Segurança Energética e Alimentar
Uma matriz energética balanceada irá conviver com fontes despacháveis e fontes intermitentes
É inegável que as fontes renováveis têm e terão um papel fundamental no processo de descarbonização de economias globais para que o mundo possa gradativamente alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável no médio e longo prazo. Porém é preciso enriquecer o debate e contextualizar o processo de aumento da penetração de fontes renováveis na matriz energética mundial com a importância de se prover segurança energética e alimentar para o bem-estar social de populações.
A literatura internacional é bastante vasta em elucidar as diferenças entre fontes variáveis intermitentes de energia renovável (do inglês Variable Renewable Energy – VRE), como eólicas e solares, e as fontes despacháveis de energia (do inglês baseload energy sources). De maneira suscinta: fontes despacháveis podem ser utilizadas 24 horas por dia e serem estocadas (água, biomassa e combustíveis). Fontes intermitentes não podem ser utilizadas 24 horas por dia nem serem estocadas (sol e vento).
Uma matriz energética balanceada irá conviver com fontes despacháveis e fontes intermitentes. O consumo de energia pode variar de forma horária, mas consumo de energia ocorre 100% do tempo (24 horas por dia). Não tem sol a noite. Não há vento 24 horas por dia. Logo, é imprescindível que alguma fonte estocável ou despachável complemente as fontes intermitentes para que todos tenham acesso à eletricidade 24 horas por dia.
Traçar comparações entre fontes de energia somente pelo atributo preço não contribuem de forma alguma ao debate do desenho de matrizes energéticas confiáveis, robustas, seguras e com maior grau de soluções baseadas na natureza.
Um exemplo simples do porquê de não compararmos fontes somente pelo preço: em cenário mais realista uma usina a gás teria um custo de R$221,74/MWh enquanto uma usina solar custaria R$87,71/MWh , ou seja uma usina a gás seria 2,5x mais cara que a solar. Porém, é importante explicar que uma usina solar tem um fator de capacidade de geração de 25% (do inglês load factor) enquanto uma usina a gás natural de 85%.
Digamos que tenhamos um sistema para atender com uma demanda de 75 MW. No caso de uma planta a gás natural, uma única usina de 100 MW de potência instalada atenderia essa demanda. No caso de usina solar para a mesma demanda teria que ser construída uma usina de 300 MW, pois dado o fator de geração de 25%, uma usina de mesmo tamanho de 100 MW só atenderia 25 MW de demanda.
Neste exemplo, a necessidade de linha de transmissão para escoar a energia para os consumidores triplicaria considerando o atendimento exclusivamente via fonte solar, pois investimentos em transmissão de energia elétrica são com base na potência instalada das usinas.
E para piorar, mesmo triplicando os investimentos de transmissão em relação ao cenário de usina a gás natural – ou qualquer outra usina despachável como biogás, nuclear ou biomassa todas renováveis – não existe sol a noite. Então esse sistema ainda teria que contar com uma fonte despachável durante todas as horas da noite que não há sol, o que não se verifica para o caso da planta a gás natural que pode funcionar 24 horas por dia, faça chuva, faça vento ou faça sol.
Matematicamente, o preço ajustado da fonte solar pela diferença de fator de capacidade já seria R$87,71 * 75%/25%, ou seja R$263,13 / MWh. E mesmo assim, ainda teríamos que computar o custo 3x maior de transmissão de energia e ainda qual o custo de backup no período noturno quando não há sol.
Alguém poderia sugerir: coloque uma bateria para acumular energia ao longo do dia e gerar energia a noite. Ótima ideia. Uma bateria que segura um sistema de geração de energia por 4 horas custa atualmente US$100/MWh (ou R$500/MWh), uma que sustenta por 5 horas US$400/MWh e uma que sustenta por 6 horas US$1.600/MWh. E a noite dura 12 horas.
E eis o paradoxo. Todos os países que aceleraram a transição energética para fontes renováveis intermitentes sem se preocuparem em garantir segurança energética hoje convivem com as mais altas contas de eletricidade do planeta. Quem ler a obra de Vaclav Smil e se debruçar sobre o conceito de densidade energética verá que esse efeito não é uma exceção: é a consequência.
Se não houver preocupação com manutenção de segurança energética e o mundo continuar caminhando para descarbonizar e eletrificar maior parcela de suas economias ficará cada vez mais caro atender uma demanda crescente de eletricidade – 24 horas por dia – sem um planejamento que balanceie a expansão intermitente com fontes despacháveis como termoelétricas. Basta olhar o que está acontecendo com a Europa para ver quão cara a conta fica.
E o que a segurança energética tem a ver com a segurança alimentar? Hoje para se produzir alimentos 3 coisas são essenciais:
- Água - irrigação;
- Energia - pivôs centrais e máquinas agrícolas;
- Fertilizantes - que precisam de fontes despacháveis de energia para serem produzidos;
Se a água se torna escassa por ausência de chuvas comprometendo a recuperação de reservatórios (incluindo os subterrâneos, os aquíferos), se o preço de energia se torna mais alto, pois não há água ou fontes despacháveis como o gás natural para garantir a segurança do suprimento e esse preço torna mais cara a produção de fertilizantes, a falta de segurança energética inflaciona a economia e a produção de alimentos.
Com inflação de eletricidade e combustíveis – que representam parcela significativa da renda do brasileiro e do europeu – e a consequente inflação na produção de alimentos, causa-se um efeito detrator de bem-estar social, que leva até a protestos. Como estando vendo em vários países do globo atualmente com preocupação dos custos de produção agrícola.
Sem segurança alimentar, compromete-se o S da sigla ESG. Que para países emergentes que representam 85% da população mundial deveria vir na frente do E. Teríamos a sigla SEG que além de demonstrar mais evidentemente a importância da SEGurança energética e alimentar também está totalmente alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU #1 e #2: Erradicação da Pobreza e Fome Zero.
Outro autor recomendado para quem quer estudar o setor energético é o Daniel Yergin. Autor de “O Petróleo”, Yergin demonstra que transições energéticas levam décadas ou séculos e não anos e que segurança energética (ou a falta de) decidiu todos os conflitos mundiais, inclusive a primeira e segunda guerras mundiais.
Mais recentemente, nós pós-pandemia de COVID, os conflitos Rússia-Ucrânia desde fevereiro de 2022, o conflito Israel-Hamas desde 7 de Outubro de 2023, e todos os incidentes geopolíticos correlatos como os ataques dos Houthis a embarcações no Mar Vermelho onde se trafega 15% do petróleo do mundo só tornaram ainda mais evidente a importância de segurança energética.
O ciclo inflacionário decorrente da falta de segurança energética desde o pós-pandemia, levou ao atual ciclo de aperto monetário de bancos centrais mundiais com juros da economia subindo de 0,25-0,50% para 4,50-5,50% nos países desenvolvidos, “contratando-se” um desaquecimento econômico que levará a um efeito detrator no crescimento global muito relevante.
Enquanto o PIB global cresceu em média 3,8% entre 2000 e 2019, a expectativa é de que o novo normal nós próximos anos será entre 2,7% e 3,0% a.a. de crescimento.
Portanto, preocupar-se com segurança energética e alimentar e fazer um planejamento que olhe todos os atributos de cada fonte de energia e não só o atributo preço e fundamental para enfrentarmos as crises sanitárias, crises geopolíticas e as crises econômicas.
Fontes: Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE) e Poder 360