Bahia tem tradição de revelar pesquisadores da ciência médica

Médicos baianos ou formados na faculdade local estiveram em instituições de destaque em outros estados

Publicado sexta-feira, 01 de abril de 2022 às 11:05 h | Atualizado em 01/04/2022, 12:06 | Autor: Cleidiana Ramos
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Ainda hoje talentos formados na Bahia são absorvidos por centros de fora do estado.
Ainda hoje talentos formados na Bahia são absorvidos por centros de fora do estado. -

Ricardo Batista

Não é por acaso que o Instituto Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan largaram na frente na corrida pela produção de vacinas para a Covid-19. Esta é uma história que começou em 1899, com a chegada da peste bubônica ao Porto de Santos e sua disseminação por outros estados brasileiros. Tais instituições científicas surgiram com objetivo de produzir vacinas e soros que combatessem a bubônica e se tornaram referência nesse campo, cooptando, inclusive, personalidades científicas de todo o Brasil, como se percebe na experiência da Bahia.

As instituições de pesquisa não existiram apenas no eixo sudeste. Na Bahia, o governador Joaquim Manoel Rodrigues Lima (1892-1896) já havia promulgado a legislação sanitária de 1892, que criou a Inspetoria de Higiene, o Instituto Vacínico e transformou o Conselho de Salubridade em Conselho Geral de Saúde Pública. Nos anos seguintes, Luiz Vianna (1896-1900) reformou os serviços sanitários estaduais e, entre as modificações efetivadas, determinou a pesquisa bacteriológica, química e bromatológica. No governo de Severino Vieira (1901-1904), novas mudanças ocorreram com a Inspetoria Geral de Higiene, que possuía sob a sua gerência o Instituto Bacteriológico e o Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas, entre outros. Mas foi no governo de José Joaquim Seabra (1912-1916) que se inaugurou o Instituto Oswaldo Cruz da Bahia (IOC-BA) (Bacteriológico, Anti-rábico e Vacinogênico), com este nome em homenagem ao renomado cientista que atuou no Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX. Especialmente a partir da criação do Departamento Nacional de Saúde, em 1920, que propôs a primeira legislação sanitária federal, a despeito do regime federalista, ocorreu uma continua interiorização dos bens de saúde no país. Em 1927, o médico Eduardo de Araújo, professor da Faculdade de Medicina da Bahia que foi treinado nos Estados Unidos para dirigir o IOC-BA assumia sua função na instituição científica baiana.

A notícia de A TARDE, publicada na edição de 2 de março de 1921,  apresenta a intenção de Afrânio do Amaral, paraense radicado na Bahia que dirigia o Instituto Butantan em São Paulo naquele momento, de fundar uma filial do Instituto nas dependências da Faculdade de Medicina da Bahia, aproveitando um serpentário que lá existia para instalar o seu posto de produção de soro antiofídico. Não se sabe se o plano realmente se concretizou, mas não há vestígios na literatura sobre a fundação e duração desse acordo. O médico alegava que o Estado auxiliaria no transporte de materiais e de pessoas para o interior do estado, em busca de cobras e na realização de conferências educativas sobre esses animais. Contudo, em 1924 o jogo político baiano mudou e José Joaquim Seabra deixou o cargo.


A utilização do jornal para noticiar a possibilidade de criar uma filial do Instituto Butantan na Bahia não era incomum, já que as elites econômicas e médicas do estado apareciam constantemente nos jornais soteropolitanos para informar sobre as suas aspirações e realizações. Mas chama a atenção a tentativa de Amaral em estreitar as relações entre uma instituição paulista e uma baiana, enquanto “É o conhecidíssimo e famoso Instituto Butantan, a certos títulos do Instituto rival do que Oswaldo Cruz fundou em Manguinhos, no Rio de Janeiro”.


Alguns autores questionam o porquê da Bahia, que tinha uma tradição estabelecida em ensino e pesquisa, já que abrigava a centenária Faculdade de Medicina da Bahia, não ter instituições científicas de destaque como o Instituto Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan na primeira metade do século XX. Os argumentos utilizados por eles se pautam na existência de uma tradição conservadora de ensino marcada pela repulsa a pressupostos da bacteriologia. No entanto, talvez a explicação possa ser feita por outros caminhos. Os médicos da Bahia estavam a par dos avanços divulgados continuamente nas páginas da Gazeta Médica da Bahia, visitavam os centros de pesquisa do país e de outros lugares do mundo, e se correspondiam com profissionais e pesquisadores internacionais.


Se analisarmos onde alguns dos médicos baianos ou formados na Faculdade de Medicina da Bahia estavam talvez as coisas fiquem mais nítidas: Clementino Fraga, Artur Neiva, Belisário Penna, Martagão Gesteira, Juliano Moreira, dentre outros, foram convidados por instituições do Rio de Janeiro e de São Paulo, ocupavam cargos de destaque como o próprio jornal A TARDE demonstra no exemplo de Amaral, e, portanto, não lideravam instituições científicas na Bahia. O “desfalque” de toda essa massa intelectual não podia ser sanado com apenas a criação de uma filial do Butantan.

Embora a história não seja um fenômeno repetitivo (mesmo que os acontecimentos pareçam semelhantes, ocorrem em contextos diferentes, com especificidades próprias), Jaqueline Góes de Jesus, mulher, negra e baiana foi uma das coordenadoras da equipe de pesquisadores que realizou o primeiro sequenciamento do genoma do coronavírus, em um trabalho inédito realizado pelo Instituto Adolfo Luz e a USP (ambos situados em São Paulo) e a Universidade de Oxford. O doutorado realizado no estado baiano foi fundamental para a descoberta científica. Mas, assim como outrora, os talentos surgidos nesta terra ainda migram para alçar voos maiores e reconhecimento social. Por que não investir mais em ciência para mantê-los aqui?

O historiador Ricardo Batista analisa questões relacionadas à formação de cientistas baianos
 

Ricardo dos Santos Batista é doutor em História pela Universidade Federal da Bahia, com estágio de pós-doutorado na Casa de Oswaldo Cruz e na Faculdade de Medicina Preventiva da USP

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