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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 13 de dezembro de 2025 às 6:32 h | Autor:

13 de dezembro: Devoção a Santa Luzia em Salvador remonta ao século XVIII

Anualmente, fiéis peregrinam até a igreja situada no Pilar para ouvir missas e banhar os olhos em fonte considerada milagrosa

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Santa Luzia, a protetora da visão e padroeira dos oftalmologistas, é reverenciada em Salvador desde o século XVIII, na Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Com o passar dos anos, o templo também incorporou o nome da santa de origem italiana que foi martirizada. Anualmente, além de assistir as missas solenes, no dia 13 de dezembro, e sair em procissão pelas ruas do bairro do Comércio, os devotos também entram em longas filas para banhar os olhos na água da fonte que fica ao lado do templo e que, na tradição popular, é tida como milagrosa, tanto para curar quanto para prevenir doenças nos olhos.

As homenagens a Santa Luzia na capital atraem milhares de fiéis, mas também já viveu períodos de alta e baixa frequência, como atestam reportagens e fotografias preservadas no Centro de Documentação e Memória (CEDOC) de A TARDE. Um dos pontos altos das comemorações sempre foi o ritual de banhar os olhos na água que brota de uma gruta na encosta que rodeia a igreja.

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Imagem ilustrativa da imagem 13 de dezembro: Devoção a Santa Luzia em Salvador remonta ao século XVIII
| Foto: Cedoc A TARDE

Desde que foi encontrada, a fonte nunca secou. As filas são enormes e a espera pode ser de várias horas. Mas, os relatos de curas e milagres atribuídos à fonte servem de estímulo aos devotos. Mesmo nos períodos mais complicados para a devoção, quando o acesso à área interna da igreja foi proibido por riscos de desabamento, a afluência de pessoas à fonte, com vasilhames e garrafas para coletar a água, se manteve.

"Muitos fiéis chegaram cedo para banhar os olhos na fonte e encher garrafas com água milagrosa. Foi o caso de dona Feliciana Gomes Costa, 55 anos, que chegou ao local às 6h30min, mas só conseguiu banhar os olhos quase quatro horas depois. 'Vale a pena a espera. Há três anos precisava fazer uma operação nos olhos e fiz uma promessa. Hoje estou quase boa da vista'”. O relato de dona Feliciana pode ser lido na edição de A TARDE de 14 de dezembro de 1995, com a cobertura da festa no dia anterior.

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| Foto: Cedoc A TARDE

O jornal, naquele ano, ainda destacou o grande número de fiéis que compareceram à Igreja do Pilar em uma espécie de resgate do brilho da festa. “Para membros da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar e o padre Hélio Rocha, o público presente era o dobro do ano passado e alguns até arriscaram afirmar que mais de duas mil pessoas acompanharam a procissão, que saiu pelas ruas do Comércio com as imagens de Santa Luzia, Nossa Senhora do Pilar e o Menino Jesus", relata o texto de 30 anos atrás.

O tom de surpresa na reportagem de 1995 se devia ao fato de que, naquele ano, a igreja de mais de dois séculos passava por problemas em sua estrutura e as missas seriam rezadas no adro, do lado de fora, por riscos na área interna. Além disso, outras alterações no entorno da igreja contribuíram para diminuir a frequência de fiéis ao longo das décadas.

Decadência e recuperação

Na sua monografia 'Inventário digital do patrimônio imaterial do Centro Histórico de Salvador’, Giuliana d'El Rei de Sá Kauark, mestra e doutora em cultura e sociedade, informa, com base em apurações com moradores da região do Pilar, que antes da interdição do plano inclinado homônimo, desativado na década de 1970, a movimentação na festa de Santa Luzia era maior, por exemplo, do que aquela do dia 4 de dezembro para a festa de Santa Bárbara. Nos anos 1990, a proporção se inverteu, com a festa de Santa Bárbara ganhando cada vez mais status, enquanto o fechamento do plano inclinado e a deterioração da igreja do Pilar minguavam os festejos para Santa Luzia.

Ainda na edição de 1995, A TARDE pontua que os fiéis presentes tinham a esperança de, no ano seguinte, celebrar a missa novamente dentro da igreja, "que está com o forro do teto bastante comprometido". Essas reformas, no entanto, demoraram para acontecer, pois cinco anos depois, em 14 de dezembro de 2000, a chamada do jornal para a cobertura do evento ainda era: ‘Devotos louvam Santa Luzia com celebração fora da igreja’.

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| Foto: Cedoc A TARDE

No ano seguinte, em 2001, com a missa também do lado de fora, a cobertura do jornal divulgava que "de pé ou de joelhos, idosos, jovens e crianças rezaram, cantaram e agradeceram as graças alcançadas. [...] Nos cantos do pátio, muitos fiéis pediam à santa que iluminasse as autoridades para que elas ajudassem a reformar a igreja".

Em 2005, na reportagem do dia 14 de dezembro sobre a festa no dia anterior, A TARDE voltou a reforçar a fé inabalável dos fiéis em Santa Luzia. Eles lotaram as comemorações pelo dia da padroeira mesmo que, 10 anos depois, as missas solenes ainda continuassem a ocorrer do lado de fora da igreja. “Nem o estado precário em que se encontra a Igreja de Nossa Senhora do Pilar impediu que uma multidão se vestisse de verde e vermelho e estivesse presente, ontem, à missa campal, celebrada em louvor a Santa Luzia, protetora dos olhos”, diz o parágrafo de abertura da reportagem.

A esperada reforma da igreja só começaria seis anos depois, em 2011, quando o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) deu início à restauração e recuperação da construção e de peças internas do templo. Na época, o IPAC explicou que os prédios do complexo do Pilar estavam prestes a entrar em processo de ruína e a intervenção era urgente.

Em 2012, foi entregue as obras de restauração da igreja e do cemitério em estilo neoclássico, com fachada de 20 colunas de sete metros de altura cada uma. Foram realizados serviços de engenharia e limpeza, que retirou 2,5 mil toneladas de lixo e entulho do cemitério, que estava soterrado. Além disso, a encosta foi estabilizada e foi instalada alvenaria de contenção de 500 metros de comprimento para proteger o complexo e, finalmente, o teto da igreja foi totalmente reformado. "Esta foi a obra de recuperação mais importante já realizada nesta igreja e seu cemitério desde a década de 1960”, afirmou, na ocasião, o então diretor de Projetos e Obras do IPAC, Paulo Canuto.

O resgate do cemitério foi um feito notável pela importância daquele sítio histórico. A Igreja de Nossa Senhora do Pilar, em Salvador, foi a primeira a construir um campo santo anexo, em 1799, ainda no início das discussões sanitárias que levaram à extinção do hábito colonial de se enterrar pessoas dentro dos templos católicos. Outras igrejas da capital seguiram essa prática no decorrer do século XIX. Além da restauração da igreja e do cemitério, entre 2015 e 2021, o IPAC ainda entregou diversas peças artísticas e mobiliários.

Igreja erguida por espanhóis

A Irmandade do Pilar, devoção mariana associada à aparição de Maria sobre um pilar de mármore, na Espanha, chegou a Salvador em 1718, através de imigrantes espanhóis. Essa irmandade é que iniciou, em 1756, a construção da igreja na região do Comércio, que acabara herdando o nome da devoção. O templo passou por muitas reformas ao longo dos séculos, inclusive uma bem extensa, nos anos 1800, que lhe rendeu a adoção de uma arquitetura neoclássica no interior, enquanto a fachada se manteve rococó.

Nessa época, a devoção a Santa Luzia ainda não compartilhava o templo com os devotos de Nossa Senhora do Pilar, mas estava nas proximidades. No Brasil, as celebrações para Santa Luzia chegaram com os imigrantes italianos, que construíram capelas para a padroeira. Em Salvador, a capela foi erguida na zona portuária da cidade, na atual Avenida Contorno, e permaneceu ali por anos, até que um incêndio no início do século XIX destruiu esse pequeno templo e a imagem de Santa Luzia foi transferida para a Igreja de Nossa Senhora do Pilar. A devoção a Santa Luzia, também conhecida como Lúcia de Siracusa, cresceu a tal ponto que alterou o nome da igreja.

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| Foto: Cedoc A TARDE

Santa e mártir

Nascida no século III, em Siracusa, na Sicília (Itália), em uma família nobre, Lúcia foi criada na fé cristã no período em que o cristianismo era perseguido pelo Império Romano. A jovem resolveu dedicar a vida à religião após uma peregrinação até a cidade de Catânia, também na Sicília, para rezar pela saúde da mãe na tumba de Santa Águeda (235-251). Com a cura da mãe, Lúcia decide consagrar sua vida ao cristianismo, doando seus bens aos mais necessitados e fazendo voto de virgindade perpétua. Sua mãe, no entanto, havia prometido sua mão em casamento para um homem pagão, mas após ser curada, dispensou a filha do compromisso.

O pretendente, porém, não gostou de ser rejeitado e denunciou Lúcia como cristã ao prefeito Pascásio, que governava a cidade em nome do Império Romano. "A jovem recebe ordem, diante do magistrado romano, de sacrificar aos deuses do Império. Recusa terminantemente, porque sacrifica somente ao único e verdadeiro Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, e não aos ídolos. É duro, para quem não está acostumado, receber uma recusa, ainda mais de uma pessoa considerada inferior e desprezível. Irou-se o prefeito. E com um recurso vergonhoso para um magistrado, (...) deu ordem para a conduzirem a uma casa de prostituição", explica trecho do artigo 'Luzia, a protetora dos olhos', de J. L. de Souza, publicado nos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, em 1946.

Os carrascos, no entanto, não conseguem mover a jovem do lugar, nem mesmo com a ajuda de animais de tração. Então Pascásio recorre a tortura com óleo quente, mas, mesmo assim, ela não cede e, por fim, é decapitada. Lúcia de Siracusa morreu no dia 13 de dezembro e sua devoção começou logo depois, quando a população recolheu seu corpo, o enterrou e, logo em seguida, começou a rezar em seu nome.

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| Foto: Cedoc A TARDE

Nenhum dos martírios de Lúcia tem relação direta com os olhos. Mas, há muitas versões para a ligação de Santa Luzia com a cura das doenças da visão. A mais popular diz que eram os “olhos bonitos” de Lúcia que “perturbavam o seu pretendente” e que ela então os teria arrancado e oferecido a ele numa bandeja, mas que logo em seguida, novos olhos teriam surgido em seu rosto. Uma das imagens iconográficas mais conhecidas da santa é ela segurando uma bandeja com um par de olhos. Outra história afirma que o prefeito Pascásio é que teria ordenado que os soldados arrancassem os olhos de Luzia, mas novos olhos nasceram logo depois.

*Com a colaboração de Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas

*Material elaborado com base no acervo do CEDOC A TARDE

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