ENTREVISTA
‘Ser crítico de cinema é considerar um filme como um organismo vivo’
Jean-Michel Frodon - Professor e crítico de cinema
Por João Paulo Barreto, especial para A TARDE
Ex-editor-chefe da pilar Cahiers du Cinéma, uma das mais tradicionais revistas a priorizar o pensamento crítico cinematográfico, o professor, escritor e crítico de cinema Jean-Michel Frodon esteve no Brasil recentemente, para realizar masterclasses direcionadas à análise cinematográfica.
Também com passagem profissional pelo jornal Le Monde atuando na mesma área, o francês, autor de mais de trinta livros sobre o processo de compreensão do cinema através da crítica, além de aprofundar a história do cinema de seu país natal, bem como um livro dedicado ao trabalho do cineasta chinês Jia Zhangke, conversou com o jornal A TARDE sobre a fugacidade da análise fílmica rasa em uma época na qual a internet e as cotações oriundas de locais como Rotten Tomatoes e Metacritic tornam a imersão nessa mesma reflexão um exercício que requer ainda maior esforço – tanto para escribas quanto para leitores interessados em algo mais do que apenas achismos.
Na mesma conversa, Frodon trouxe um aprofundamento de seu processo de escrita e um destrinchar do modo como a criação de um texto requer processo analítico pessoal e da obra cinematográfica a ser destrinchada. Confira!
Em um mundo regrado pela internet, no qual a pressa em se fazer presente on line, em ganhar likes e seguidores, move essa velocidade em demonstrar opiniões que, não por acaso, muitas vezes carecem de aprofundamento, como o senhor analisa esse fenômeno da conectividade, na qual todos parecem ter um pensamento formado em relação aos filmes e uma postura pretensamente crítica para com o cinema?
Claro que o fenômeno que você acaba descrever existe. É bem massivo. Mas, para mim, não tem nada a ver com a crítica de cinema. É algo que sempre existiu em diferentes formas. Mas é somente sobre comentar filmes. Os filmes fazem as pessoas falarem. Todo mundo que assiste a um filme, especialmente quando se assiste a um filme no cinema, sente a urgência de falar sobre ele. Isso é ótimo. Deveríamos ficar bem felizes pelos filmes terem esse efeito nas pessoas. Mas isso não é crítica de cinema. Isso é o direito de todos em se expressar sobre como se sentiram sobre um filme. Mas para além disso, há a existência da crítica de cinema, que significa o fato das pessoas pararem um tempo para construir uma proposta, uma opinião delas, por um meio o mais bem escrito e explicado possível. E isso também acontece on line. Mas, claro, de forma bem menor do que o fenômeno descrito antes. Do mesmo jeito que no Brasil tem o chamado boca a boca, o que acontece hoje é uma nova forma de boca a boca. E está tudo bem. Precisamos do boca a boca. É parte do que faz os filmes estarem vivos, comentados e discutidos de forma geral. Mas, dentro dessa imensa quantidade de palavras sobre filmes, há um processo bem mais específico de escrita da crítica de cinema, que exige bem mais da pessoa que escreve. E eu acho que isso também tem se aproveitado das vantagens dos dispositivos on line em geral. Esses meios preenchem jovens com o desejo de trabalhar com cinema, escrever sobre cinema, pensar sobre cinema e compartilhar isso. Traz um melhor acesso para se fazer isso, do que costumavam ter quando precisava ser uma pessoa contratada por um veículo como um jornal para se tornar apto a compartilhar o que se pensa sobre cinema e seu trabalho. Então, acho que são coisas opostas. Há dois usos diferentes das redes sociais e da internet como um todo. Mas não são somente as redes sociais. Há diversos blogs e outras formas, como revistas on line, que existem a partir da escrita de um grupo de pessoas. Geralmente, são jovens, mas não necessariamente. São pessoas que se juntam e compartilham suas ideias sobre um gênero ou sobre os filmes de um país específico ou um diretor específico etc. Isso está acontecendo . Vemos esse tipo de coisa. Não posso falar pelo Brasil, uma vez que não leio em português, mas em vários países onde vou vejo isso. É muito comum, na França e na Europa, no mundo da língua inglesa, por assim dizer. Mas, por exemplo, recentemente estive no mundo árabe e há jovens críticos árabes que estão construindo uma relação de muita atenção com o cinema através de ferramentas as quais nunca seriamos capazes de construir no mundo antes da internet.
Na função de crítico de cinema, eu sempre evitei a ideia reducionista atrelada às cotações de filmes usando estrelas e notas. E, hoje, espaços como o Rotten Tomatoes e o Metacritic parecem nortear tendências e definir opiniões sobre filmes. O que o senhor acha?
Ah, sim. Isso é um problema. Eu concordo totalmente com você. Lutei por toda a minha vida profissional como crítico contra a ideia de dar estrelas aos filmes. Porque, para mim, é o contrário da crítica de cinema. Crítica de cinema exige algo do escritor, mas, também, exige algo do leitor. Você precisa ler um texto, um artigo, e não somente receber uma opinião como se fosse um flash, dizendo se é bom ou se é ruim, esse tipo de distinção. Mas eu não estou dizendo que isso é algo ruim. Mas é ruim quando substitui a habilidade e a vontade de se aprofundar no entendimento ou de discordar do crítico. Não é uma questão apenas de concordar com crítico, mas, sim, de entrar em um diálogo e na possibilidade de, a partir do seu argumento, incluir um vislumbre do que o crítico está dizendo. Mas, realmente, é uma questão de ter essa relação mais longa. Obviamente, o sistema com as avaliações das estrelas já era um problema. E o Rotten Tomatoes, que era somente uma reunião de avaliações com cotações de estrelas vindas de várias mídias dentro de um conglomerado de textos, é o oposto disso e, em uma extensão maior, é, também, o inimigo da crítica de cinema. Este é o problema. E ele é parte de um problema maior, que é o poder do marketing. A crítica de cinema é parte de um grupo de ferramentas que são aproximações alternativas para o marketing dos estúdios explorar. Porque sabemos muito bem que o que é melhor recebido no Rotten Tomatoes é, também, aquilo que tem um melhor orçamento de publicidade, grandes estrelas e todo esse poder econômico que está por trás de alguns filmes e não por trás de outros. Especialmente quando se trata de produções independentes. Mas é uma questão que vai além da crítica de cinema. Há, também, outro grupo importante de pessoas que estão fora dessa lógica: os festivais de cinema. Festivais de cinema estão construindo outra relação para com os filmes, entre os mesmos e o público. Isso é o que marketing está fazendo. A ferramenta entre a crítica de cinema e os festivais é diferente, mas o efeito é similar e, muitas vezes, conectado. E isso é parte do que sempre vai ser uma posição minoritária. Ninguém nunca vai vencer o marketing em um futuro previsível. Não poderá vir do cinema, se isso um dia acontecer. Isso virá apenas de uma mudança social. Mas no contexto da dominação do marketing, há lugares para se fazer isso de uma forma diferente. E a crítica de cinema é uma delas. Os festivais de cinema são outra, talvez a pesquisa cinematográfica seja também outra. Isso significa que podemos ter uma boa quantidade de ações. E acho que devemos fazê-las.
Existe uma ideia de credibilidade atrelada à critica de cinema feita em veículos impressos e mais tradicionais que chega ao público que difere um pouco da enxurrada de textos encontrados na internet. O senhor acredita nisso?
Falando somente por mim mesmo, não em geral. Eu venho da mídia impressa. E há muitas razões pelas quais eu estou feliz por ter mudado para a internet. Minha escrita atualmente é quase totalmente on line, especialmente na França. Eu escrevo para mídia impressa na Espanha, na Coréia do Sul e nos EUA. Mas eu ainda me refiro aos leitores como lendo um objeto físico em suas mãos dessa forma. Mas eu acho, talvez esteja errado, mas eu acho que escrevo da mesma forma on line que eu costumava escrever para mídia impressa. Minha linguagem crítica e minha responsabilidade são as mesmas. Para mim, não há qualquer diferença entre as duas. E fico feliz pelo fato de que o que eu escrevo está disponível online. Porque alcança muita gente. E também gera muito diálogo com meus leitores, mais do que quando estava apenas no jornal impresso. E, claro, eu gosto disso. E também encontro pessoas em países distantes que leram on line o que eu escrevi na França. Eles não teriam lido se fosse somente na versão impressa. Eles não iram comprar o Le Monde ou a Cahiers du Cinéma. Então, eu gosto, mas tenho consciência de outras pessoas, especialmente jovens, aquelas pessoas que nasceram na era digital. Que são nativos digitais. Eu não sou um nativo digital (risos). Sou um nativo do impresso que migrou para o digital, permanecendo um nativo do impresso, por assim dizer. Tais pessoas mais jovens que nasceram na era digital têm uma relação em potencial com a escrita. E não somente com a escrita, mas, também pessoas que estão fazendo vídeos, conversando com a câmera, esse tipo de coisa. Eles usam linguagens diferentes. Acho que a maioria das coisas que eles fazem agora não é tão bom, mas alguns deles estão fazendo um bom trabalho e acredito que será algo que vai se firmar com uma boa quantidade de bons trabalhos feitos dessa forma. Mas não é o modo como eu trabalho. Eu, provavelmente, nunca devo trabalhar dessa forma, mas estou feliz que pessoas mais jovens estejam explorando as potencialidades de se discutir filmes cara a cara com a câmera, fazendo piadas com quem está assistindo, esse tipo de coisa. Pode ser OK fazê-lo, se for algo bem feito. Se for inteligente. Se não for algo que diminua a importância do assunto, etc. Outra coisa é que eu não acredito de forma alguma na total substituição. Há novas mídias que vêm se tornando mais fortes e mais poderosas que a mídia impressa. Mas a mídia impressa não está desaparecendo e não vai desaparecer. Está mudando, claro. Mas tudo muda, ainda bem. Porque se não mudar, morre. E não somente a morte, mas o congelamento, a imobilidade. Então, está mudando, do mesmo modo como próprio cinema está mudando, claro. E então, isso vai acontecer, mas ainda haverá a qualidade, o efeito e o benefício intelectual e financeiro no impresso de forma conjunta em torno das formas on line de se lidar com filmes em um senso geral.
No meu processo de escrita, eu sempre enfrento certa ansiedade, certo medo, e a busca por uma fagulha que possa ser alimentada com combustível de reflexão e análise crítica cinematográfica, algo que vai se construindo à medida que se debruça sobre o texto. Com o senhor acontece algo semelhante?
Sim. É exatamente desse modo comigo. E tem sido assim já há 45 anos. Espero que permaneça assim (risos). O momento que deixar de ser assim, eu vou ter que parar de escrever (risos). Porque seria enfadonho. Prefiro fazer outra coisa. Vou plantar tomates, que é algo que eu gosto de fazer. Mas enquanto houver esse tipo de empolgação e incerteza, continuo. Mas eu sempre fui um estudioso da escrita crítica. Quando começo um texto, eu não sei o que vou escrever. Eu realmente descubro coisas das quais eu não tinha certeza. Eu realmente descubro coisas das quais eu não tinha consciência através do processo de escrita. E isso mostra que a escrita em si precisa seguir por outro caminho em relação ao medo. Todo mundo pensa algo sobre um filme. Todo mundo. Cada espectador tem uma ideia e uma opinião. O que fazemos como críticos de cinema é que começamos com o que pensamos como qualquer pessoa. Provavelmente vamos pensar diferente, mas, de qualquer forma, é somente o ponto de partida, e através do processo de escrita, vamos elaborar algo mais que, espero, apareça antes de termos que compartilhar com os leitores. Para mim, isso é muito importante. Incluindo o que você disse em relação a essas pequenas dimensões de medo. Porque é uma incerteza. De algum modo, a cada vez, estamos pulando no vazio. Conhecemos o filme, conhecemos o diretor, conhecemos a história, conhecemos até mesmo o que acreditamos que sabemos em relação ao filme. Eu gosto. Eu não gosto. Eu percebo que isso remete a outros filmes, outras opiniões, que seja. Mas há mais. E é esse mais que é o mais interessante. E é isso o que cada um de nós precisamos descobrir através do processo de escrita para compartilhar com os leitores.
Encontrar esse ponto de partida, essa fagulha, é essencial para mim pelo fato de que não vejo como obrigação da crítica esgotar os filmes em todos os seus aspectos.
Sim. E é impossível dessa maneira falar de cada aspecto de um filme. Além de ser entediante ter simplesmente que marcar um x em questões. Ticar uma caixa ao falar da direção, da montagem, das atuações, do som, dos custos de produção, do figurino. Quem se importa? Uma pergunta muito importante é a relação que você tem com o filme. Para mim, fazendo isso, é como se o filme fosse um corte de carne. Você pode separar suas partes. Essa parte foi bem feira, essa outra parte, não. Ser um crítico de cinema é como considerar um filme como um organismo vivo. E mantê-lo vivo. Mantê-lo ainda mais vivo por causa da sua escrita. Claro que quando eu o encontrar, não irei cortá-lo em pedaços. Vamos interagir com vários elementos que não somos nem mesmo capazes de especificar naquele momento. Mas é algo sempre acurado entre seres vivos, não somente seres humanos, mas seres vivos. E para mim, filmes são seres vivos de um tipo específico. E ser um crítico de cinema tem a ver com essa percepção de sua completude e de sua complexidade.
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