Clemilda: a nordestina que rompeu barreiras, defendeu a cultura popular e atingiu o sucesso com o duplo sentido
No dia 1º de setembro, Clemilda Ferreira da Silva, ou simplesmente Clemilda (1936-2014), alagoana de São José da Lage estaria completando 85 anos. Conhecida, principalmente, pelo sucesso alcançado nacionalmente com suas músicas de duplo sentido, a cantora tem uma história rica, que inclui de passagem por programas de auditório no Rio de Janeiro na década de 1960 a gravações de xotes, sambas juninos, cirandas e baiões. Foi Clemilda a primeira mulher a gravar um aboio, canto típico nordestino usado pelos vaqueiros durante sua lida com o gado. Mas a história da artista vai muito além do que possamos imaginar.
Casada ainda adolescente em um casamento “arranjado” pelos pais, a menina pobre e sem muito estudo não aceitou se submeter a um marido que, dentre outras coisas, a traía com outras mulheres e foi embora para o Rio de Janeiro saindo de Maceió (AL) como clandestina no porão de um navio. Vale lembrar que lá pela década de 1950 era comum muitas mulheres, especialmente nordestinas, aceitarem que seus maridos tivessem casos extraconjugais. Era o tal do “homem pode tudo”, “em homem nada pega” ou “ruim com ele, pior sem ele”. Não era comum, entretanto, uma mulher deixar o marido, quando, na maioria das vezes, ficavam mal vistas pela sociedade. Clemilda quis ser feliz.
Chegando ao Rio de Janeiro a alagoana fez de tudo: foi doméstica, vendedora, garçonete.... mas nunca havia pensado em ser artista. Sua vida, no entanto, foi sendo conduzida para a música. Seu último trabalho antes de começar na música, foi como garçonete em um restaurante no Centro do Rio de Janeiro, que, por acaso do destino ficava próximo a Rádio Mayrink Veiga, conhecida na época pelos programas de auditório que atraia grandes públicos e contava com atrações como Ângela Maria, Emilinha Borba e Marlene. As irmãs Carmem e Aurora Miranda também chegaram a ser contratadas pela rádio. Mas Clemilda ia lá para ver os seus ídolos nordestinos: Luiz Gonzaga, Marinês, Anastácia, Jackson do Pandeiro... e fazia isso, religiosamente, todos os dias: saia do restaurante às 14h30 direto para a rádio.
De tanto ser vista no auditório e acompanhar todas as músicas, foi chamada para um teste. “Você quer fazer um teste e cantar?”, “Só se for agora”, respondeu. Pronto. Além de aprovada, passou a fazer parte do elenco do programa Crepúsculo Sertanejo, apresentado por Raymundo Nobre de Almeida . A partir daí se dividia entre a vida de garçonete e a de cantora, iniciando apresentações pelo estado do Rio de Janeiro com o sanfoneiro Gerson Filho, que veio a ser seu marido.
Após algumas participações em discos de Gerson Filho lançou pela Tropicana Discos, em 1965, o LP Forró sem Briga acompanhada pelo Grupo Betinho e Regional. O primeiro disco por uma grande gravadora veio em 1967 com Gerson Filho Apresenta Clemilda (RCA Victor).
Nascia uma carreira de sucesso e autoafirmação. Clemilda conseguiu se fazer presente em ambientes que na época eram extremamente masculinos. Cantou em forrós no subúrbio carioca, fez inaugurações de lojas em cima de carrocerias de caminhões, cantou em pequenos circos e até em cabarés. Juntamente com Anastácia e Marinês, foi uma das mulheres desbravadoras que levaram o nome do Nordeste para todo o país.
Apesar de uma carreira que incluía um LP por ano, o sucesso na mídia só veio anos depois, quando já morava em Aracaju (SE). Foi em 1985 com a música Prenda o Tadeu (Antônio Sima / Clemilda), que deu a artista seu primeiro disco de Ouro e o título de Rainha do Forró, recebida dos apresentadores Chacrinha e Bolinha. Em seguida mais dois discos de ouro a partir dos sucesso Forró Cheiroso e Bilhete Prá Comadre Dinha, ambas de Clemilda e Miraldo Aragão. Era Clemilda mais uma vez penetrando no universo masculino da música de duplo sentido, até então dominada por nomes como Genival Lacerda, João Gonçalves e Zenilton.
Mulher, nordestina, cantora e acima de tudo, lutadora, Clemilda abriu caminho e espaço para que outras artistas pudessem trilhar e brilhar. Sem o trio Clemilda, Marinês e Anastácia, cada uma com sua particularidade, certamente teria sido mais difícil para Elba Ramalho se firmar como grande expoente da música nordestina. Por ter gravado músicas de duplo sentido Clemilda ainda é rotulada, pouco lembrada ou estudada. O que poucos conhecem e que vale muito a pena conhecer, é sua história. Seus reisados, seus cocos, seus xotes, seus xaxados, sua história.... viva os 85 anos Clemilda e sua obra sempre presente!