CINEINSITE
Queer abraça o homoerotismo de um personagem arrogante, mas perdido em sua busca de se entender no mundo
Longa-metragem de Luca Guadagnino é lançado este ano
Por Rafael Carvalho
Queer é o segundo longa-metragem que Luca Guadagnino lança somente este ano. Depois de Rivais lidar com as tensões sexuais entre seus três jovens protagonistas, Guadagnino permanece no terreno dos desejos íntimos, mas dessa vez de modo muito mais aberto e provocador.
Conta a história de Lee (Daniel Craig), um norte-americano que vive como um bon vivant na Cidade de México, nos anos 1950, apesar de manter um estilo de vida solitário em meio a outros expatriados de seu país, além de ser um viciado em drogas. Até que um dia conhece Eugene (Drew Starkey), por quem se apaixona e passa a viver uma aventura não apenas sexual, mas de carência emocional.
O filme é baseado no livro homônimo escrito por William S. Burroughs nos anos 1950 – tido por muitos estudiosos como uma história de caráter autobiográfica –, mas que só pôde ser publicado nos anos 1980 devido ao seu conteúdo abertamente explícito, não apenas por retratar o homossexualismo, mas também a dependência química. A adaptação do roteiro foi feita por Justin Kuritzkes, o mesmo que escreveu Rivais.
A parceria entre os dois tem rendido bons frutos até então, já que o longa anterior é um dos melhores trabalhos de Guadagnino. Com Queer, mais do que reconstituir uma época e um microcosmo específico, o diretor retoma o debate sobre afirmação homossexual, temática com que ele já havia trabalhado em Me Chame Pelo Seu Nome (2017).
Mas se naquele filme o diretor retratava uma história de descoberta da sexualidade, em Queer essa aceitação é muito mais ampla e afetiva, como uma forma de se entender no mundo sendo um homem gay, mais do que meramente a compreensão de uma orientação sexual.
Lee vive em uma espécie de bolha, interagindo com outros homens gays, especialmente de sua casta e mesma condição socioeconômica. A própria maneira como o filme retrata os personagens latino-americanos não deixa de expressar certo desprezo por eles, enquanto os norte-americanos são personagens mais vívidos e luminosos, ainda que estagnados naquilo que parece um fim de mundo.
Rótulo em mutação
Ao filmar essa história nos anos 2020, Guadagnino e Kuritzkes resgatam o modo como o tema do homoerotismo tem sido pensado e retratado nas artes em geral. O termo “queer” possui uma conotação diferente nos dias de hoje. À época em que o filme se passa, chegava a ser utilizado como algo pejorativo para designar pessoas LGBT+, especialmente homens gays – as outras denominações sequer eram utilizadas.
A própria legenda do filme traduz, inclusive, a palavra como “bicha”, dita pelo próprio protagonista na primeira fala do filme para se referir a si próprio.
Não deixa de ser uma maneira de compreensão de si, ao mesmo tempo em que se pega um termo pejorativo e, pela força do uso naturalizado entre os pares, passa-se a lhe tirar o tom preconceituoso. Hoje, o termo é um rótulo muito mais abrangente e afirmativo.
A rede de contatos estabelecidos entre aqueles homens no filme – o protagonista mantém especialmente uma amizade com o dono de um bar frequentado por esses expatriados perdidos, vivido por Jason Schwartzman – reforça esse caráter de comunidade que já havia ali.
Mas é no encontro com Eugene que Lee desperta não apenas para seus desejos mais primitivos, mas também para a necessidade de uma conexão mais íntima com alguém. A diferença de idade entre eles e certa recusa do mais jovem em se entregar totalmente a um relacionamento, além de deixar Lee apreensivo, amplia seu estado de solidão. É como se não bastasse mais ao personagem apenas os encontros sexuais fortuitos e se buscasse outra forma de se completar no mundo.
O filme trabalha certos tiques fantasiosos que revelam os desejos afetivos de Lee, já que seus impulsos sexuais são claros e óbvios, deixando para mais tarde a ampliação de um tratamento mais delirante que o filme irá assumir. Isso faz com que a narrativa nesse primeiro momento dê voltas ao redor de si mesma, diluindo tais anseios e evoluindo pouco a trama.
Alucinação simbiótica
As aventuras sexuais dos personagens predominam na primeira parte da trama e servem como chamariz para a promoção do próprio filme – ainda mais por ter um ator másculo, que viveu nos últimos anos o ícone de virilidade que é James Bond. Porém, Queer envereda também por outro terreno muito caro ao autor do livro original: as experiências com drogas e todo tipo de alucinógenos.
A segunda parte do filme dedica-se a uma viagem empreendida por Lee, em companhia de Eugene, para o sul do continente, mais especificamente para as florestas do Equador, onde se ouve falar sobre o uso de uma erva alucinógena, utilizada pelos indígenas, conhecida como yagé – ou, mais claramente, a ayahuasca.
Lee quer experimentar viagens mais intensas, algo que o ópio, a cocaína e a heroína não são mais capazes de oferecer. Burroughs é muito conhecido por escrever sobre ou sob o efeito de drogas – vide seu romance mais celebrado, Almoço Nu (o livro gerou uma adaptação tresloucada para o cinema pelas mãos de David Cronenberg).
Essa segunda metade do filme dedica-se, portanto, às aventuras lisérgicas experimentadas pelos personagens, com a ajuda de uma médica (Lesley Manville) que se embrenhou pelas matas para estudar a potente erva.
O filme é dividido em dois capítulos, mais um epílogo, e nessa segunda parte parece que estamos em um outro filme, inicialmente mais interessante. Isso porque muda a geografia, mas apenas reitera as questões que movem o protagonista, especialmente sobre a afirmação de si no mundo e a necessidade de comunhão com alguém a que se ama.
QUEER / Dir.: Luca Guadagnino / Com Daniel Craig, Drew Starkey, Lesley Manville, Jason Schwartzman, Henrique Zaga, Omar Apollo, Andra Ursuta, Andres Duprat, Ariel Shulman, Drew Droege, Michael Borremans, David Lowery, Lisandro Alonso e Colin Bates / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes