próximo de crianças e pessoas em situação de rua, uma coisa que acaba acontecendo comigo. Eu cresci no Garcia, jogando bola na rua, então eu sempre tive contato com essas pessoas, algo sempre muito amistoso. E eu comecei a levar mais a sério isso. Eu já tinha dirigido um curta e estava pensando em fazer um longa-metragem. Comecei a conviver mais com essas pessoas, comer com eles, dormir com eles, entrar em buracos, dormir em pontos de ônibus”, confidenciou o diretor.
A partir disso, surgem esses personagens que, segundo o cineasta, são inspirados em diversas histórias de crianças que ele foi coletando durante o processo de pesquisa. Após a escrita do roteiro, Adler Kibe Paz entra também no projeto que levou um bom tempo para ser concretizado.
Duro amadurecimento
Vividos respectivamente por João Vitor Souza, Mari Nascimento e Leonardo Lacerda (depois de passar por testes de elenco com mais de 200 crianças e ensaios com o preparador de elenco Luiz Mário Vicente), Café, Pepi e Limão constroem uma amizade sincera, mas permeada pelas violências e crueldades que jovens assim experimentam nas ruas.
Enquanto Café tenta visitar o pai (Heraldo de Deus) que está encarcerado e Limão lida com a mãe (Fernanda Beling) completamente viciada em drogas, Pepi começa o filme sendo expulsa de casa pela própria mãe depois de ter sido abusada sexualmente pelo padrasto.
São personagens que acabam indo parar nas ruas por conta da desestruturação familiar, tentando constituir um laço de amizade que substitua esse ideal de família sempre à procura.
É possível lembrar aqui de Capitães da Areia, obra fundamental e tematicamente similar de Jorge Amado, sobre crianças em situação de vulnerabilidade social, mas Léo observa diferenças entre ambas as abordagens.
“Capitães de Areia deve ter influenciado porque a gente lê isso aqui na Bahia, nós vimos o filme também. Mas é uma obra muito romântica. A gente partiu para uma coisa mais visceral. Depois da pesquisa do filme, eu tinha que entregar uma coisa que valesse a pena pra eles. Fazer uma obra de impacto que mudasse essa visão social sobre os meninos”, pontuou Léo.
E, de fato, Café, Pepi e Limão retrata com muita dureza a vida nas ruas, sem maquiagem. Apesar de poupar o espectador de momentos mais gráficos de violência, ela está explicitada na tela, a partir das situações a que eles estão expostos. O filme lida com temas como prostituição, abandono parental, proximidade com o tráfico de drogas, dependência química, abordagem policial e civil.
Léo contou que o filme carrega mesmo a proposta de ser um relato cru dessas vivências: “Eu tinha que fazer uma obra que mudasse quem assistia. E, pelo menos, que entregasse uma reflexão forte, de coração esmagado, para você refletir as suas atitudes como cidadão”, afirma.
Possibilidade de afeto
Apesar de vivenciarem uma realidade dura nas ruas, os três protagonistas estabelecem uma irmandade como forma de proteção compartilhada, agregando com a chegada de Pepi ao grupo. São momentos de afeto que surgem por entre as frestas da dor de cada um, sem questionar as atitudes e caminhos seguidos por eles.
Pepi, por exemplo, se encanta pela possibilidade de estar mais próxima de um chefão local, que coordena também uma rede de prostituição. Apesar do risco e da entrada em uma vida difícil e degradante, para ela significa também certa dignidade.
“Quando conversei com meninas que foram abusadas e estupradas, elas falaram que a primeira coisa que elas queriam é se lavar. Elas ficam com nojo. E Pepi vai para a rua assim que é estuprada. Ela quer tomar um banho. Então a personagem busca proteção, mesma que seja uma situação complicada aquela ali”, diz Léo.
Nesse equilíbrio entre a dureza das ruas e certa possibilidade de afeto – muitas vezes representada pelo acolhimento ou mesmo adoção dessas crianças, seja por vias legais ou não, tanto por outros familiares da criança ou pessoas que se sensibilizam com aqueles jovens –, Café, Pepi e Limão naturalmente segue o caminho mais realista da dureza, sem muitas concessões.
“O filme traz uma reflexão e torna essas pessoas humanas. Tem gente que dá comida para um cachorro, mas não atende uma criança que está necessitada na rua. E são vistos como vilões. E eles não são nada disso”, observou o diretor.
“Se você estivesse naquela situação, o que você faria? O que você deixaria de fazer? Será que você teria uma vida tão correta?”, questionou.
Café, Pepi e Limão / Dir.: Adler Kibe Paz e Pedro Léo / Com João Vitor Souza, Mariana Nascimento, Leonardo Lacerda, Manu Santiago, Fernanda Belling, Jussara Mathias, Paulo Borges, Everton Machado, Heraldo de Deus / Salas e horários: www.cineinsite.atarde.com.br/em-cartaz
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