Acervo contou histórias da rua que trocou nome para homenagear o Chile
Por conta dos 100 anos do decreto, rua Direita do Palácio mudou denominação para uma das mais famosas da capital baiana
Há 120 anos uma das ruas surgidas com a fundação de Salvador ganhou um novo nome. De rua Direita do Palácio, ela se transformou em rua Chile, por meio da Lei nº 577, de 17 de julho de 1902. A mudança foi por conta da passagem do navio Chacabuco, da Marinha Chilena, que aportou em Salvador, liderando uma esquadra, na viagem com destino ao Rio de Janeiro para transportar os corpos de quatro funcionários do Escritório de Relações Políticas e Econômicas Chileno no Brasil.
Os funcionários morreram por peste bubônica no Rio de Janeiro. Em 2002 reportagens publicadas em A TARDE detalharam as comemorações do centenário de mudança do nome da rua. Além disso, uma coleção de fotografias do Cedoc A TARDE retratam a via que, além de estar vinculada ao início da cidade, teve uma era de passarela da elegância soteropolitana com lojas da moda, confeitarias e lugar para ver e ser visto.
“Naqueles dias, a rua Chile concentrava, por metro quadrado, o maior número de intelectuais, políticos, belas mulheres e, como não podia deixar de ser, muitos estudantes. Era, sem dúvida, um dos locais de maior requinte da cidade”. (A TARDE, 15/7/2002, p.4).
Em 17 de julho de 2002, outra reportagem registrou detalhes da solenidade oficial de comemoração ao centenário da mudança de nome da rua. Com a presença de autoridades chilenas a cerimônia contou com a apresentação do hino que celebrou a amizade entre Brasil e Chile. Foi a primeira vez, segundo o texto, da execução da peça musical.
“Em seguida, foram tocados os hinos do Chile e do Brasil, e, pela primeira vez no País, executado o hino Chile/Brasil, música de Francisco Fraga (o mesmo que compôs o Hino à Bandeira), que misturou os dois hinos. Antes do encerramento das festividades, com fogos de artifício, foi descerrada também uma placa comemorativa ao centenário, afixada ao lado do Palácio Rio Branco”. (A TARDE 17/7/2002, p.4).
Em um artigo para o Caderno 2 de A TARDE da edição de 21 de julho de 2002, a escritora Myriam Fraga descreveu a atmosfera de elegância que marcava a Rua Chile na década de 1950. A escritora detalhou características da via, como local de sede das lojas com os mais variados produtos, mas sobretudo magazines, armarinhos, casas de chá e confeitarias.
Além disso, a rua Chile foi o endereço do Palace Hotel, com um cassino presente nos romances de Jorge Amado, da Sapataria Clark, da Loja Adamastor, dentre outros negócios. Na rua Chile reunia-se a então juventude dourada da capital baiana, elementos com destaque no texto de Myriam Fraga.
“A Slopper não era uma loja, era um magazine onde se encontrava de tudo, desde os chamados artigos de cama e mesa, presentes, bijuterias e moda feminina, até brinquedos e prataria. Para nós, adolescentes, comprar um vestido na Slopper era a glória. Ali, eram lançadas as modas do sul maravilha, as novidades usadas pelas estrelas de cinema: os vestidos de lastex, os casacos de ban-lon, os sapatos tipo Gilda, os maiôs de cetim, as combinações de nylon, a bolsa tiracolo, as saias plissadas de tergal, as sandálias anabela, com saltos de cortiça, com que desfilávamos garbosamente aos domingos, no Farol da Barra”. (A TARDE, 21/7/2002, Caderno 2, p.4).
Observando-se uma coleção de fotografias em preto e branco, mas também coloridas, do acervo do Cedoc A TARDE, o que emerge, principalmente, é o reforço da imagem de localidade que, mesmo com o fim do protagonismo ainda preserva beleza. Tanto que o destaque nos registros, geralmente, é para os imóveis que se destacam pela plasticidade arquitetônica. As imagens são das décadas de 1970, 1980 e 1990, quando, inclusive, a rua Chile enfrentava diversos problemas na infraestrutura e que as reportagens por conta da passagem do centenário anunciavam que seriam resolvidos.
“Poucos espaços já receberam tanta atenção da administração pública quanto a rua Chile, que amanhã ganha aniversário de 100 anos com direito a pompa e circunstância. Um tanto pelo charme e elegância que suas calçadas, lojas e cafés trouxeram à história da cidade e uma outra cota por ser justamente ali o foco atual do projeto de revitalização encampado pelos governos estadual e municipal”. (A TARDE, 15/7/2002, p.4)
Homenagem longa
As comemorações, no centenário, ocorreram no dia 16, embora a lei de mudança de nome da rua tenha sido publicada no dia 17. Talvez a escolha pelo dia 16, em 2002, tenha acontecido por ter sido, possivelmente, a data da reunião do Conselho Municipal que ratificou o pedido feito por estudantes da Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito e da Escolha Politécnica, em 1902, para a alteração na denominação da rua.
A reprodução da lei foi registrada na tese intitulada Rua Chile: caminhos de sociabilidades, lugar de desejos, expressão de conflitos-1900 a 1940, de Neivalda Oliveira, doutora em história e professora titular da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Sob orientação da professora Maria Odila Leite da Silva, o trabalho foi defendido em 2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
No trabalho, dentre várias questões relacionadas à rua Chile, Neivalda Oliveira conta detalhes sobre os 14 dias de festas para marcar a passagem do navio chileno por Salvador. A esquadra chegou no dia 18 de julho de 1902 e partiu, com destino ao Rio de Janeiro no dia 28. A programação incluiu Te Deum, saraus, discursos, cerimônias nos espaços de governo, piqueniques, dentre outros eventos. Mas tanto capricho e método não eram apenas por celebração, mas um cuidadoso arranjo político.
“O Chile economicamente e politicamente era, no período, a nação mais importante da América Latina. Foi o primeiro a se alinhar à Inglaterra, fez independência e abolição mais cedo, assim como a urbanização mais moderna. Tanto que o navio estava em missão na Inglaterra por conta da coroação do Rei Eduardo VII quando foi deslocado para vir nessa missão fúnebre. E Salvador vivia um período de decadência, tanto política quanto econômica. Dessa forma, as autoridades de governo e outros grupos variados de poder vislumbraram a possibilidade de fazer uma homenagem diante de um fato que mexeu com o Brasil antecipando-se ao Rio de Janeiro, que era a capital do país e onde estavam os corpos dos homenageados. Em Salvador, a festa foi sem a presença, digamos, dos elementos fúnebres” , explica Neivalda Oliveira.
Além disso, a celebração, de certa forma, era a tentativa de reparar algo que atingia em cheio a imagem do País: a morte por peste bubônica de quatro funcionários do corpo diplomático chileno – Joaquim Godoy, Izidoro Errazuiriz, Luiz Bezanilla e João Souza.
“Era dia 18 de julho de 1902. Por volta das sete horas da noite, quem estivesse a olhar para a Baía de Todos-os-Santos, iluminada pelos raios prateados da lua cheia, via na altura do Rio Vermelho, a esquadra chilena se dirigindo ao porto de Salvador. O mar era tão calmo que mais ou menos às nove horas já estavam fundeando os navios na parte interna da baía. O dia 19 de julho amanhece claro, com sol forte, sem vento, maré macia, boa para a ancoragem. Ao contrário do que se esperava, pois a previsão dos pescadores, pensando no que normalmente acontecia essa época do ano, era de muita chuva. Todos os navios arribados na Baía de Todos os Santos estavam embandeirados com as cores do Brasil e do Chile. Em terra parecia que toda população soteropolitana estava fora de casa”. (Rua Chile: caminhos de sociabilidades, lugar de desejos, expressão de conflitos-1900 a 1940, Neivalda Oliveira, p.22).
Antiguidade
Mudar de nome por conta de uma homenagem fúnebre foi mais um episódio na longa trajetória da rua que se confunde com a própria história de fundação da cidade. o primeiro nome foi Rua Direita de Santa Luzia, por estar próxima a uma das portas, com este nome, da cidade fortificada seguindo a planta oficial da missão de Tomé de Souza em 1549.
“Essa rua já estava na planta, pois as cidades coloniais portuguesas seguiam o mesmo modelo, como Goa, por exemplo. O que se faziam eram adaptações”, aponta a professora Neivalda Oliveira.
Próxima a imóveis importantes para a administração da cidade, como a Casa de Câmara e Cadeia e a Casa dos Governadores, a rua passou a se chamar Direita das Portas de São Bento, pela construção do que viria a ser o Mosteiro de São Bento, iniciada em 1582. Depois, tornou-se a rua Direita dos Mercadores, onde estava o comércio de produtos como tecidos, sapatos e água de cheiro. Com a República, a rua ganhou uma denominação que destacava a proximidade da via com o espaço de poder: rua Direita do Palácio. Mas foi com o nome de Chile que ela desfrutou uma das mais fortes características: o glamour.
“Fazendo um apanhado dos acontecimentos relatados neste período, se pode afirmar que, ao incorporar ‘Chile’ ao nome, a rua não assume outra, ou nova importância para a cidade. Ao contrário, sendo um centro comercial admirável, uma via de ligação fundamental, nome é mudado justamente pela importância como artéria, como lugar social e cultural”. (Rua Chile: caminhos de sociabilidades, lugar de desejos, expressão de conflitos-1900 a 1940, Neivalda Oliveira, p.42).
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.