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19/10/2024 às 3:00 | Autor: João Paulo Barreto

CINEINSITE

Mostra reflete o perigo da influência religiosa na política

‘Auto de Vitória’ espelha a filmografia do saudoso cineasta baiano Geraldo Sarno

Lúcifer e Satanás discutem o Brasil
Lúcifer e Satanás discutem o Brasil -

Em 1966, em plena ditadura militar, o jovem Geraldo Sarno, aos 28 anos, filmou seu segundo trabalho, o curta-metragem Auto de Vitória. O filme trazia uma reflexão sobre as influências da igreja nas decisões políticas e sociais do Brasil ao colocar o diretor, oriundo da cidade de Poções, na Bahia, diante de um cortejo religioso, no qual um veículo militar conduz o fêmur do padre José de Anchieta, da Basílica de Aparecida para a Catedral da Sé, em São Paulo.

A imagem é simbólica. A fé de um país sendo acompanhada por seus fiéis, mas conduzida e manipulada por militares durante a ditadura militar. Após o registro histórico, com as imagens a desenhar aquela ideia de poder atrelado à religião, o filme muda sua face para uma encenação na qual Lúcifer e Santanás discutem o futuro do Brasil. A montagem do texto, baseado na peça Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício, escrita pelo próprio Padre Anchieta em 1595, reflete a ideia de um país no qual Deus não dita mais qualquer regra, cabendo a demônios traçar as decisões. Nada mais perceptível como um golpe pesado da realidade no Brasil neopentecostal que ascendeu de 2016 em diante.

Auto de Vitória se encontrava "perdido", e o próprio Geraldo Sarno, que viria a construir uma sólida carreira como cineasta durante as décadas seguintes, não sabia do paradeiro da obra. O diretor de Viramundo (1964) e de filmes que refletem exatamente a condição do poder em um país marcado pelo constante êxodo de seus cidadãos em busca de melhores condições de vida e de sua identidade como povo, viria a falecer em 2022, sem ter acesso ao curta. Coube a um acaso e a curiosidade do biógrafo de Geraldo, o jornalista Piero Sbragia, a localização da obra na Cinemateca Nacional, em São Paulo.

Lugar certo, hora certa

“Foi por acaso. Eu quero ser honesto. Foi completamente por acaso. Em 2023, eu estava fazendo uma reportagem na Cinemateca. Na época, eu trabalhava para a TV Globo e tinha uma pauta sobre aquele projeto da Cinemateca de digitalizar e restaurar os filmes de nitrato”, relembra Piero.

“Conversando com a Gabriela Sousa de Queiroz, que é a diretora técnica da Cinemateca, perguntei a ela sobre o filme. Eu vinha pesquisando algumas coisas do Geraldo Sarno no banco de dados de lá e encontrei algumas fotografias e até um roteiro de Auto de Vitória. Expliquei a ela que este era um filme que o Geraldo estava procurando, mas que ele faleceu sem saber onde estava”, relata o pesquisador.

Logo, o acaso e a sorte, bem como uma presença de forças cinematográficas do bem, transformaram uma simples pergunta em um importante achado. “A Gabriela me explicou que havia a possibilidade de o filme estar em um depósito ao qual eu não teria acesso pela busca que fiz. Ela, então, usou um sistema interno da Cinemateca para fazer uma busca, mas não dava para dizer se ele estava na leva de rolos que sobreviveram ao incêndio (ocorrido em julho de 2021), mas provavelmente ele estaria no galpão em que ficam os filmes que a gente não sabe a qualidade. São filmes que ainda não passaram por restauro. Para minha surpresa, ela faz uma pesquisa ali na hora, e encontra o filme", comemora Piero.

Assistindo ao curta e observando as dificuldades que, à época, teve a produção, o biógrafo de Geraldo Sarno destaca o contexto da gravação do filme que, tendo em sua primeira metade o registro documental do citado cortejo, acaba por trazer uma percepção do modo como o diretor detinha o poder de percepção narrativa e montagem. “Auto de Vitória é um trabalho surpreendente, porque é um filme muito ousado, em que o Geraldo busca adaptar um texto do padre José de Anchieta, que é um texto difícil e muito alegórico. Um texto que, na verdade, está muito mais dentro de um contexto de disputa de poder entre Portugal e Espanha do que, necessariamente, do Brasil, apesar da história se passar aqui", observa Sbragia.

“A grande ironia de Auto de Vitória é que, enquanto ele está filmando a parte teatral da obra, eles descobrem que o fêmur do padre José de Anchieta está vindo para o Brasil. Então, eles param a filmagem ficcional do filme e resolvem acompanhar o cortejo. Na capital, eles se deparam com aquela multidão. A Praça da Sé tomada. Uma coisa gigantesca ali, para saudar aquele fêmur como se fosse uma pessoa. E é muito interessante, porque o Geraldo faz questionamentos ali para as pessoas. São questionamentos no curta que eu acho que tem tudo a ver com a temática dos filmes dele. Porque Auto de Vitória é um filme que fala da cultura popular. É um filme que fala da religião e, principalmente, de um olhar político sobre a religião", carimba o jornalista.

Montagem intelectual

Nessa premissa de se adaptar uma discussão europeia a um contexto brasileiro, o filme de Geraldo Sarno oferece ao seu espectador uma análise do período histórico do país a partir de um afiado olhar crítico e acompanhado da influência cinematográfica de Sergei Eisenstein à montagem do filme. Assim, cria uma rima visual e temática muito forte com Sertânia, que seria lançado somente em 2020, fechando ciclo de vida cinematográfica de Sarno, e espelhando toda a filmografia do diretor de Viramundo.

“É um filme dialoga muito com o Sertânia porque a montagem de Auto de Vitória, que é do Silvio Renaud, traz aquilo que o Eisenstein chamava de montagem intelectual. O Geraldo está mostrando uma coisa, mas ele está falando outra. Então, enquanto o arcebispo fala, por exemplo, de democracia, o Geraldo e Renaud mostram uma imagem de um tanque de guerra. Quando eles falam de paz, o filme mostra uma imagem da Força Republicana, que, depois, deu origem à Polícia Militar. Então, esse filme tem muitas sutilezas que eu acho que dialogam demais com a obra do Geraldo", aponta Sbragia.

Brasil Viramundo

Nos depoimentos de populares captados por Geraldo durante Auto de Vitória, se confirma esse foco do diretor em, desde o começo, salientar a importância dessa discussão social no país. Piero Sbragia reflete sobre essas escolhas e como as mesmas confirmam a necessidade dessa reflexão.

“Estamos vivendo hoje, em 2024, um processo de restauro do Brasil. Eu não acho que esses fenômenos sociais e políticos sejam inéditos. Já tivemos marcha de integralistas em São Paulo, e que apanharam de rebeldes. Nenhum desses fenômenos como Bolsonaro, Pablo Marçal, nada disso me assusta. Porque eu acho que são movimentos cíclicos”, salienta o jornalista.

“Mas o que me parece e que é cada vez mais evidente, cada vez na nossa cara, é que o Brasil é um país que nasceu da violência. O Brasil nasceu, basicamente e simbolicamente, do estupro das mulheres indígenas, cometido pelo homem branco europeu. E esse estupro dá origem ao roubo de terras, ao roubo de propriedades, a posse de objetos, ao tráfico de pessoas, que começa com os indígenas e, depois, com os negros escravizados. E vai culminar com outras violências, como a intolerância religiosa, a falta de moradia. Tudo isso é contemplado na obra de Geraldo. O Geraldo discute essas violências todas e que, de certa maneira, representam esses êxodos que vivemos no Brasil", finaliza o biógrafo de Sarno.

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