Bembé do Mercado reafirma espaço de resistência e cultura negras
Obrigação Cerimônia realizada desde 1889 em Santo Amaro da Purificação é mais do que uma festa

A maneira como uma história é contada pode mudar com o passar do tempo a depender do olhar de quem domina a narrativa. E essa mudança também altera a forma como aquele fato era entendido até então. Com o Bembé do Mercado, cerimônia pública de Candomblé que completa 136 anos em 2025, ressignificar a narrativa é um ato de reparação histórica. O Bembé deste ano, que começa hoje, já tem consolidado um entendimento mais afrocentrado. Mas, nem sempre foi assim.
Até o começo dos anos 2000, o Bembé do Mercado era visto como uma celebração ao 13 de Maio e, para alguns moradores de Santo Amaro, no recôncavo baiano, onde o evento acontece desde 1889, a ‘festa’ até era vista como celebração à princesa Isabel, a filha de D. Pedro II, regente imperial que assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Hoje, passado o primeiro quarto do século XXI, a história do pós-abolição é vista a partir do ponto de vista de quem protagonizou, durante séculos, muitos embates contra a escravização, resistindo com estratégia e articulação a um sistema desumanizador e bárbaro. A liberdade não foi dada na base da canetada por nenhuma princesa, mas conquistada com luta.
O Bembé, como nos conta a professora Ana Rita Araújo Machado, do colegiado de História da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), no Campus 5 de Santo Antônio de Jesus, não é apenas uma festa, mas uma obrigação religiosa. Todo ano, desde a origem, dezenas de terreiros de Candomblé se reúnem na cidade não para comemorar a abolição, como o olhar paternalista da branquitude defendeu por décadas, mas para agradecer aos deuses pela luta, pela resistência e pela reconquista da liberdade. Parece a mesma coisa, mas é bem diferente.

“O Bembé sempre foi feito por toda a comunidade negra da cidade, desde esse período [final do século XIX]. Isso foi um ato sempre ressignificado porque, para as pessoas do Candomblé, a gente não está falando de uma simples festa, uma celebração. Nós estamos falando de um marco e, sobretudo, ao longo do tempo, o Bembé se transforma em obrigação religiosa. Por quê? Porque, durante muito tempo, a ‘festa’ era tolerada, mas quando chega mais ou menos o processo de modernização da sociedade, essa festa é vista de uma maneira não muito positiva, mas como as pessoas do local não associavam necessariamente à prática das populações de terreiro, populações negras locais, eles sempre interpretavam essa prática como reconhecimento, por exemplo, à princesa Isabel. Quer dizer, isso não é o povo de terreiro, mas as pessoas da cidade que viam assim”, afirma a pesquisadora que trabalha com memória social na pós-escravidão, pensando a trajetória das populações negras a partir da concepção afrocentrada.
Racismo e intolerância
O primeiro Bembé do Mercado, em 1889, começou com a iniciativa de uma só pessoa. Segundo a tradição, um negro malê fincou uma bandeira branca em um mastro na Ponte do Xaréu e cantou e dançou em honra aos orixás. Ana Rita Araújo Machado acrescenta que, a partir desse marco inaugural do evento, a população negra e de terreiros de Santo Amaro passa a se reunir para comemorar as lutas e relembrar as experiências e desafios do pós-escravidão.

Com o passar do tempo, a cerimônia pública de Candomblé, que tem um caráter único no mundo, sai da Ponte do Xaréu e vai para as proximidades do mercado da cidade. Essa mudança rendeu atritos com a elite branca da cidade. “Santo Amaro era o lugar mais conservador no Brasil, até porque era o local onde uma boa parte dos senhores de engenho do Recôncavo vivia. Era uma cidade que estava ligada à grande plantação da época da escravidão. Então, nós podemos imaginar o que essa elite local entendeu como processo de pós-abolição e um homem negro, certamente do Candomblé, com seus aparentados de santo, desfilando no espaço público da cidade. Essa elite não ia receber isso com um bom coração”, acrescenta a pesquisadora.
A evolução da festa, no começo do século XX, começa a incomodar a elite local, principalmente após a mudança para a área do mercado, que era onde a população negra da cidade trabalhava. Moradores chamavam o Bembé de ‘bagunça’, criticavam os participantes usando adjetivos desqualificantes, reclamavam e até pediam a interdição do evento. Em alguns momentos ele foi proibido, mas havia a crença de que não realizar o Bembé resultaria em calamidade.
“Ao longo do tempo, a gente tem essa disputa pelo campo do espaço público. É quando tem dois eventos importantes. Houve várias enchentes, mas houve um elemento importante, emblemático também, em 1958, quando ocorreu uma explosão numa barraca, exatamente na feira de Santo Amaro, explosão que matou animais e muitas pessoas, e coincidentemente, naquele ano não houve o Bembé da forma como as populações [de terreiro] faziam, e a partir disso vem toda uma narrativa: ‘aquela explosão aconteceu porque nós não fizemos as obrigações, nós não fizemos todos os processos em relação ao 13 de Maio”, completa Ana Rita.
Nova história
Na segunda metade do século XX a percepção sobre o Bembé começa a mudar na medida em que lideranças dos principais terreiros de Santo Amaro reúnem outras casas de Candomblé para preparar as obrigações do evento. No final dos anos 1990, começo dos 2000, o Bembé incorpora muitos debates sobre o 13 de Maio sob uma perspectiva mais crítica, mostrando que lembrar a data não é necessariamente ser subserviente à benevolência da princesa.
A Lei Áurea, um documento assinado após muita pressão e em contexto político de profundas mudanças no então segundo império, não era um fim em si mesma e nem poderia, já que não trazia dispositivos de reparação ao povo negro, que após o ato governamental, teve de continuar lutando e, ainda luta contra o racismo, principalmente, e por cidadania plena.
A reconfiguração do Bembé do Mercado foi espelhada na cobertura jornalística do evento com o passar das décadas. Na história mais recente, a festa deixou de ser vista como celebração à Lei Áurea ou comemoração pela abolição e passou a ser tratada na imprensa sob a perspectiva da valorização dos verdadeiros protagonistas.
A edição de A TARDE de 17 de maio de 2003 é um exemplo dessa mudança de paradigma. Na cobertura da festa daquele ano, o jornal reforça que as lideranças que organizam anualmente o Bembé são contrárias a uma certa ‘forma burocrática de referência ao 13 de Maio’.
“Nas comemorações do Bembé do Mercado não agradecem à princesa Isabel e sim chamam a atenção para a luta dos negros pelo fim do cativeiro. A libertação se deu por meio das lutas dos escravos e das fugas das senzalas, da formação dos quilombos. Para conseguir força e determinação, eles se apoiavam na religião. O candomblé era a porta da esperança”, diz um trecho do texto.
A professora Ana Rita Araújo Machado reforça essa mesma visão ao enfatizar que o Bembé do Mercado é o ritual anual de agradecimento do povo de santo à natureza, aos orixás e à ancestralidade. O evento também mobiliza muita energia, como grande catalizador de forças para os enfrentamentos e desafios ainda vividos pela população negra na Bahia e no restante do Brasil.
Ana Rita estuda o Bembé e seus sentidos desde 1996. Nascida em Santo Amaro, na comunidade que faz a festa, ela começou a olhar para o evento sob uma perspectiva acadêmica, mas também afetiva, desde a graduação. Em um trabalho de campo, percebeu a importância de ouvir as pessoas que faziam o Bembé e que tinham outra história para contar além daquela que existe em livros ou documentos oficiais.
“Durante muito tempo, se escrevia, se falava das populações negras a partir de fontes de jornais, de fontes de arquivos, fontes policiais”, enumera, referindo-se ainda à importância das fontes orais nos estudos sobre as tradições do Candomblé e não só na religião, mas em todos os estudos e nas narrativas da diáspora africana. “Do ponto de vista da importância da história, você amplia o olhar, começa a olhar a partir de um outro lugar, um lugar afrocentrado - eu chamo de afrocentrado diaspórico -. Porque a diáspora começa a falar sobre si mesma a partir dela mesma, não a partir de alguém que chegou de algum lugar, encontrou, transformou em objeto de pesquisa”.
Dessa ótica, o Bembé e os terreiros de Santo Amaro falam por si e agora são ouvidos.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE