Encontro de Caetano Veloso e Maria Bethânia é novo marco musical
Os irmãos estiveram juntos em ocasiões especiais, como o show de comemoração aos 450 anos de Salvador
Desde que a turnê conjunta de Caetano Veloso e Maria Bethânia por capitais brasileiras foi anunciada no mês passado a rotina da produção tem sido a de anunciar novas datas e lidar com a situação de ingressos esgotados rapidamente. A série de shows só começa em agosto, no Rio de Janeiro, mas o projeto já é considerado o maior evento da música brasileira deste ano. A alta procura indica o quanto os irmãos, baianos de Santo Amaro, conseguiram manter de protagonismo na cena musical. A apresentação conjunta, em um formato mais longo, repete o encontro entre eles que aconteceu em Salvador na celebração dos 450 anos de fundação da cidade e que foi o ponto alto da festa, como foi registrado em A TARDE:
“Com o Hino ao Senhor do Bonfim, os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia encerraram ontem as comemorações dos 450 anos de Salvador. O show durou quase três horas e fez o chão da praça balançar com o embalo dos milhares de pessoas que lotaram a Praça Castro Alves. Dois telões instalados em locais estratégicos levaram as imagens do show até a Ladeira de São Bento e à rua Carlos Gomes, e as pessoas que não conseguiram espaço na Praça Castro Alves puderam acompanhar o espetáculo”. (A TARDE, 30/03/1999, p.3).
De acordo com o texto, o show, além de canções que marcaram a trajetória dos artistas teve o que tem sido uma marca nas apresentações de Bethânia: a declamação de poemas. Naquela ocasião ela recitou Navio Negreiro, de Castro Alves, em uma versão musicada por Caetano.
Os irmãos já estiveram juntos em outras ocasiões, como no tributo a Mãe Menininha, nos 21 anos da morte da ialorixá do Ilê Iyá Omi Axé Iyamasé, mais conhecido como Terreiro do Gantois, de onde Bethânia é filha de santo. Em 1978, A TARDE também registrou um encontro que, segundo o texto, foi o primeiro:
“Um show sem intervalo e com a duração de uma hora e quarenta e cinco minutos, incluindo um repertório de 22 músicas, inclusive algumas inéditas é o que Caetano Veloso e Maria Bethânia farão de terça-feira, até o próximo domingo, às 21 horas, no Teatro Santo Antônio. Em entrevista coletiva nas escadarias do teatro, ontem à tarde, os artistas disseram que a escolha do Santo Antônio se deu por falta de pauta no TCA e principalmente porque foi ali que Bethânia viu pela primeira vez artistas e peças de teatro. Também esta é a primeira vez que os irmãos Veloso fazem shows juntos”. (A TARDE, 28/5/1978, p.3).
Sucesso nacional
A novidade dessa turnê é a sua extensão. São dez cidades, incluindo Salvador. A relação inicial foi ampliada a pedidos e em alguns casos foi aberta mais uma apresentação. Só essa expansão dá uma dimensão da importância que os artistas possuem no cenário musical brasileiro.
“Caetano Veloso e Maria Bethânia têm uma capacidade inventiva e de comunicação enorme com o público. São artistas longevos que acumularam mais de seis décadas de sucesso e de presença no mainstream cultural brasileiro. Caetano Veloso, no último trabalho dele, Meu Coco, mostrou como um artista com tanto tempo de carreira consegue produzir algo tão inventivo. E Maria Bethânia como intérprete, como alguém que pensa o Brasil como artista, consegue também se renovar”, analisa o antropólogo, historiador, jornalista e poeta, Marlon Marcos. Doutor em antropologia, ele é professor do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), localizado em São Francisco do Conde.
Essa capacidade de renovação das linguagens artísticas e da criatividade apontadas pelo professor Marlon Marcos, tem feito com que a arte de Bethânia e Caetano conquiste novas gerações. Uma amostra são os memes que tem os dois como protagonistas. Um relacionado a Caetano, por conta de uma reportagem de uma seção de notícias de celebridades publicada em 2011 tem o seu aniversário, em 10 de março, celebrado todos os anos nas redes. O texto ganhou projeção pela banalidade do título: Caetano Veloso estaciona carro no Leblon.
“O meme rejuvenesce a obra e alcança pessoas que não a conheciam. A curiosidade sobre o protagonista do meme leva à busca por saber mais sobre a pessoa que está gerando o riso, a graça ou o debate sobre uma questão. O meme acaba servindo como um instrumento de atração de um público que talvez desconhecesse a obra dos artistas, o que dá uma dimensão da capacidade de renovação do que eles produzem”, diz Marlon Marcos. Ele é autor de Oyá-Bethânia- os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. O livro, que mostra a inserção da religiosidade de Maria Bethânia em sua arte e essa relação com a indústria cultural, é derivado da dissertação de mestrado do antropólogo apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia. (Pós Afro-Ufba) e orientada pelo professor Cláudio Luiz Pereira.
Estética provocativa
As carreiras de Caetano Veloso e Maria Bethânia surgiram em um contexto de extrema tensão social no Brasil por conta da ditadura militar iniciada com o golpe de 1964. Bethânia ganhou projeção ao substituir Nara Leão (1942-1989) na peça Opinião, após se mudar para o Rio de Janeiro. “Aquela cantora de voz potente, andrógina, em comparação ao estilo delicado e de voz doce de Nara Leão arrebatou a cena musical brasileira. Foi ali também que se abriu o caminho para o irmão de Bethânia, Caetano”, aponta Marlon Marcos.
A dupla tem a sua trajetória conectada de forma mais intensa à arte de mais dois baianos: Gilberto Gil e Gal Costa (1945-2022). Embora com características muito próprias na música, os caminhos dos quatro sempre estiveram unidos porque começaram juntos. Caetano e Gil dialogaram de forma intensa, inclusive em um movimento, o Tropicalismo, ao lado de outros artistas, como Tom Zé. Mas, embora, cada um tenha suas trajetórias muito bem-marcadas do ponto de vista individual é sempre recorrente analisar suas carreiras na perspectiva de quarteto.
“Para mim, os quatro representam uma síntese de tudo o que foi produzido na Bahia por nomes como Dorival Caymmi, Assis Valente, João Gilberto e Raul Seixas. Eles sintetizam a grande invenção musical que é esse lugar chamado Bahia. De fato, são extremamente importantes, começaram juntos e levaram a Bahia pelo mundo”, avalia o professor Marlon Marcos.
Na avaliação do professor, em relação aos irmãos Caetano e Bethânia, o primeiro fez uma experimentação estética mais evidente por conta do Tropicalismo, mas Bethânia, ao seu modo, também tem carreira marcada pela inovação. “O Tropicalismo foi uma proposta de movimento estético e através da antropofagia conseguiu alcançar diversas linguagens em uma brasilidade que sentimos como algo nosso. Maria Bethânia pode ser vista como mais reclusa em relação à estética tropicalista, mas esteve atenta a querer cantar em sua voz tudo que fosse o Brasil a que ela escolheu pertencer: o Brasil afro-indígena, do Recôncavo da Bahia, do samba chula, do samba de roda, das canções amorosas, do amor rasgado, do samba canção e da obra de Dorival Caymmi. Bethânia escolheu esse caminho e a estética tropicalista é aquela que diz ser tudo possível dentro da música”, acrescenta o antropólogo.
Aqui estão algumas pistas do porquê este encontro mobiliza tantas atenções e emoções. Nos duetos, mas também nos momentos solos, as várias faces do público destes shows estarão em conexão com os dois artistas que irão conduzir a magia que a música é capaz de produzir.
Confira as páginas de A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia