A trajetória de Volta Seca, o menino do bando de Lampião | A TARDE
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A trajetória de Volta Seca, o menino do bando de Lampião

Publicado sábado, 29 de maio de 2021 às 06:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
Volta Seca tem uma biografia tumultuada Foto: Prefeitura de Salvador – Secretaria Municipal de Comunicação Social / Cedoc A TARDE
Volta Seca tem uma biografia tumultuada Foto: Prefeitura de Salvador – Secretaria Municipal de Comunicação Social / Cedoc A TARDE -

Em 1963, a redação de A TARDE recebeu a visita de Antônio dos Santos, descrito como baixo, magro e aparentando 50 anos, em reportagem publicada na edição de 14 de março daquele ano. O visitante era o ex-cangaceiro conhecido como Volta Seca no bando liderado por Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Volta Seca foi admitido no grupo, segundo afirmou, quando tinha 11 anos. Aos 14 foi condenado a mais de cem anos de prisão que depois foram reduzidos para 30 anos. Foi levado, mesmo sendo menor, para a Penitenciária do Estado. Ficou preso por 20 anos, pois, em 1951, o presidente Getúlio Vargas assinou o seu indulto. Em liberdade, Volta Seca continuou a fascinar as mídias.

“– Vim fazer uma visita a A TARDE para mostrar que não sou aquilo que inimigos afirmavam a meu respeito e que mudei muito de vida sendo agora um brasileiro digno e trabalhador, pai de numerosa família” (A TARDE 14/3/1963, p. 4).

Nesta visita, Volta Seca reiterou, por diversas vezes, seu objetivo de desmentir histórias que considerava prejudiciais à sua reputação, como a de que fazia crochê na prisão. Isso parece ter lhe incomodado muito, pois contou que chegou a procurar, sem sucesso, pelo repórter que escreveu o texto, mas tomou o cuidado de garantir que não ia adotar nenhuma postura violenta caso o encontrasse.

“– O que me danava – diz o antigo cangaceiro – eram as notícias de que eu vivia fazendo crochê na prisão dando a entender que eu era afeminado. Procurei o repórter, quando saí da cadeia, durante meses. Não queria evidentemente tirar vingança, mas saber onde ele colheu as informações contra minha moral”. (A TARDE, 14/3/1963, p. 4).

No livro Volta Seca e

o estranho mundo dos cangaceiros, Estácio de Lima apresentou informações que podem explicar a origem do boato sobre o crochê. Lima, diretor do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues (IML), foi também presidente do Conselho Penitenciário, o que o fez envolver-se com o caso de Volta Seca, especialmente devido à sua condição de menor em ambiente prisional. O correto, de acordo com a legislação da época, seria interná-lo em uma instituição correcional, mas destinada a menores de idade. De acordo com Lima, no presídio, Volta Seca foi direcionado à fabricação de flores com miolo de pão.

“Ora, sendo o ambiente prisional favorável a deformações do caráter, com os desvios da libido, o fato de escalarem o rapaz para essa habilidade, era deixá-lo exposto aos motejos dos demais, afora os prejuízos resultantes da falta de um trabalho de caráter viril”. (Volta seca e o estranho mundo dos cangaceiros, coleção e-poket, pp 49-50).

O incômodo de Volta Seca, portanto, era por conta de insinuações, ao que parece, sobre uma inclinação homossexual, aspecto que foi citado mais diretamente em uma reportagem.

“Na Penitenciária dedicou-se a tarefas mais próprias às mulheres, executando trabalhos em ‘tricot’ de fino gosto! Quando parecia que deixava a prisão marcado por uma anomalia sexual, casa-se cá fora ‘Volta-Seca’, hoje já sendo pai por duas vezes”. (A TARDE, 27/3/1957, p. 3).

O trecho citado é da reportagem que anunciou, em 1957, quando Volta Seca já estava em liberdade, a sua estreia como cantor. Ele gravou um LP intitulado Cantigas Sertanejas. No disco, Volta Seca entoa canções que contou ser a trilha sonora da rotina nos acampamentos do bando de Lampião.

“Atendendo pedido do repórter, ‘Volta Seca’ canta algumas (músicas). Confirma que ‘Mulher Rendeira’ era a preferida de todos e quase que o hino do cangaço. O LP chama-se ‘Cantigas Sertanejas’ e foi gravado pela Todamérica”. (A TARDE 14/3/1963, p. 4).

Midiático

Volta Seca foi o preso mais jovem entre os integrantes do cangaço. Ele contou, na entrevista que concedeu em 1963, que foi acolhido por Lampião após fugir de casa e perambular pelos sertões. Estácio de Lima afirmou que ele tinha dez anos quando entrou no cangaço. Natural de Itabaiana, Sergipe, Antônio dos Santos fez pequenos serviços para o bando até que aos 13 anos começou a participar de ações, como o assassinato de policiais em Queimadas, o crime que lhe deu notoriedade e resultou na sua condenação.

Praticante da abordagem que fazia a mistura explosiva – associação de traços físicos a comportamento criminoso – seguindo os passos de Nina Rodrigues, Estácio de Lima relata exames, como radiografia, em Volta Seca como um dos métodos para investigar os motivos da sua inclinação para o crime. Mas criticou o que considerava um interesse exagerado da imprensa pelo personagem.

“Volta Seca passou a meio falastrão. E a reportagem ávida das novidades e das sensações invadiu a Penitenciária da Bahia, no velho Engenho da Conceição, para as entrevistas repetidas”. (Volta seca e o estranho mundo dos cangaceiros, p. 31).

Realmente, Volta Seca foi tema de seguidas reportagens publicadas em A TARDE, pois sempre estava envolvido em lances fascinantes. A edição de 18 de janeiro de 1946, por exemplo, deu detalhes sobre Percilia da Cruz, uma lavadeira que morava na região da Capelinha de São Caetano e que era tida como a companheira de Volta Seca. A casa de Percilia foi um ponto de busca por informações quando ocorreu a sua segunda fuga do presídio.

A escapada foi noticiada no dia 17 de janeiro, mas 12 dias depois, um texto na capa do jornal informou que Volta Seca havia retornado ao presídio. Ele explicou que ao perder o horário marcado para se recolher temeu ser punido e resolveu ficar perambulando por Salvador. Na fuga anterior chegou a sair da capital, mas retornou quando o seu companheiro na ação ficou doente.

Revisão

Literatura, estudos acadêmicos e o cinema começaram a abordar o cangaço por outras perspectivas que não apenas a criminal. Há narrativas que enfocam, como no caso dos movimentos messiânicos, a pobreza, a ausência do estado e o contexto dos enfrentamentos de poderes locais como bases do fenômeno. As alianças de Lampião, por exemplo, envolveram proprietários de terra interessados no poder que essa relação poderia ofertar especialmente para amedrontar adversários.

“O cangaço é um movimento que comporta as mais variadas narrativas, relatos, versões e é um fenômeno antigo. O cinema foi fundamental na retomada desse assunto, especialmente o feito por Glauber Rocha e outros integrantes do chamado Cinema Novo”, analisa Gilfrancisco, 69 anos. Historiador, jornalista e escritor, ele tem cerca de 40 livros publicados sobre temas e personagens relacionados, especialmente, à história da Bahia e de Sergipe, onde mora atualmente.

Gilfrancisco é autor de uma interessante obra que mapeia as notícias sobre Lampião no Diário Oficial do Estado de Sergipe dando uma dimensão das estratégias adotadas para tentar conter os ousados movimentos do herói para uns e bandido para outros. “O Diário tinha uma coluna que fez parte da estratégia de comunicação oficial, envolvendo até rádios para dar alertas sobre as ações de Lampião”, diz Gilfrancisco. O livro intitulado Lampião no Diário Oficial tem belíssimas ilustrações do artista plástico Leonardo Alencar.

Com o cangaço no radar dos seus escritos, Gilfrancisco, um pesquisador cuidadoso e detalhista, conheceu Volta Seca. Ainda menino, acompanhou o pai, Odilon Francisco dos Santos, funcionário da Ufba e radialista, ao restaurante da famosa cozinheira Maria de São Pedro. Lá, Volta Seca encontrou-se com Jorge Amado.

“Na minha cabeça de menino a sensação era de um certo temor, afinal ele era definido como um matador, alguém que cometia atrocidades. Lembro que ele estava acompanhado por dois homens. É natural, pois alguém que tinha uma história como a dele podia ser um alvo para várias pessoas”, diz Gilfrancisco.

Esse encontro tinha ainda um ingrediente a mais sobre a midiatização da história de Volta Seca. Contava-se que ele tinha ficado furioso ao saber que Jorge Amado deu seu nome a um dos personagens do livro Capitães da Areia. Segundo a rede do fuxico, Volta Seca teria ameaçado fazer Jorge Amado engolir as páginas do livro. Mas ao menos esse encontro, de acordo com as lembranças de Gilfrancisco, não teve demonstrações de ressentimento.

De alguma forma, Volta Seca parece ter contado com uma certa simpatia de alguns setores da imprensa. Um repórter de A TARDE que, infelizmente, não tem o seu nome registrado, pois na época não se usava rotineiramente o recurso de assinar reportagens, conseguiu permissão para dar pessoalmente ao ex-cangaceiro a notícia da redução de sua pena.

“Quando lhe comunicamos que o presidente da República havia comutado sua pena e que ele brevemente iria ser solto, “Volta Seca”, meio desconfiado, disse: “Deixe de história seu repórter, o que eu quero é paz e dinheiro e daqui a uns dez anos a minha liberdade”. Mostramos-lhe então o telegrama e ele exclamou que já podia ir embora”. (A TARDE, 8/11/1951, p. 2). Mas a liberdade de Volta Seca ainda demorou alguns meses e teve o cômputo de punição pelas duas fugas. Solto em abril de 1952, foi trabalhar no IML, dirigido por Estácio de Lima. Sete meses depois surgiu o boato de que ele havia sido morto em uma confusão. Além disso ninguém conseguia localizá-lo em Salvador.

Mas na edição de 5 de dezembro do ano seguinte, A TARDE noticiou que o Comitê de Imprensa da Câmara do Rio de Janeiro estava à procura de um emprego para Volta Seca. O texto também informou que ele havia auxiliado na divulgação do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, e uma das atrizes, Marisa Prado, havia batizado uma de suas filhas. Em 7 de dezembro de 1953, A TARDE informou que ele conseguiu um emprego de vigilante, mas estava receoso, pois achava parecido com a função de “macaco”, que era a forma como os integrantes do cangaço chamavam a polícia.

Ferrovia

Quando visitou A TARDE em 1963, Volta Seca estava trabalhando na ferrovia, na Estação Barão de Mauá, conhecida como Leopoldina, no Rio de Janeiro. Contou que tinha um salário superior ao mínimo da época, que era de 21 mil cruzeiros, e outros detalhes da sua vida como um homem regenerado. Na despedida, o repórter foi abraçá-lo e notou que ele estava armado, detalhe que registrou no texto assim como a resposta de Volta Seca:

“– Tenho porte de arma e carrego uma pistola. Meu serviço na Leopoldina exige. E o fato da polícia me conceder porte de arma é uma prova que mudei e que a polícia confia em mim”. (A TARDE, 14/3/1963, p. 4).

Volta Seca morreu em 1997 quando morava em Minas Gerais. Não manteve a promessa de silenciar sobre o cangaço, como afirmou para a reportagem de A TARDE em 1963, pois, posteriormente, concedeu entrevistas a jornais, como O Globo e o Pasquim. Em 1995 foi entrevistado pela TV Globo onde mais uma vez abordou o tema que o fazia ser lembrado: a condição de sobrevivente do bando de Lampião, uma história que ainda move paixões intensas.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

Para saber mais: Volta Seca e o estranho mundo dos cangaceiros, Estácio de Lima, coleção E-Poket, 2020; Lampião no Diário Oficial, Gilfrancisco, Edições GFS, 2021. Pedidos:gilfrancisco. [email protected]; Os Cangaceiros. Direção: Lima Barreto, 1953

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