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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 01 de julho de 2023 às 8:29 h | Autor:

Caboclos são elementos centrais em festa de outras cidades baianas

Cachoeira, Itaparica, São Félix e Santo Amaro têm cortejos com protagonismo para esses símbolos

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Caboclo Tupinambá é reverenciado pelo povo de Itaparica e fica guardado no gabinete do executivo municipal
Caboclo Tupinambá é reverenciado pelo povo de Itaparica e fica guardado no gabinete do executivo municipal -

Em Itaparica, a celebração da participação do município na Guerra da Independência da Bahia tem como principal personagem o Caboclo Tupinambá. No local, onde aconteceu a mais importante batalha marítima da guerra da Independência da Bahia, a celebração abriu o ano de comemoração do bicentenário, pois a festa na localidade foi em 7 de janeiro, data em que ocorreu a disputa por lá em 1823. No marco de referência tem um cocar ao lado da denominação da cidade. Em conjunto com Maria Felipa, o Caboclo Tupinambá detém uma integração forte com o povo de Itaparica. Tanto que ele é guardado no gabinete de onde despacham os prefeitos do município.

“Conta-se que há muito tempo, o Caboclo foi retirado da igreja onde ficava por ordem de um padre. Desde então ele passou a ficar no gabinete do prefeito da cidade, o que é muito significativo, pois lembra que cada autoridade passa, mas a representação do povo, como simboliza essa referência dos Caboclos na Guerra da Independência, continua”, diz o advogado e pesquisador, Augusto Albuquerque. O atual prefeito de Itaparica Zezinho Oliveira (PTB-BA) concorda. “Para mim é uma honra e privilégio todos os dias despachar ao lado de Tupinambá”, completa.

Além de Itaparica outras localidades baianas celebram a sua participação nos conflitos que não apenas expulsaram os portugueses da Bahia, mas foi crucial para que a emancipação política do Brasil fosse finalmente garantida, com a presença de estátuas de um Caboclo ou Cabocla. Santo Amaro, São Félix, Itaparica, Cachoeira, Saubara, Jaguaribe, Maragogipe, Caetité, Itacaré, Valença, Bom Jesus dos Passos, Bom Jesus dos Pobres, Salinas da Margarida e Aratuípe são locais que festejam, além de Salvador, com esses Encantados em posição central.

Em Itaparica assim como em outras cidades, o mágico se mistura ao cívico e religioso sem grandes rupturas. No artigo intitulado O Caboclo Eduardo e a Festa do 7 de Janeiro em Itaparica, Bahia, Milton Moura, professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador sobretudo de festas e Carnaval, conta a dificuldade em definir detalhes sobre a história do Caboclo Eduardo, considerado o fundador do grupo Os Guaranys, associação cultural que lidera os ritos de comemoração da Independência da Bahia, como o auto da Roubada da Rainha.

“A história de Eduardo é relativamente misteriosa; entretanto, seus conterrâneos testemunham que contribuiu vigorosamente para configurar uma forma inédita de apresentar e representar o Caboclo nessa cidade. Diante da escassez de informações escritas e mesmo de fotografias individualizadas deste homem, o pesquisador se depara com a riqueza e singularidade de elementos que, presentes até hoje nos festejos do 7 de Janeiro nessa cidade, são constantemente remetidos à sua inventividade e reinterpretados pelos mais velhos, além de motivo de curiosidade e respeito de parte dos mais jovens”. ( O Caboclo Eduardo e a Festa do 7 de Janeiro em Itaparica, Bahia, Milton Moura, Revista Brasileira de História das Religiões, v. 09, n. 27, janeiro-abril 2017).

Os Guaranys são ainda uma espécie de guarda de honra do Caboclo Tupinambá, e ocupam posição de destaque no desfile, inclusive na sua organização. Fundado em 1939, desde a década de 1960 o grupo passou a participar também do cortejo em Salvador onde mais uma vez cumpre a função de ir à frente do Carro dos Caboclos. Uma dessas participações foi registrada na edição de A TARDE de 30 de junho de 1962.

Atualmente, a associação cultural Os Guaranys é presidida por Emanuel Pitta, que detalha o orgulho que sente ao fazer parte de uma associação que não apenas em Itaparica e Salvador, mas em Cachoeira e outras cidades já foi à frente dos Caboclos simbolizando sobretudo a participação popular na guerra da independência. É isso que para Milton Moura e Augusto Albuquerque fazem essas celebrações tão especiais quando vistas a partir dessa perspectiva de ter o Caboclo como elemento central.

A mesma linha de raciocínio é seguida por Davi Rodrigues, artista, escritor e ilustrador. Ex-secretário de Cultura e Turismo de Cachoeira, em sua análise, esses encantados dão a dimensão do povo baiano e sua religiosidade às festas comemorativas à Independência da Bahia. “Se você analisar, o carro dos Caboclos, além da religiosidades afro-brasileira, lembram os andores dos santos católicos e causam a mesma comoção. Isso é muito bonito e dá uma dimensão da nossa diversidade cultural”, acrescenta.

Morada na Câmara

O Caboclo de Cachoeira mora no memorial anexo à Câmara Municipal. Talvez, para lembrar a importância da liberdade, o memorial foi instalado na parte de baixo onde ficavam as antigas cadeias, pois essas instituições no período colonial e parte do império tinham a função de sediar a aplicação das penas do sistema de justiça.

Caboclo de Cachoeira é protagonista do desfile  em junho
Caboclo de Cachoeira é protagonista do desfile em junho | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE

O rito relacionado ao Caboclo une Cachoeira à vizinha São Félix. Na véspera do desfile oficial, realizado em 25 de junho, data em que começaram os combates em Cachoeira, o Caboclo é levado da Câmara até a entrada da ponte Dom Pedro II. Lá ele recepciona a Cabocla Catarina Paraguaçu que pertence a São Félix. Após o desfile, ela fica alguns dias em Cachoeira para receber as visitas dos devotos ao lado do Caboclo. Os dois são levados em cortejo para São Félix onde desfilam juntos em Dois de Julho. Em seguida a Cabocla repete o rito de cordialidade entre as duas cidades ao levar o Caboclo até a entrada da ponte para o seu retorno a Cachoeira.

Nas duas cidades há a crença de que se não ocorrer o encontro, as cheias do Rio Paraguaçu, que durante décadas foram o pesadelo local, podem voltar. Após a construção do complexo Pedra do Cavalo na década de 1980, as águas do Paraguaçu, na época de maior volume, passaram a ser controladas. O problema é que veio a pandemia e o encontro ficou sem acontecer por dois anos. E não é que por conta dos caprichos da relação entre lua e maré houve um certo aumento de volume das águas, o que apavorou parte dos moradores das duas cidades? Mas eis que os Encantados relevaram por conta do caráter de emergência. Pedra do Cavalo ficou com todas as comportas abertas, mas a ida da água mais além dos limites esperados para a rua foi apenas um susto.

Catarina Paraguaçu é o nome da Cabocla de São Félix
Catarina Paraguaçu é o nome da Cabocla de São Félix | Foto: Fábio Bastos | Equipe de Mídias Digitais do Grupo A TARDE

A gentileza encantada deve ser a devolução do carinho que se dá aos cuidados com as estátuas. É o caso Beatriz da Conceição, assistente social e ex-diretora de cultura da Casa de Cultura Américo Simas, onde fica a Cabocla. Durante anos, Beatriz da Conceição foi a responsável por cuidar do figurino de Catarina. Não era todo ano que dava para conseguir uma roupa totalmente nova, mas não por falta de esforço da guardiã que recorria aos mais variados expedientes para garantir o brilho de Catarina.

O atual responsável por cuidar das vestes da Cabocla e da decoração do carro emblemático é Hugo Costa. Agente de turismo e monitor de cultura no município de São Félix, Hugo viveu esse ano a experiência de vestir Catarina em meio às celebrações do bicentenário da Independência do Brasil na Bahia.

Relevâncias destacadas

À medida que apresenta as informações sobre as celebrações em Santo Amaro, Moyses Neto, secretário municipal de Cultura, Turismo Esporte e Lazer reitera que tudo começou na localidade. Sim. Em 14 de junho de 1822, a Câmara de Santo Amaro publicou, em ata, os resultados da sua sessão em adesão à autoridade do príncipe Dom Pedro e por extensão à causa da independência.

Cabocla de Santo Amaro é destaque  no Dois de Julho
Cabocla de Santo Amaro é destaque no Dois de Julho | Foto: Fábio Bastos | Equipe de Mídias Digitais do Grupo A TARDE

As vilas do Recôncavo concentravam não apenas os engenhos de produção de açúcar e outros produtos, mas também a alimentação. Sem essas localidades, inclusive Itaparica, Salvador não conseguia alimentos. Isso foi parte central da estratégia do general Pedro Labatut, francês contratado com dinheiro, em sua maioria vindo do Recôncavo, para organizar as tropas do lado brasileiro na Bahia em uma primeira fase. Labatut sufocou a capital pela fome, o que foi crucial em batalhas como a de Pirajá e de Itaparica consideradas uma tentativa portuguesa de furar o cerco.

A Cabocla de Santo Amaro é guardada no espaço interno da Câmara e próxima à antessala de onde fica o gabinete do executivo municipal. O carro em que é conduzida para o desfile fica no térreo, na área onde funcionou a parte da cadeia do complexo.

A Cabocla de Santo Amaro não tem nome assim como a de Salvador e os Caboclos da capital e o de Cachoeira. Já Catarina Paraguaçu, de São Félix se junta a um grupo seleto formado ainda por Dona América, de Jaguaribe, e Brigída de Saubara. No grupo de Caboclos tem Jaguaraci, de Maragogipe e e Pirambu de Salinas da Margarida, além de Tupinambá, de Itaparica, que rege o município de forma simbólica. Lá é também a terra de Maria Felipa, uma outra heroína com uma história contada pelo povo e que ainda causa controvérsia por falta de dados mais precisos, mas que só demonstra que a Guerra da Independência foi feita, principalmente, com a participação de mulheres e homens negros, mestiços, pobres, escravizados e libertos, extremamente destemidos e que não poderiam ter um melhor símbolo que os Caboclos para representá-los.

Até a história oficial registra a participação popular, como a correspondência de Labatut. Após a batalha de Pirajá, em carta para a corte, ele destacou a coragem de homens do povo, contando que desde que havia chegado à Bahia não havia visto a adesão de gente da elite para se alistar do lado brasileiro. Conta-se que os donos do dinheiro estavam á espera de saber qual lado pendia para a vitória para aderir a ponto de alistar filhos nas duas vertentes e assim garantir vantagens no lado vencedor ao fim dos combates.

Nada muito diferente de como continuam se comportando determinados setores das elites brasileiras em um cenário de embates e tensões. Tanto que um ano depois do fim da guerra lá foi o povo de novo fazer protesto ou deboche político para mandar um recado quando promoveram a caricatura, em 1824, da entrada das tropas na cidade. Mas essa é uma outra história para a gente reiterar ainda por muito tempo, afinal no próximo ano serão 200 anos dessa versão mais difundida para o início do cortejo comemorativo em Salvador, que, inclusive, explica tanto protagonismo para esses Caboclos e essas Caboclas encantadas por tantas partes da Bahia para além das festas cívicas.

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