Alvorada é o guardião do lugar do samba no Carnaval
Bloco completa 50 anos em 2025 e foi o pioneiro em desfilar na sexta-feira, na época em que a folia durava somente do sábado até a terça-feira

O samba rejuvenesce. A frase de Vadinho França, um dos fundadores e presidente do bloco Alvorada, possui muitas camadas e significados. De forma metafórica, é como dizer que o tempo não passa para aqueles que mantêm o espírito leve de ‘brincar de samba’. Em outro sentido, rejuvenescer tem o significado de renovação constante, que é o que acontece no modo afetivo como a velha guarda do Alvorada acolhe e agrega os sambistas da nova geração.
O bloco Alvorada foi o primeiro a desfilar na sexta-feira de Carnaval, há 50 anos, inaugurando uma tradição que, com o passar das décadas, culminou na festa ampliada de Salvador. Antes daquele grupo de jovens amigos sair do Gravatá, no Centro da cidade, vestindo lençóis e com uma percussão potente no chão, o Carnaval começava no sábado e se estendia até a terça-feira. Ainda não existia o Arrastão da Quarta de Cinzas ou o Furdunço e o Fuzuê para aquecer os foliões.

O espírito inquieto da juventude estudante de uma escola pública da capital deu origem ao Alvorada. A combinação da tradição, resiliência e uma troca simbiótica entre a velha guarda e a nova geração fazem o bloco seguir em frente.
“Temos sempre essa transição afetiva. Buscamos os mais novos para a composição, organização, administração, design… Conseguimos ter essa relação em que os mais velhos aprendem nessa transição, há uma troca, tudo junto e colado, aprendo e ensino, mas não perdemos a essência. Isso revigora o samba”, afirma Vadinho, para quem é difícil falar de samba no Carnaval de Salvador sem ter o Alvorada como referência.
A história começou com um grupo de estudantes secundaristas do Colégio Severino Vieira, unidade educacional do governo do estado, que fica ali em Nazaré. Pense na paisagem do bairro em 1975 e agora visualize um grupo de jovens que já faziam samba e desfilavam em blocos diversos no Carnaval. O ano letivo em 1974 chegou ao fim, todos querem manter os laços de amizade forjados na escola mesmo após a conclusão do curso, surge a ideia de criar um bloco. Oficialmente, o Alvorada foi criado em 01 de janeiro de 1975, já com foco a desfilar no Carnaval daquele ano.
“A gente inventou de fazer um bloco. Já tínhamos dentro do colégio uma atividade muito forte cultural, brincávamos de samba no final de semana, então [decidimos]: 'vambora fazer’. Só que, naquele momento, todos tínhamos nossos blocos de preferência no Carnaval, que começava sábado [e avançava] pelo domingo, segunda e terça. Mas, para todo mundo se aglomerar nessa história de fazer samba, criamos o dia de sexta-feira. Escolhemos o Gravatá, porque a maioria morava no Centro da cidade e criamos essa relação do Gravatá com o Alvorada”, recorda Vadinho.
Para ele, ‘a ficha ainda não caiu’ de que o bloco já tem cinco décadas de existência. “Parece que foi ontem que começou”, diz, certamente porque como o samba rejuvenesce, os sambistas do bloco não sentem o peso das estações. “Saíamos do Gravatá, tínhamos uma percussão de chão e vinha um carro, um minitrio daquela época. Só que, no início do Alvorada, os blocos não tinham essa questão de sonorização forte, era um megafone”, continua Vadinho.
Lençol e kombi
No primeiro desfile, o Alvorada conseguiu uma kombi, avó do famoso ‘carro do ovo’ da atualidade, brinca Vadinho. “O cara vendia uva ali na Praça da Sé. Eu fui lá, falei com ele e ele não queria, a princípio, porque achava que iríamos acabar a embreagem. Falamos para ele que não iríamos subir a Ladeira da Praça. Porque no Carnaval, o convencional era subir a Ladeira da Praça, fazer a volta no Edifício Themis e pegar a Rua Chile. Naquele momento, na sexta-feira, a cidade realmente estava se preparando
para fazer o Carnaval no sábado, domingo, segunda e terça, colocando gambiarras, decoração... Resolvemos subir a [rua] da Independência pela [Avenida] Joana Angélica, ele aí já topou”, detalha o presidente do bloco.
Resolvido o problema da kombi, faltava a fantasia. Os integrantes tiveram a ideia de desfilar vestindo lençóis. “Esse lençol foi uma criatividade em dois sentidos: para o cara se vestir e, com o bloco saindo sexta-feira, meia-noite, era tipo o cara que está em casa dormindo, vê um bloco de samba, bota o lençol e desce”, continua Vadinho.
Do lençol, os foliões passaram para a fantasia. Com a consolidação do bloco, a Ladeira da Praça já entra no roteiro. Sai a kombi, entra um trio melhor, mas com a percussão no chão. Imagens guardadas no Cedoc - Centro de Documentação e Memória de A TARDE mostram desfiles do Alvorada nos anos 1990 e a percussão aparece no chão, enquanto os foliões já vestem fantasias, batas e chapéus característicos.
Com o tempo e para dar mais visibilidade ao bloco, a saída já deixa de ser do Gravatá e passa para a Avenida, o circuito do Campo Grande. A percussão sai do chão e vai para cima do trio, seguindo as mudanças nas tendências e modos de fazer o Carnaval. Só uma coisa nunca muda, o samba.
“No Alvorada, o samba não é opção, é regra. Nos torna, de certa forma, salvaguarda do ritmo, porque muitas daquelas entidades que foram coirmãs naquela época vieram acabando e a gente continuou. A pluralidade de ritmos no Carnaval da Bahia continua forte, é pulsante, e o Alvorada continua fazendo samba”, enfatiza Vadinho França.
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Lavagem
Embora não saia mais do Gravatá e sim da Passarela Nelson Maleiro, no circuito Osmar, no Campo Grande, a relação do Alvorada com essa comunidade nunca se desfez. Há 44 anos o bloco promove a Lavagem da Fonte do Gravatá, também chamada de Fonte de Nanã, na Rua da Independência, em Nazaré, onde funciona a sede. A edição deste ano aconteceu no domingo, 16 de fevereiro, já dentro da programação comemorativa do Jubileu de Ouro. O evento faz parte do calendário das Festas Populares de Salvador desde 2015 e este ano teve apoio do Governo da Bahia através da Secretaria do Turismo (Setur).
Nas edições de A TARDE preservadas no Cedoc, a Lavagem do Gravatá aparece na programação cultural pré-Carnaval. Reportagem de 27 de janeiro de 1991 elenca a festa entre as tradições culturais remanescentes e resistentes da cidade. Naquele ano, a lavagem aconteceu em 03 de fevereiro. O texto, além de falar da programação, dá a dica para quem pretendia participar do evento:
“Além do Alvorada, a lavagem conta com a animação do grupo Samba Gravata, do Clube Carnavalesco Vai Levando e de trios elétricos. Bares e barracas abastecem com comida e bebida. Os ônibus que fazem linha para a Barraquinha são a melhor opção para quem depende de coletivos, mas o Terminal da Lapa não fica muito distante da Ladeira do Gravatá”, diz trecho da matéria.
A lavagem, além de compromisso com a comunidade, também enfatiza a relação do Alvorada com as religiões de matriz africana. Embora o Carnaval seja uma festa profana, o Alvorada usa essa vitrine para falar dos seus, ou seja, para demarcar o espaço da musicalidade negra, do samba e do Candomblé na cultura baiana.
Ao longo dos anos, muitos temas já foram abordados pelo bloco, como as histórias da Igreja do Rosário dos Pretos e da Sociedade Protetora dos Desvalidos e de seu fundador, o africano alforriado Vitor Serra; os 100 anos da fundação do Candomblé do Bate-Folha, tema de 2016; além da vida de Manuel Querino, intelectual negro que deixou registros valiosos sobre a cultura afrobaiana entre o final do século XIX e começo do século XX. Querino foi pioneiro nos registros antropológicos que contribuíram tanto para valorizar quanto para mostrar a importância da herança cultural africana na formação do povo baiano.
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Profissão: sambista
O Alvorada tem uma ala de canto que acompanha o bloco desde a origem e é o único com esse diferencial. Segundo Vadinho França, ao longo da história da agremiação, sambistas nacionalmente famosos e jovens revelações se revezaram nas apresentações dentro e fora do carnaval. “Esses cantores, com talento, dividem o palco com diversos artistas e convidados de fora. A gente não abre mão da ala de canto, porque ela é um prêmio a todos aqueles, para além do Carnaval, que continuam de segunda a segunda fazendo samba em suas comunidades”, afirma.
Na visão da direção do Alvorada, o samba é um forte gerador de emprego e renda para as comunidades de origem dos sambistas. Cada ensaio, festa e show organizado emprega um sem-número de profissionais de diversos setores, desde montagem de palco, iluminação, cenografia, sonorização, design, segurança, até toda a gama de serviços, incluindo vendedores de comidas e bebidas.
O trabalho do Alvorada não se limita ao Carnaval, mas também possui projetos de incentivo ao afroempreendedorismo. No ano passado, durante quase um semestre, afroempreendedores baianos participaram de um ciclo virtual, com pessoas da Bahia e do Rio de Janeiro, para troca de informações, mostras criativas e desenvolvimento de ferramentas para melhorar o posicionamento da marca, produtos e serviços nas redes.
“O Alvorada tem essa característica, além do Carnaval, dentro das nossas atividades do ano, sempre estamos fazendo projetos. Geralmente, o empresário afro cria a sua marca, o ramo no qual vai trabalhar, busca o segmento. Então, por meio de editais, criamos projetos de oficinas e mentorias. Esse ano, após o Carnaval, começaremos um projeto voltado para as mulheres”, antecipa Vadinho.
Como é tradição, o bloco desfilará na sexta-feira (28), no Campo Grande. Na sede, na Ladeira da Independência, 68, ainda é possível comprar a fantasia da festa de 2025 para celebrar o Jubileu de Ouro junto com os sambistas do bloco.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE