Os Jogos Olímpicos e a coruja de minerva | A TARDE
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Os Jogos Olímpicos e a coruja de minerva

Publicado segunda-feira, 23 de agosto de 2021 às 17:14 h | Atualizado em 23/08/2021, 17:16 | Autor: Thomas Bacellar*
Thomas Bacellar é ex-presidente da OAB-BA | Foto: Divulgação
Thomas Bacellar é ex-presidente da OAB-BA | Foto: Divulgação -

Com sua habitual agudeza, o filósofo alemão Friedrich Hegel afirmou que ‘a Coruja de Minerva só levanta voo no crepúsculo’. Efetivamente, o abismo do tempo é obscuro, mas nos dá luz suficiente para uma avaliação definitiva.

Vale dizer, com segurança, que os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio/2016 se desenvolveram em clima de paz e alegria, contrariando as profecias, que anunciavam, com tenebrosas e lôbregas visões, a aproximação das horas de cataclismo, como a explosão de artefatos terroristas nos estádios.

Os estádios regurgitavam de gente, mas a efusão dos extravasamentos, não comprometeu o grande e marcante evento. Longe de sua desestruturação, as Olimpíadas demonstraram ao mundo que, em nosso país, se vive civilizadamente e se recepciona, indistintamente, a todos, com acolhimento afetivo e espírito hospitaleiro.

A dissonância ficou por conta de desportistas alienígenas: nadadores americanos praticando danos patrimoniais e anúncios de falsos crimes, que sabiam não terem ocorrido, e atletas australianos apanhados com credenciais falsas, querendo entrar nos jogos de basquete.

Historicamente, os estrangeiros foram os pioneiros na perpetração de crimes no espaço compreendido pelas nossas fronteiras geográficas. Com as caravanas lusitanas, em 1500, vieram 450 degredados, não dando aos brasileiros a oportunidade do cometimento, pela primeira vez, de qualquer modalidade delituosa. Tudo nos foi importado e ensinado. É o que se depreende dos estudos históricos, desde o primeiro historiador do Brasil, o baiano Frei Vicente do Salvador, ‘baiano da Bahia’, como registara Afrânio Peixoto.

Oportuno assinalar que, quando o Brasil ganhou na Suécia o primeiro campeonato mundial de futebol, naquele ano, em Estocolmo, havia registros de apenas dois homicídios, um dos quais de estrangeiro contra sueco. A falsificação de ingressos para o jogo final, no estádio Razunda, foi inusitada.

Essas invocações servem para ilustrar a observação do criminólogo italiano Enrico Altavila, no sentido de que a tendência geral da criminalidade não aponta para seu desaparecimento, como imaginaram, dentre outros, o espanhol Pedro Dorado Montero. A linha evolutiva mostra uma variação, saindo da forma primitiva e sanguinária do homicídio, para o jogo inteligente da fraude.

O criminoso de hoje não é só o leão rompente, mas, principalmente, a raposa matreira, astuciosa, que usa métodos sofisticados e técnicas poderosas. Criminologistas abalizados negam, entretanto, essa evolução e afirmam a existência de alterações de estilo, até a encenação do estelionato.

Há fraude para ocultar a violência e há violência para ocultar a fraude. A discussão não é ociosa, entretanto, o fenômeno misterioso e antissocial do crime tem uma combinação múltipla de fatores, que não cabem, aqui, expostos.

Acode-me à memória, ao tocar nessa matéria, episódio acontecido no Rio de Janeiro, ao tempo do governador Carlos Lacerda, quando um chefe de Polícia, ao tomar posse, declarou enfaticamente que ‘doravante não haverá mais crimes nessa cidade’ e que ‘a população pode dormir tranquila, porque tem quem vele pelo seu sono’. Resultado: a onda de delinquência recrudesceu e ele foi demitido.

Sendo certo que é impossível à comunidade viver sem os crimes que estão na sua base, imperioso é mantê-los em níveis de tolerabilidade. Épocas há em que determinadas manifestações têm maior incidência que outras. Esse fenômeno é universal e vem ocorrendo particularmente em alguns países.

O Japão reduziu a idade penal de 18 para 16 anos, em razão dos estupros coletivos de mulheres. Ainda assim, esses atentados sexuais não diminuíram. O mesmo sucedeu na Índia. Na Argentina, vem aumentando a incidência de crimes dessa natureza, com a agravante brutal do empalamento, fato que rendeu ensejo a protestos, greves e paralisação do Parlamento.

Quanto ao nosso país, a violência sexual também é de grande monta. Revelam dados atuais da Organização das Nações Unidas que 11% dos homicídios do mundo ocorrem no Brasil e que a nossa taxa de feminicídio é a quinta maior do mundo.

Toda essa casuística põe em evidência que a pretensão de erradicar totalmente as condutas criminosas é, efetivamente, utópica. Conforme realça, com visos de erudição, Enrique Cury Urzúa, penalista e membro da Corte Suprema de Justiça do Chile, ‘uma sociedade sem delito é tão inimaginável como uma vida sem dor, angústia ou enfermidade e, provavelmente, nem sequer seja desejável’.

O que se aspira é manter um estado de coisas tolerável, uma situação de paz na qual os indivíduos possam desenvolver, tanto quanto possível, as capacidades de que estão dotados, em que a dignidade da natureza humana seja reconhecida e na qual a convivência não se transforme em campo de batalha, onde ‘o homem seja um lobo para o homem’.

Retornando aos Jogos Olímpicos no Brasil, eles não decepcionaram, à parte os aspectos econômico-financeiros, que necessitam de mais tempo para serem avaliados, quando do voo crepuscular da coruja de Minerva. Cumpre ressaltar que as condutas antidesportivas e criminosas de americanos e australianos foram exemplarmente punidas em seus países.

Apesar de infrequentes, tem de se louvar essas decisões, que reintegram a ordem e o sistema jurídico violentados, pois nenhuma sociedade pode subsistir de abrir mão desses recursos (limites). É que o sentimento de justiça é tão arraigado e essencial à convivência humana, que deve ser respeitado universalmente por todos.

*Thomas Bacellar é ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/Seccional Bahia em quatro mandatos, professor de Direito Penal e de Processo Penal da UCSal e advogado nas áreas Criminal e Eleitoral.

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