Autores têm escrita marcada por denúncia da violência com base racial
Carolina de Jesus, Abdias Nascimento e Castro Alves fazem de março um mês especial para a literatura negra
Março é um período especial para a literatura brasileira. No dia 14 desse mês nasceram três autores que com estilos próprios contribuíram para reflexões que lançam luzes sobre a importância que a raça ganhou na formação social brasileira e as consequências deste processo: Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento, que nasceram no mesmo ano, em 1914, e Castro Alves. Por conta do nascimento de Castro Alves a data é considerada, no Brasil, o Dia Nacional da Poesia. No acervo do Cedoc A TARDE, as obras e trajetórias dos três foi fartamente registrada.
Autora do impressionante Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais. A relação com a escrita foi possível por ter estudado no Colégio Allan Kardec, pertencente ao Grupo Espírita Esperança e Caridade. Em 1947 foi morar na favela Canindé, em São Paulo onde se tornou catadora de papel.
Após conseguir um emprego como trabalhadora doméstica na casa de um médico intensificou seu contato com a leitura na biblioteca da residência. Ao ficar grávida perdeu o emprego e voltou a ser catadora de papel.
O encontro com um jornalista, Audálio Dantas, foi a ponte para que Carolina Maria de Jesus publicasse o seu primeiro livro em 1960, Quarto de Despejo, a partir dos relatos que fazia em seu diário do cotidiano na favela. A obra foi publicada em mais de 15 idiomas.
Em 1961, a RCA lançou um disco com canções de autoria da escritora. Posteriormente ela publicou Casa de Alvenaria, Provérbios e Pedaços de Fome. Diário de Bitita: um Brasil para brasileiros é uma publicação póstuma. Carolina de Jesus morreu em 1977.
Em 1993, uma nova edição de Quarto de Despejo foi tema de uma resenha no suplemento A TARDE Cultural, escrita pelo jornalista e cronista literário José Olympio da Rocha:
“Quando morreu em 14 de agosto de 1977, num sítio da periferia de São Paulo, Carolina Maria de Jesus estava quase esquecida pelo público e pela imprensa. Dezessete anos antes — em 1960 — o livro Quarto de Despejo, diário de uma favelada, foi um dos maiores acontecimentos editoriais que o Brasil conheceu: basta que se diga que através de sucessivas edições atingiu 100 mil exemplares. Um tempo em que o livro no Brasil não se arriscava a atingir mais do que dois ou três mil exemplares por edição.” (A TARDE Cultural, 9/10/1993, p.11).
Uma mulher negra, pobre, moradora de um local estigmatizado ter alcançado sucesso editorial no Brasil da década de 1960 dá indicações do quão forte era o texto de Carolina Maria de Jesus. Ainda hoje, escritoras negras como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Eliana Cruz, Cidinha da Silva, Lívia Natália, dentre outras, enfrentam as batalhas para se manter em um mercado complexo, competitivo e que também é marcado, como quase tudo no Brasil, pelos tentáculos do racismo. Há setores de crítica literária que consideram estilos múltiplos como se fosse uma literatura de uma nota só, o que mostra o quanto ainda uma escrita que subverte cânones, inclusive por dar voz a quem a indústria cultural silencia das mais variadas formas, incomoda e tem tantas barreiras para derrubar.
Ativismo múltiplo
Um dos mais importantes ativistas contra o racismo no Brasil, Abdias Nascimento (1914-2011) construiu uma trajetória impressionante. Ele atuou na literatura com a publicação de diversos livros como O Genocídio do Negro Brasileiro, Submundo- Caderno de um penitenciário, nas artes plásticas, na política como senador, deputado e gestor público e no teatro.
Natural de Franca, São Paulo, era neto de africanos que viveram a terrível experiência da escravidão. Seu pai foi sapateiro e músico e a mãe doceira. A família conheceu de perto a pobreza e Abdias começou a trabalhar aos sete anos. Foi na educação formal que ele encontrou o caminho para se tornar um dos mais brilhantes intelectuais da diáspora africana, como foi descrito muitas vezes.
Após a conclusão do ensino médio conseguiu entrar na universidade e se formou em economia. Fez duas pós-graduações: uma no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, em 1957, e outra em Estudos do Mar pelo Instituto de Oceanografia em 1961. Na militância política, Abdias esteve na Frente Negra Brasileira, na década de 1930, e organizou o Congresso Afro Campineiro que discutiu relações raciais em Campinas, no mesmo período. Protestou contra o Estado Novo, o que lhe levou à prisão na Penitenciária Carandiru por dois anos onde fundou o Teatro do Sentenciado, grupo em que os internos organizavam e atuavam em espetáculos.
Em 1944, já no Rio de Janeiro, fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN). Além de denunciar a prática do black face, ou seja, atores brancos atuando com a pele pintada para representar personagens negros, o TEN mantinha cursos de alfabetização e cultura geral para os seus integrantes, grupo formado por trabalhadoras e trabalhadores domésticos, operários, funcionários públicos e desempregados. Abdias foi curador e fundador do Museu de Arte Negra, esteve na linha de frente dos movimentos contra a ditadura militar e participou da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978.
Ao lado de Leonel Brizola ajudou na organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e no processo de redemocratização após a ditadura militar se tornou deputado e senador. Abdias foi um dos protagonistas do movimento para a criação da Fundação Palmares, órgão do governo federal, em 1988. Foi secretário de Direitos Humanos e Cidadania do governo do Estado do Rio de Janeiro, após o seu mandato de senador em 1999.
Com a Bahia, Abdias manteve uma relação bem próxima. Em 2000, a Universidade Federal da Bahia (Ufba) lhe concedeu o título de doutor honoris causa que se juntou aos outros concedidos por instituições como Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Universidade Obafemi Awolowo, localizada em Ilê Ifé, na Nigéria. Em 2007, a Câmara Municipal de Salvador deu a Abdias o título de cidadão soteropolitano além da Medalha Zumbi dos Palmares.
Além de vários registros sobre as suas passagens pela capital baiana, análise de obras e de trajetória, em 2014, no caderno comemorativo ao Dia Nacional da Consciência Negra intitulado Infância da Resistência, uma história sobre a infância de Abdias Nascimento integrou a seção voltada para dar destaque a personalidades negras. A autora do texto sobre Abdias foi a professora e mestra em Estudos de Linguagens pela Uneb, Lindinalva Barbosa.
“Um dia um griot nascido nas terras africanas de Ilê Ifé, a cidade sagrada dos nossos ancestrais, nos falou sobre Ekó Ilê. Ele disse que Ekó Ilê é aquela primeira lição que aprendemos em casa, com nossos mais velhos, antes mesmo de irmos para a escola. Pois bem. Hoje vamos falar sobre a primeira lição que o nosso menino Abdias aprendeu com sua mãe, a linda e doce dona Josina...”. (A TARDE, Especial Infância da Resistência, 20/11/2014, p.14).
A história completa foi publicada no blog Mundo Afro em uma estratégia multimídia do especial. Lindinalva Barbosa é também autora da dissertação intitulada As encruzilhadas, o ferro e o espelho- a poética negra de Abdias do Nascimento. Orientada pelo professor Silvio Roberto Oliveira, doutor em Teoria e História Literária, a dissertação foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em 2009. Na análise, Lindinalva Barbosa apresenta características de Axés do Sangue e da Esperança – Orikis, o único livro de poemas na vasta obra de Abdias.
“No livro, o universo simbólico afro-religioso é explorado pelo poeta como ferramenta primordial para a composição dos versos que imprimem o texto poético de sentimentos, fortalecimento de autoestima, reconhecimento, histórias, experiências, discursos, linguagens e princípios civilizatórios africanos e afro-brasileiros. Desta forma, orixás guerreiros/as e/ou protetores/as aparecem constantemente ao longo do livro como parceiros do poeta a contar sua saga e seu legado. Exu, Ogum, Oxum, Xangô, Yemanjá, Iansã e Oxalá são deuses e deusas a exercer papéis de proteção e inspiração divina; mas também são interlocutores do poeta, como homens e mulheres, no processo de promoção de justiça e liberdade do povo descendente de africanos, oprimido e marginalizado no contexto social brasileiro”. (As encruzilhadas, o ferro e o espelho- a poética negra de Abdias do Nascimento, Dissertação de Mestrado de Lindinalva Barbosa, p.20).
Ode à abolição
As palavras como forma de denúncia da violência por meio da escravidão foram usadas por Antônio Frederico Castro Alves (1847-1871). Baiano, Castro Alves morreu jovem, aos 24 anos, mas se firmou como um dos mais importantes poetas brasileiros.
As fases da sua obra reúnem componentes de romantismo, mas também a nostalgia por conta da morte devido a sua saúde extremamente frágil e a denúncia social. Abolicionista, Castro Alves abordou a escravidão em obras como Gonzaga, de 1867, e as mais conhecidas Vozes d´África e Navio Negreiro.
“Castro Alves soube como poucos expressar dores e indagações de um povo, sempre com alta consciência poética e social. Quem pesquisa sua vida e obra costuma atribuir a ele os adjetivos de sedutor, vaidoso e rebelde, além de enfocar uma grande marca de sua personalidade: a paixão. Uma paixão explicitada na poesia, no discurso libertário e no relacionamento com as mulheres”. (A TARDE, 8/7/1998, Caderno 2, p. 3).
As trajetórias, produções e escolhas literárias de Carolina de Jesus, Abdias Nascimento e Castro Alves se encontram no tema e na coincidência de nascimento. O dia 14 de março por conta da vida e obra dela e deles pode ser um bom momento para novas reflexões sobre a escrita brasileira especialmente a que toca em temas que enfrentam as várias tentativas de silenciamentos sob diversas perspectivas.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
Confira as páginas de A TARDE: