A TARDE registrou memória de romaria realizada por saveiristas

Reportagem de 1931 lamentou desaparecimento da festa que era realizada por trabalhadores do local chamado Escada de Santa Bárbara, no Comércio

Publicado sábado, 30 de julho de 2022 às 05:30 h | Atualizado em 29/07/2022, 23:23 | Autor: Cleidiana Ramos
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Saveiros na paisagem do Comércio
Saveiros na paisagem do Comércio -

A edição de A TARDE de 31 de outubro de 1931 lamentou o fim de uma festa que era realizada no bairro do Comércio em Salvador: a Romaria dos Saveiristas da Escada de Santa Bárbara. A celebração acontecia no Dia de Todos os Santos, em 1º de novembro, e a sua memória, destacada no texto, é mais um elemento que mostra a localidade como centro de difusão das comemorações da cidade no verão. O evento é apontado como o início do calendário festivo da estação, posição já ocupada pela Festa de São Nicodemus e atualmente pela Festa de Santa Bárbara. 

“Em outros tempos, quando a cidade, de amarellado aspecto colonial, vivia socegada na farinha barata e na abundancia das frutas, as festas, chamadas populares tinham início no dia de amanhã, 1º de novembro, de invocação de Todos os Santos”. (A TARDE, 31/10/1931, p.3)  

Quando o texto foi publicado, a romaria já havia desaparecido. A TARDE foi fundada em 1912 e, ao menos em uma pesquisa nas edições do jornal, desde o seu primeiro ano de funcionamento, a única menção à celebração ocorreu em 1931. A romaria tinha como destino a Igreja do Bonfim onde era celebrada uma missa.  

De acordo com o texto, a Escada de Santa Bárbara era feita com pedras de cantaria, ou seja, em blocos, vinda de Lisboa, e tinha dois lances. Ela ficava logo após o cais da Associação Comercial e em frente ao Mercado de São João. Com as obras do porto, a escada desapareceu. No local foi construído um prédio para funcionamento dos Correios. Segundo o texto, desapareceram também o que a reportagem chama de “quiosques”, possivelmente pontos para o comércio à beira mar. Enquanto é apontado o prestígio para os saveiristas, o texto celebra o fim dos quiosques.      

“Para essa romaria que “abalava” o caes tal o prestígio do saveirista naquella epoca concorriam os negociantes, mormente os daquella zona e os occupantes dos kiosques que alli, como em outros pontos, existiam e felizmente desappareceram”.   (A TARDE, 31/10/1931, p.3).

O líder dos saveiristas que realizavam a festa, de acordo com a reportagem, era Manoel Rufino da Conceição. Ele havia ganhado uma medalha por um ato de heroísmo: salvou uma mulher durante um incêndio em 1908. 

A reportagem destaca que, nos tempos da festa, a localidade estava tão próxima ao mar que, quem passava pelas imediações, recebia os respingos das ondas chocando-se contra as pedras. 

Edição de 31/10/1931 resgatou a memória de festa que desapareceu
 

“Com as obras do Porto essa escada e todas as companheiras que bordavam o velho caes  foram-se embora: a area do bairro commercial se distendeu de muito em terra firme por sobre o mar; nella se abriram ruas e se levantaram palácios; de sorte que da velha escada de Santa Bárbara tão festejada na data de amanhã nada existe hoje, positivamente nada, se não um pouco de recordação que também se irá esmaecendo, esmaecendo até se extinguir de tudo como neste mundo...” (A TARDE, 31/10/1931, p.3). 

Entorno das águas  

Para a pesquisa que resultou na tese intitulada Festa de Verão em Salvador, sob a orientação da professora Fátima Tavares e apresentada ao programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA-Ufba) em 2017, analisei cerca de sete mil PDFs de reportagens de A TARDE do período de 1912 a 2016. Nesta coleção não encontrei referência à Romaria dos Saveiristas da Escada de Santa Bárbara. 

Uma característica dessa festa presente em outras do conjunto das celebrações que acontecem durante o verão e estão organizadas em um calendário de aquecimento até o Carnaval é a localização na região do Comércio com extensão aos bairros da Penísula de Itapagipe. Das 12 festas de verão que ainda hoje acontecem quatro estão sediadas no Comércio: São Nicodeums, que inicia o calendário com a realização na última segunda-feira do mês de novembro; Santa Luzia, celebrada em 13 de dezembro; Nossa Senhora da Conceição e o principal rito da Festa de Bom Jesus dos Navegantes, que é a procissão marítima em 1º de janeiro. 

Além disso, outras festas acontecem em áreas próximas: Santa Bárbara, que ocorre em 4 de dezembro na Baixa dos Sapateiros, Barroquinha e Pelourinho; Reis, na Lapinha, em 6 de janeiro; Bonfim e Ribeira, também realizadas no mesmo mês. Vale destacar que, segundo o texto, a Romaria dos Saveiristas da Escada de Santa Bárbara tinha como destino a Igreja do Bonfim.  

O deslocamento para a orla atlântica das festas de verão só acontece a partir do último domingo de janeiro com a Festa de São Lázaro, sediada na Federação, seguida pela Festa de Iemanjá, no Rio Vermelho, Festa de Nossa Senhora da Luz, na Pituba, e a Festa de Itapuã. Essas três últimas acontecem em fevereiro encerrando o calendário pré-carnavalesco. 

A outra característica interessante dessas festas, tanto as realizadas na região do Centro Antigo e Cidade Baixa como as da orla atlântica, é a sua ligação com os ofícios relacionados ao mar. Os saveiristas organizavam essa romaria infelizmente hoje extinta e a Festa de São Nicodemus é uma criação dos trabalhadores do Cais do Carvão no âmbito da Sociedade do Cachimbo, que funcionava nos moldes de uma organização secreta, afinal o acesso ao espaço de decisão era apenas para os associados. 

Como o texto destaca, saveirista tinha muito prestígio, afinal era por meio dessa embarcação que se concretizavam uma série de serviços, mas principalmente o abastecimento de alimentos para a capital baiana. Os saveiros faziam, via mar, a ligação de Salvador com as cidades do recôncavo. O professor Cid Teixeira costumava dizer que na capital baiana não se comia nada que não viesse de pelos menos 200 quilômetros de distância. 

Não foi à toa que os homens que comandavam os saveiros povoaram as criações da música e da literatura. É um mestre saveirista, Guma, que protagoniza, ao lado de sua amada, Lívia, a história de Mar Morto, de Jorge Amado.

“O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual aos dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual deles não sabe amar com violência e doçura? Porque toda a vez que cantam e que amam, bem pode ser a última”. (Mar Morto, Jorge Amado, p.23). 

Os saveiristas da Escada de Santa Bárbara escolheram como patrono o Senhor do Bonfim, o mesmo que ganhou sua igreja e a devoção que se transformou em uma das maiores festas da Bahia devido à promessa do capitão Teodósio Rodrigues de Farias que atribuiu a sua salvação de um naufrágio a essa invocação ao Bom Jesus. É uma pena que a reportagem não traga outras informações, como a de quando a festa começou e a sua última edição, mas ficou o indício da ininterrupta potencialidade de festejar na cidade surgida às margens da Baía de Todos-os-Santos.  

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

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