Biografia de São João ganhou novos contornos e forma de festejá-lo
São João é celebrado em meio a uma grande festa que tem adotado modelos diversos
Nas edições de A TARDE do período que vai de 1914 a 1980 há um embate permanente entre os modelos adotados para festejar São João na Bahia. A defesa sobre celebrações no estilo mais antigo, com fogueira e outros elementos, passou a enfrentar os discursos sobre a importância de grandes eventos para marcar o período. É uma dinâmica bem próxima da ênfase que se deu aos traços da personalidade do santo homenageado no dia, São João Batista, que praticamente não é lembrado como o profeta sisudo, primo de Jesus e defensor da penitência.
“Hoje, a civilisação acabou com as fogueiras nas linhas de bondes, mas a cangica, o manuê continuam fazendo as delicias de todos os paladares. E a foguetaria, os pistolões, as bombas, os buscapés, as rouqueiras, isso tudo tambem ficou, para alegrar a cidade. E em toda a parte, o Baptista será festejado. Centenares de boccas conclamarão pela noite a fora: Accorda João!”. (A TARDE, 23/06/1914, p.2).
Se o pedido para que acorde em meio à grande festa para celebrá-lo for atendido, São João poderá desencadear uma tragédia, de acordo com a devoção popular. Será o fim do mundo.
“Se ele estiver acordado vendo o clarão das fogueiras acesas em sua honra, não resistirá ao desejo de descer do céu, para acompanhar a oblação e o mundo acabará pelo fogo.
Se São João soubesse/Quando era o seu dia/Descia do céu à terra/ Com prazer e alegria./Minha mãe quando é meu dia? – Meu filho, já se passou!- Numa festa tão bonita, minha mãe não me acordou? /Acorda João/Acorda João/João está dormindo/Não acorda, não”. ! (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luis da Câmara Cascudo, p 104).
Festa com algazarra, fogos, inclusive barulhentos, e muita comida, além de várias simpatias para adivinhar o destino de relacionamentos é uma inversão total ao modo de vida adotado pelo João Batista descrito nos Evangelhos. Inclusive a sua iconografia mais conhecida é a que aparece como um menino segurando um carneiro, pois foi a forma que o adulto retratado nos evangelhos apontou Jesus indicando que ele seria sacrificado para selar a nova aliança entre Deus e a humanidade. A principal missão de João foi anunciar a chegada de Jesus como o prometido libertador.
O Batista que acompanha o nome de João é porque ele fazia um ritual para purificação com água ao qual Jesus se submeteu. Segundo os evangelhos, João vivia no deserto, vestido com peles e se alimentava apenas de gafanhotos e mel. Anunciava a necessidade de arrependimento porque o fim do mundo conhecido estava próximo.
Pregava uma vida regida por um sólido código moral e, por isso, encontrou a morte. Foi preso devido às seguidas denúncias que fazia sobre o casamento de Herodes com sua cunhada, Herodíades. Durante um banquete, a filha de Herodíades dançou a pedido do rei para os convidados com a promessa de que poderia obter o que quisesse. Ao consultar a mãe, esta lhe instruiu a pedir a cabeça de João Batista em um prato.
“O rei ficou triste, mas por causa do juramento na frente dos convidados, ordenou que atendessem o pedido dela, e mandou cortar a cabeça de João na prisão. Depois a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e esta a levou para sua mãe. Os discípulos de João foram buscar o cadáver, e o enterraram. Depois foram contar a Jesus o que tinha acontecido. Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barca para um lugar deserto e afastado”. (Evangelho de São Mateus, capítulo 14 versículos de 9 a 13).
João Batista tem a festa mais antiga da Igreja Católica, segundo Mário Sgarbossa e Luigi Giovannini, autores de Um santo para cada dia, um importante livro sobre hagiografia. Ele também é um dos poucos festejados no dia do seu nascimento e não da morte, como costuma acontecer com os mártires.
“Na história da Redenção, João Batista está entre as personalidades mais singulares: é o último profeta e o primeiro apóstolo, enquanto precede o Messias e lhe dá testemunho. “É mais que profeta – disse ainda Jesus. É dele que está escrito: eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele preparará o teu caminho diante de ti”. Castigador da hipocrisia e da imoralidade, pagou com o martírio o rigor moral que ele não só pregava, mas punha em prática, sem ceder também diante da ameaça de morte”. ( Um santo para cada dia, Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, p.186).
Celebração
A festa para São João foi estabelecida em junho pois o relato, também evangélico, aponta que Maria visitou sua prima e mãe dele, Isabel, quando ela estava grávida de seis meses. A celebração ao santo católico encontrou na Europa os antigos cultos de passagem das estações para marcar o período das colheitas. Nestas, as fogueiras eram consideradas defesas contra energias maléficas que atrapalhavam a prosperidade. O mesmo ocorria em outras regiões do mundo como Ásia e África.
No Brasil, o encontro entre as bases das religiões indígenas e africanas com o catolicismo português de base popular fez do São João no Nordeste uma celebração com culinária à base de pratos de milho e protagonismo da fogueira dos cultos das colheitas europeus, mas também para celebrar Xangô, o senhor da Justiça dos povos iorubás, por exemplo. Os sons e a forma de dançar deram origem a ritmos próprios como o forró e suas variações.
Mas, como acontece nas dinâmicas culturais, a festa foi se modificando especialmente em grandes centros urbanos como Salvador. As reportagens de A TARDE a partir de 1914 já apresentam um tom de nostalgia dos antigos tempos. Em 1920 foi publicada uma história interessante sobre a resposta da polícia a um grupo que questionou a retirada de fogueiras das linhas da empresa de bondes:
“É a civilização”. (A TARDE, 23/06/1920, capa).
Quarenta anos depois dessa notícia há a preocupação com os preços dos alimentos típicos do período.
“Mas que chance tem o bahiano de passar realmente, "um feliz São João”?. É sabido que, burlando a repressão, os preços sobem fantasticamente, às vésperas dos festejos. Contudo, este ano aconteceu uma coisa interessante com o milho, que é a base da cangica. A princípio subiu o preço a alturas exorbitantes: 50 cruzeiros pela mão, ou seja, 1 cruzeiro por cada espiga! O povo, porém, parece que reagiu pacificamente, não comprando milho. Aí aconteceu o inesperado: o preço desceu a 30, 25 e 12 cruzeiros- já pode haver cangica na casa do pobre”. (A TARDE, 23/06/1950, p.2).
A reportagem de 1950 também deu destaque às celebrações nos clubes, como o Boulevard Esporte Clube, localizado em Nazaré. A programação incluiu exibição de filmes e até uma disputa de basquete.
“A festa principal será amanhã, às 20 horas, com cinema ao ar livre, bingo, havendo queima de fogos de artifício. Constará também do programa uma partida de basquete-ball. O largo estará fartamente iluminado havendo uma barraca armada, serviço de cangica, bolos de São João e refrigerantes”. (A TARDE, 23/06/1950, p.2).
Deste período até a década de 1980, as reportagens passaram a se concentrar em destacar o preço dos alimentos que compõem a mesa das festas juninas. Em seguida veio a era dos grandes eventos. Com destaque para as cidades do interior, a capital também foi aderindo a essa programação marcada por grandes shows em áreas públicas. É apenas uma amostra de que, assim como na biografia de São João, o santo homenageado, essa diversidade presente na festa oferece caminhos para que ela tenha sempre os embates entre modelos, mas que, longe de fazê-la desaparecer abre novas perspectivas. O acerto ou equívoco dessa ou daquela aposta de formato é parte integrante das nossas formas de festejar.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia