Baianas de acarajé simbolizam a cultura e a resistência das mulheres negras que tiram o sustento nas ruas
Acervo de A TARDE guarda registros históricos sobre a evolução do ofício dessas quituteiras e a criação do dia nacional em homenagem a elas
A foto de uma baiana vestida em rendas e sentada ao lado de um tabuleiro com acarajés aparece em destaque na página 2 da edição do sábado, 05 de setembro de 1936, de A TARDE. A legenda da imagem diz: “Flagrante da tradicional ‘tia’ do acarajé e do ‘mestre’ engraxate no exercício legal da defesa da vida”. O texto é uma crônica no estilo do jornalismo praticado na época e cita as “profissões anonymas” encontradas nas ruas de Salvador, listando atividades populares como a das vendedoras de cocada, dos “vendedores da sorte” [bilhetes de loteria] e das baianas.
Em determinado trecho do texto, o cronista diz que “os trabalhadores vivem dos seus braços e morrem de fome se adoecerem e que eles trabalham hoje e não pensam no dia de amanhã, o amanhã é sempre um enigma. Para esses trabalhadores não foram feitas as leis reguladoras do trabalho, aposentadoria, sindicatos e outras medidas”.
Quase 90 anos depois dessa crônica, a bancária Rita Santos, coordenadora da ABAM - Associação das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos e Similares do Estado da Bahia, diz a mesma frase, com outras palavras: “Muitas delas vendem hoje para comprar a comida de amanhã”, referindo-se ao trabalho diário das mulheres que atuam no comércio de acarajé nas ruas da cidade, muitas há gerações da mesma família.
O ofício das baianas é secular e se origina ainda nos tempos coloniais, com as vendedoras de quitutes, chamadas ganhadeiras na época, e os rituais de devoção para a orixá Iansã. Ao longo do tempo, o ofício passou por mudanças e, pelo menos, nos últimos 112 anos, essas alterações na rotina e no modo de ser baiana de acarajé na cidade têm registros guardados nas páginas de A TARDE.
Antigamente, o acarajé era mercado nas ruas em pregões, pelas filhas da orixá dos raios, como obrigação religiosa. Na Salvador dos anos 1930, vendedores ambulantes percorriam as ruas da capital apregoando suas mercadorias, inclusive as vendedoras de acarajé. Outra edição de A TARDE de 1936, essa de 25 de abril, igualmente na página 2, traz uma charge mostrando um vendedor de cocada e uma “preta do acarajé”. A ilustração complementa uma reportagem sobre os pregões da cidade.
As coberturas de A TARDE do começo do século XX sempre se referem ao acarajé como um dos quitutes tradicionais da Bahia, presente em festas e eventos junto com as suas mais famosas vendedoras, as baianas. Inclusive, o acarajé tanto aparece como comida de rua quanto servido em festas da alta sociedade e eventos cívicos, como as comemorações pela Descoberta da América, no Liceu Salesiano, divulgadas na edição de 10 de outubro de 1935.
As edições da época também trazem notícias de almoços oficiais dos prefeitos da cidade regados a acarajé, abará, efó e outras comidas típicas saídas dos tachos e tabuleiros das baianas. Muitas vezes, elas preparavam os quitutes no local dos eventos e durante as festividades, como acontece até hoje.
Na edição do sábado, 5 de outubro de 1935, A TARDE traz outro flagrante fotográfico das feiras livres da cidade, como elas eram há 90 anos. Entre os profissionais listados como integrantes do microcosmo das feiras, encontram-se “as célebres pretas vendedoras de acarajé, de sarapatel, de caruru”.
Em uma cobertura da Lavagem do Bonfim de 1939, na edição de 14 de janeiro daquele ano, logo no subtítulo, o repórter diz que “mergulhou na onda do povo para colher os flagrantes pitorescos da festa e que o acarajé sem pimenta pode ser tudo menos acarajé”. A crônica sobre o Bonfim é ilustrada por uma fotografia de duas baianas sentadas lado a lado, com seus tabuleiros enfeitados.
Dia da Baiana
Oficialmente, o Dia da Baiana, em 25 de Novembro, foi instituído nacionalmente em 2010, segundo conta Rita Santos. Mas, antes de passar a ser comemorado em outros estados, como o Rio de Janeiro, o Dia da Baiana nasceu em Salvador como uma data extraoficial, por iniciativa da Bahiatursa.
“Com o objetivo de valorizar e estimular a figura da baiana típica, que através do seu trabalho difunde a culinária, a cultura e os costumes baianos, a Bahiatursa instituiu o dia 25 de novembro como ‘Dia da Baiana do Acarajé’, quando será desenvolvida uma intensa programação nos principais centros emissores de fluxo turístico para o estado”, diz trecho de reportagem publicada em A TARDE no dia 21 de novembro de 1982, na página 5 do Caderno de Turismo, anunciando a criação da homenagem local.
“Dentre as atrações e promoções turísticas da Bahia, a figura da baiana do acarajé é uma das mais populares em todo o Brasil. A baiana caracteriza a tradicional vendedora de iguarias típicas que trabalha nas ruas e praças de Salvador e em algumas cidades do interior”, continua o texto.
Mais adiante, a reportagem diz que as baianas atuais não mudaram tanto em relação às suas predecessoras ganhadeiras do século XIX. “Seu traje característico: saia ampla rodada, anáguas, bata bordada, sandálias, balangandãs e outros adereços, permanece. Além do principal elemento, um tabuleiro repleto de quitutes típicos (acarajés, abarás, doces, cocadas, queijadas e bolinhos de tapioca), que carrega pelas ruas da cidade até se instalar num ponto movimentado.”
Há ainda uma descrição detalhada do tabuleiro da baiana típica, apresentado como uma peça escavada em tora de madeira e enfeitado com toalhas brancas ou coloridas. “Os tabuleiros são uma grande atração ao paladar e à gula, pois neles ficam esteticamente arrumados, os acarajés dourados, cocadas de diversos sabores de frutos tropicais, bolinhos de estudante feitos com tapioca, amendoim torrado ou cozido, passarinha, peixe frito, caranguejos, doce de tamarindo, bolos de milho, aipim ou carimã; além de outros produtos, a depender do local onde a baiana faz ponlo”, arremata a reportagem.
Nos anos 1990, a cobertura de A TARDE destacou, na edição de 26 de novembro de 1998, alusiva à festa para as baianas no dia anterior, a missa e o cortejo realizados na Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Segundo o texto da época, as baianas compareceram à igreja desde cedo, todas paramentadas nos trajes típicos, despertando a curiosidade dos passantes. “Muitas baianas ensaiaram, em frente ao templo, alguns passos de músicas africanas tocadas nos rituais do candomblé. Uma ala do afoxé Filhos de Gandhy, posicionada na portaria da igreja, saudou as baianas com sons de atabaques e agogôs, instrumentos que auxiliaram os cânticos do missal, especialmente o ofertório, quando muitos fiéis chegaram a chorar de emoção.”
A federalização da festa que já acontecia em Salvador desde os anos 1980, segundo Rita Santos, foi resultado tanto do crescimento do evento e da representatividade das baianas, quanto do pedido que as associadas da ABAM fizeram a um deputado federal, que apresentou projeto de lei na Câmara. “Em 2010, [o presidente] Lula sancionou que 25 de novembro seria o Dia Nacional da Baiana de Acarajé”, acrescenta.
A lei federal citada por Rita é a 12.206, de 19 de janeiro de 2010. O dia 25 de novembro, não à toa no mês da Consciência Negra, foi instituído para homenagear a importância histórica e cultural da figura das baianas, que desde 2004 são consideradas Patrimônio da Humanidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Em 2012, elas foram também reconhecidas como Patrimônio Imaterial da Bahia e Patrimônio Cultural de Salvador. Já a profissão de baiana de acarajé foi oficializada com um decreto-lei municipal da prefeitura de Salvador, o 12.175/1998.
Respeito e valorização
A associação das baianas foi fundada em 19 de abril de 1992, conta Rita Santos, na casa da baiana Clarice, “em cima da laje da casa dela, lá em Itapuã, na rua da Mangueira”, complementa.
Rita, que veio do Rio de Janeiro para Salvador, entrou para a ABAM em 2001, como voluntária, para cuidar da burocracia da associação, como legislação, ata e estatutos. Apaixonou-se pelas baianas e sua simbologia. “Fui ficando, fiz o curso e me tornei uma baiana de acarajé, que é a coisa que eu mais gosto de fazer”, revela a coordenadora.
Nos mais de 30 anos de existência da ABAM, não falta luta pela valorização das baianas. A própria realização da festa anual delas é um desafio. “Quando a gente pode, traz baianas de outros estados, quando há possibilidade, quando há algum parceiro que dá as passagens. Quando não, fazemos só com as baianas daqui de Salvador. Porque tem municípios que também fazem, como Camaçari e Santo Antônio de Jesus”, enumera Rita.
A coordenadora da associação diz que um desejo antigo das baianas é que a festa entre no calendário municipal de Salvador. “Aqui é onde temos o maior número de baianas. [Gostaríamos] que o próprio município se propusesse a fazer a festa. Não a gente ter que ficar pedindo, porque é isso que acontece. Todo ano, quando chega nesse período, a gente tem de ficar pedindo a um e a outro para fazer a nossa festa. E o que eu gostaria, e tenho certeza que todas as baianas gostariam, era que entrasse no calendário de festas do município e que a prefeitura fizesse a festa”, afirma.
Mais respeito e valorização também entram na pauta de reivindicações das baianas que, de acordo com Rita, são em sua maioria mães solo. A festa realizada há mais de 40 anos é uma forma de reconhecimento, na opinião da coordenadora da ABAM. “A gente ainda não é valorizada, não é respeitada como devemos ser. [As baianas] são mulheres que sofrem muito e, nesse dia 25, tendo essas mulheres aqui e podendo desfrutar, tendo um pouquinho de alegria, para mim, já ganhei meu ano”, diz.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE