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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos* | [email protected]

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 12 de fevereiro de 2022 às 6:02 h | Autor:

A TARDE registrou batida policial para coibir baile gay

Edição de 1937 trouxe reportagem sobre operação. A festa estava sendo realizada em uma casa no Garcia

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Imagem ilustrativa da imagem A TARDE registrou batida policial para coibir baile gay
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A edição de 23 de janeiro de 1937 de A TARDE apresenta a história de um baile realizado no bairro do Garcia que foi alvo de uma operação policial. Seis pessoas foram presas após uma denúncia de que a festa estava perturbando o sossego. Ao dar mais atenção ao texto identifica-se o motivo do incômodo: tratava-se de homossexuais, em uma ação performática, talvez com a presença de travestis ou transgêneros. Com base nas descrições da reportagem há violação de direitos com insultos como a denominação de “malandros fantasiados de outro sexo” e publicação detalhada até do lugar onde as pessoas que acabaram presas moravam.

O repórter de A TARDE fazia parte do que chamou caravana formada pelos comissários Arnaldo Alves e Vicente Leal e o escrevente José Nunes. A denúncia foi feita possivelmente por alguém da vizinhança que levou os policiais até a residência onde acontecia a festa.

"Com surpresa, porém, viu-se que a casa tinha as portas e janellas fechadas. A despeito disso, ao se aproximar a caravana foram se tomando distinctos os sons de uma marcha tocada em victrola e que era acompanhada por ensurdecedora assuada de vozes estranhas. O repórter encostando-se a uma janela viu e ouviu por uma fresta cousas exquisitas”. (A TARDE 23/1/1937, p.12)

Um dos elementos considerados estranhos para o repórter é o que chama de coro de vozes afeminadas respondendo “Eu quero mamar”, como resposta ao refrão da marchinha “Mamãe eu quero mamar”, pois o Carnaval daquele ano, com feriado em 9 de fevereiro, estava próximo. A festa, segundo a reportagem, foi para comemorar o aniversário de uma pessoa identificada como Dona Chica.

“Numa sala pequena comprimiam-se uns 7 pares. Todos homens, alguns vestidos de mulher e com grotescas fantasias. Em dado instante parou a victrola e um preto alto, que vestia um traje de “bahiana” pulou no meio na sala e com voz de falsete gritou: - “Viva d. Chica!”. E a turma numa só voz respondeu: -Viva!”. Como querendo explicar a razão do viva, a “bahiana” continuou a falar para a exótica assembleia: - As “senhoras” fiquem sabendo que d. Chica faz annos hoje. E a turma numa barulheira infernal cercou a pessoa chamada “D. Chica” que, no caso, era um indivíduo espaduado e forte que, timidamente, recebia as manifestações dos collegas”. (A TARDE 23/1/1937, p12).

Após a invasão da casa pela polícia seis pessoas foram presas: Cravo, moradora da Ladeira de São Bento; Jasmin, da Rua Nova da Barra; Rosinha, da Ladeira de São Bento; Joanninha, do bairro de Nazaré; Julita, da Rua Cezar Zama e a aniversariante, Dona Chica. As quatro primeiras apresentaram como profissão o trabalho doméstico; Julita era vendedora de doces e sobre Dona Chica informa-se que não tinha ocupação ou moradia fixa.

“Ao ler o texto imagino que ali estão pessoas performando em um baile, mas que tem que ser escondido, nos guetos, como nos becos de até pouco tempo. Assusta quando pensamos que a nossa circulação mais livre, para além desses guetos, é tão recente”, avalia Paulett Furacão, estudante de pedagogia, ativista do movimento LGBTQIA+ e assessora parlamentar do gabinete da deputada estadual Olívia Santana (PCdoB-BA).

Os nomes sociais das presas foram publicados ao lado dos civis. Um clichê fixado no centro da página mostra as seis detidas. A que está com o traje de baiana composto por um pano da costa jogado, de forma transversal até próximo da sua cintura, com um dos ombros à mostra, encara a objetiva de forma altiva. É ela que ao fim da reportagem dá uma declaração que traduz o tipo de calvário oferecido a quem desafia padrões:

“-Si Jesus soffreu, quanto mais nós, materialmente!” (A TARDE, 23/1/1937, p12).

Para Paulett Furação, que chama essa personagem no feminino, pois é a forma que ela está assumindo no momento, mesmo que não se tenha os dados para encaixá-la em uma categoria específica, aponta para os desafios de quem está fora dos padrões, especialmente em relação ao gênero e exercício da sexualidade. “Tinha uma máxima que para mim era muito forte quando comecei a assumir a minha transgeneralidade que vejo muito presente nessa história. Essa máxima diz que estamos nesse momento com a coragem para viver e morrer. Essa fala dela sobre o sofrimento é exatamente isso”, diz.

Conseguiram escapar da batida policial Marlene, Conchita, Dendem, Joan, Zizinha, Catherine, Olavo, que morava no Corredor da Vitória, João de Souza e Valdinho. De acordo com a reportagem, o organizador da festa, Maximiano, era funcionário do Diário Official. Essa informação em um jornal como A TARDE deve ter transformado a sua vida em um inferno nos dias seguintes.

Desfiando o padrão

O professor Jocélio Teles dos Santos, autor do livro intitulado Ensaios sobre raça, gênero e sexualidades no Brasil (Séculos XVIII-XX) aponta que, na reportagem, há informações que indicam a ação policial contra pessoas que extrapolam a definição de “travestidos” usada pelo jornal. “Não se trata de travestidos, pois foram identificados com nomes e apelidos femininos. Um deles com inspiração francesa, Catherine. Nesse período as referências à França perpassavam o imaginário da sociedade brasileira e este seria o primeiro ano do Estado Novo”, acrescenta Santos, que é doutor em antropologia e professor titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Outra importante observação do professor é a referência às ocupações das pessoas detidas. “As profissões indicam pertencimento às classes baixas. A maioria dos que foram presos trabalhava como doméstico, provavelmente em casas de famílias”, completa. Santos destaca que nem todos estavam vestidos como mulheres.

Para o professor vale destacar a importância dada pela reportagem ao traje de baiana que foi a fantasia de uma das levadas pela polícia. “A simbologia local já está cristalizada na sociedade brasileira. Ela seria imortalizada na canção ´O que que a baiana tem? ´, de Dorival Caymmi, gravada por Carmem Miranda para um filme lançado em 1939”, diz Jocélio Teles dos Santos.

Repressão

“Desde o fim da Inquisição em 1821, a sodomia, como era chamada a homossexualidade deixou de ser crime, mas continua a ser tratada e perseguida não mais pela Igreja, mas pela polícia como um comportamento delituoso, como um comportamento proibido arbitrariamente, enquadrado na categoria de atentado ao pudor. Há registros na história do Império e na República de abusos de poder não só no Brasil, mas em outros países latino-americanos em que reuniões de gays eram invadidas sob a acusação de atentado ao pudor ou de falsa identidade, porque estavam vestidos de mulher. Estes eram humilhados, espancados, presos e divulgadas as suas identidades nos meios de comunicação. Infelizmente é um abuso de poder da sociedade hétero normativa que considerava a homossexualidade como um desvio, uma imoralidade e reuniões de anormais, de invertidos, de pederastas como eram chamados”, explica Luiz Mott, doutor em antropologia, professor titular aposentado do Departamento de Antropologia da Ufba e pesquisador sênior do CNPq.

Mott é autor de 15 livros e mais de 200 artigos publicados em revistas nacionais e internacionais sobre Inquisição, etno-história da homossexualidade, relações raciais no Brasil colonial, direitos humanos e religiosidade popular. Em obras como O Sexo Proibido- Virgens Gays e Escravos nas Garras da Inquisição, A Cena Gay de Salvador em tempos de Aids, Homossexualidade: Mitose Verdades, dentre outras, o antropólogo apresenta a trajetória da tentativa de instituições como a Igreja Católica e o Estado em variados regimes, reprimirem o que consideram violações do padrão no exercício da sexualidade.

No livro A Cena Gay de Salvador em tempos de Aids, Mott relata que, em 1591, a capital baiana recebeu a primeira visita de um inquisidor. O objetivo era coibir práticas consideradas criminosas. Segundo ele, Salvador já tinha uma lista de condutas perseguidas pela inquisição. Mott conta que, logo abaixo da Igreja da Misericórdia, por exemplo, viveu a primeira travesti que se tem notícia na história brasileira. Ela tinha como nome civil Francisco Manicongo e era um escravo originário do Congo. Na documentação, de acordo com o pesquisador, ela é descrita como “quimbanda”, “sodomita passivo” e que insistia em usar umas estranhas faixas recusando “trazer vestido de homem”.

Na segunda metade do século XIX, de acordo com Mott, começa a fase em que a homossexualidade é tratada no campo científico, especialmente a medicina, como doença. “Não há como não se chocar com a homofobia dos textos médicos da Bahia novecentista, com suas interpretações pseudocientíficas da gênese e cura da pederastia”, diz o professor.

Os jornais também seguem a linha dos ataques a gays, lésbicas e transgêneros. Mesmo na cultura chamada de base popular, como as obras de Cuíca de Santo Amaro (1907-1964), que Mott analisou em um artigo, predomina o jogo de denúncia contra práticas homossexuais, especialmente as relacionadas a pessoas que tinham algum tipo de proeminência em Salvador.

Mas, de acordo com o professor, a capital baiana tem a contradição de criminalizar, mas ao mesmo tempo sediar uma cultura gay em bares e boates. “Havia alguma boate, algum barzinho, algum inferninho frequentado predominantemente por homossexuais e mais tarde lá no Dois de Julho abriu o bar Anjo Azul frequentado por personalidades importantes”, diz.

Mesmo com essa presença de cultura gay em vários espaços da cidade, a perseguição policial continuava intensa. Fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), criado em 28 de fevereiro de 1980, Luiz Mott conferiu de perto histórias de abusos. “Quando eu cheguei na Bahia, a Delegacia de Jogos e Costumes era extremamente poderosa. Quando eu ia lá para defender alguma travesti injustamente presa eu deixava o meu companheiro esperando nas proximidades, porque eu tinha medo de chegar lá e ser preso também porque o arbítrio, o autoritarismo e a homofobia eram a regra”, acrescenta.

Em um contexto como esse a coragem dos frequentadores daquele baile flagrado pela operação policial na reportagem de 1937 fica ainda mais evidente. Eventos assim dão a medida de como as conquistas de agora para a comunidade LGBTQIA+ são resultado de enfrentamentos em variados campos, inclusive o da festa.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Para saber mais: Ensaios sobre raça, gênero e sexualidades no Brasil- Séculos XVIII-XX- Jocélio Teles dos Santos, Edufba, 2013; A Cena Gay de Salvador em Tempos de Aids- Luiz Mott, Editora Grupo Gay da Bahia, 2000; Cuíca de Santo Amaro, o chicote dos homossexuais da Bahia- Artigo de Luiz Mott. Link: https://luizmottblog.wordpress.com/cuica-de-santo-amaro/ Confira mais conteúdo de A TARDE Memória,no portal A TARDE e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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