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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 24 de junho de 2023 às 8:00 h | Autor:

Caboclos estão sendo cuidadosamente preparados para Bicentenário

Artista plástico João Marcelo Ribeiro é o responsável por preparar as vestes e adereços das estátuas

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Obras históricas ligadas ao 2 de Julho estão sendo restaurados no ateliê do professor e restaurdor José Dirson Argolo
Obras históricas ligadas ao 2 de Julho estão sendo restaurados no ateliê do professor e restaurdor José Dirson Argolo -

A cada ano, o momento de maior expectativa no início do cortejo em comemoração ao Dois de Julho é a apresentação das estátuas dos Caboclos. Como eles se relacionam com os Encantados das religiões afro-brasileiras muita gente aproveita para fazer pedidos e agradecer, inclusive colocando bilhetes nos carros que transportam as imagens. Também se costuma prestar atenção no figurino e adereços que compõem a apresentação das estátuas. Com base na coleção de imagens do Cedoc A TARDE é possível perceber o quanto as vestes e adereços foram ganhando mais elementos com o tempo.

Em uma fotografia que aparenta ser da década de 1950 ou 1960, a estátua da Cabocla, em destaque, tem o peito nu e um saiote com pouco volume. Em uma imagem de 1977, o Caboclo aparece apenas com uma faixa atravessando o seu peito e um saiote com volume reduzido em comparação ao cocar.

Há dois anos a estátua do Caboclo ganhou, além de um cocar mais emplumado, colares em tons de verde e amarelo. O peito da Cabocla foi preenchido por colares em tons mais neutros contrastando com o verde e amarelo do figurino. No ano seguinte, em tons de vermelho, azul e branco, o cocar da Cabocla ganhou volume que o deixou parecido a uma coroa.

Estes últimos figurinos mais elaborados são de autoria do artista plástico João Marcelo Ribeiro. Graduado pela Escola de Belas Artes da Ufba, desde 2012 ele é o responsável por confeccionar as roupas e adereços dos Caboclos do Dois de Julho em Salvador. Para compor as vestimentas, João Marcelo leva em consideração vários fatores, como, por exemplo, o que será usado na decoração das ruas por onde o cortejo passa, elemento que é estabelecido pela Fundação Gregório de Matos, órgão da Prefeitura de Salvador. “A partir do que vai ser usado na decoração das ruas, principalmente as cores, eu vou baseando os figurinos e adereços”, destaca.

Durante algum tempo, o verde e o amarelo predominaram nas vestes das estátuas em uma referência às cores da bandeira brasileira. Desde que assumiu essa função, João Marcelo tem procurado dar um tom diferente na confecção das indumentárias.

Um símbolo cívico, que representa o povo brasileiro liberto de Portugal, os Caboclos estão associados aos indígenas, considerados os donos do chão onde se ergueu o Brasil na condição de uma nação, mas essa conexão também se repete no ambiente sagrado. Em religiões afro-brasileiras, como o candomblé, a umbanda e outras variações, esse símbolo ganhou uma conotação de sacralização não apenas dos indígenas, mas também de marcos geográficos e foi se estendendo para outros campos como o de ofícios, onde estão os marujos e os vaqueiros, na representação de Martim Pescador e Boiadeiro, respectivamente.

Volta e meia, os devotos dos Caboclos reconhecem essas representações às quais João Marcelo está atento. “Houve um ano em que resolvi vestir os Caboclos de branco. Aqui na Bahia se veste branco em homenagem a Oxalá nas sextas-feiras. Também se veste branco em combinação com o clima. Houve críticas em rede social, mas aconteceu uma coisa muita interessante. Eu conheci uma senhora que todo mundo chamava de Tia Nilzete. Ela tinha um bar no Pelourinho e lá tinha uma imagem de Pena Branca. Pois no dia do desfile, a filha de dona Nilzete, pois ela já faleceu, veio me dizer que estava emocionada, pois sabia que a mãe ficaria muito feliz em ver os Caboclos do Dois de Julho fazendo uma homenagem a Pena Branca”, destaca o artista plástico.

Em outra ocasião, João Marcelo decidiu homenagear os Encourados de Pedrão, um grupo que traz a memória de um batalhão formado por vaqueiros. Eles estão ausentes do desfile por força de uma ação do Ministério Público da Bahia atendendo pedidos de associações de proteção dos animais com o argumento de que os donos do ofício, que é considerado patrimônio da Bahia pelo Ipac, maltratavam seu principal meio de condução no trabalho. Essa é uma das ausências mais sentidas no cortejo do Dois de Julho não apenas pelo que aparenta de equívoco sobre práticas tradicionais, mas por ter sido retirado um símbolo da representação de toda a Bahia no desfile da capital, afinal o ofício de vaqueiro está presente em todo o território baiano.

A homenagem realizada por João Marcelo foi desenvolvida principalmente nas vestes dos Caboclos que ele conta ter confeccionado com uma pelúcia que se aproximava das cores da jaguatirica, um felino presente em várias regiões do Brasil. Mas a interpretação que o artista plástico conta ter escutado foi a de que a homenagem era ao Caboclo Boiadeiro.

Origem

A história mais aceita sobre a origem do cortejo do Dois de Julho conta que, em 1824, decepcionados com a falta de benefícios após a Independência, populares resolveram exprimir a sua indignação por meio do que podemos considerar uma sátira. Em cima de uma carroça utilizada para transportar material durante a guerra colocaram um descendente de indígenas e fizeram o mesmo caminho adotado pelas tropas do chamado Exército Pacificador quando foi sedimentada a expulsão dos portugueses da capital baiana.

Em 1826 fizeram uma estátua. A imagem do Caboclo representa um indígena com o corpo inclinado. Empunhando uma lança ele se dirige a um dragão. A fera é a representação de Portugal. O carro do Caboclo tem outros elementos como uma armadura logo à frente.

Duas décadas depois, o general José de Souza Soares de Andrea, presidente e comandante de armas na então Província da Bahia, um cargo semelhante ao de prefeito na atualidade, mandou confeccionar a estátua de uma Cabocla. O objetivo era representar Catarina Paraguaçu que, ao se unir a Caramuru, tornou-se a representação oficial do ideal de mãe da família brasileira. O comandante tentava substituir um símbolo bélico por uma versão mais amena, afinal a figura da Cabocla, mesmo no carro, fica de pé e não em posição de combate como o Caboclo.

A substituição não foi aprovada e conta-se que houve até ameaça de enfrentamento caso o Caboclo não saísse. Assim, Salvador ganhou dois símbolos daqueles que estão no panteão afro religioso como donos da terra brasileira.

“Há, portanto, além das vestes e adereços das imagens, a decoração dos carros. O do Caboclo dá mais trabalho por conta do tamanho e porque há muitos elementos para considerar a harmonia”, explica João Marcelo.

O artista plástico, que mora em um sítio no município de Conceição do Almeida, por conta desse seu trabalho reservou uma área para a plantação de peregun, a principal planta utilizada na decoração dos carros. A folha dessa espécie é usada em ritos das religiões afro-brasileiras. Além do peregun, João Marcelo cultiva também palmeiras e outras espécies para auxiliar na decoração.

“Há muita gente que leva para casa assim como acontece com os elementos utilizados nos andores durante as procissões”, completa João Marcelo.

Expectativa

As pistas para o figurino desse ano estão, obviamente, protegidas a sete chaves por João Marcelo, afinal esta é uma edição mais do que especial com a celebração dos 200 anos da Independência da Bahia. “Esse ano a minha ideia é trabalhar as cores das bandeiras do Brasil e da Bahia, mas de forma misturada. Já dá um friozinho na barriga a expectativa de saber como as pessoas vão receber”, diz.

O trabalho realizado pelo artista plástico é posterior ao de restauro das estátuas e dos carros que são feitas ano a ano pela equipe chefiada pelo artista plástico, doutor em artes visuais e especialista em restauração histórica, José Dirson Argolo.

As peças que são do século XIX percorrem todas as etapas do cortejo, além de ficarem em exposição por alguns dias no Campo Grande, o que demanda cuidados constantes e especializados.

Todos esses elementos são considerados no momento de escolher, por exemplo, os materiais. “As penas de avestruz que já foram muito usadas, quando molhadas perdem o efeito para dar volume aos saiotes. Em julho costuma chover muito em Salvador e, por isso, tenho usado penas de pato que armam mais”, diz João Marcelo.

No próximo dia Dois de Julho, a expectativa deve ser ainda maior especialmente para os devotos do casal de Encantados que são os patronos da maior festa cívica da Bahia. Mas, se depender, de João Marcelo, os Caboclos estarão vestidos à altura desse grande dia que ficará nos registros de memória sobre a celebração do bicentenário.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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