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Calendário das festas de verão é marcado por interações com o mar

Em festas como Bom Jesus dos Navegantes e Iemanjá esta ligação é clara

Publicado sábado, 10 de dezembro de 2022 às 07:00 h | Autor: Cleidiana Ramos*
A procissão marítima da Festa de Bom Jesus dos Navegantes acontece em 1º de janeiro
A procissão marítima da Festa de Bom Jesus dos Navegantes acontece em 1º de janeiro -

Construída no entorno da Baía de Todos-os-Santos, Salvador manteve sempre uma forte ligação com o mar. Essa conexão está presente em várias das suas manifestações culturais, especialmente nas festas. Essas celebrações mantêm ou já tiveram, por exemplo, uma procissão marítima associada. Das festas que acontecem na capital baiana e que são uma espécie de aquecimento para o Carnaval, com o calendário iniciado nas homenagens a São Nicodemus e término com a Festa de Itapuã, a ocupação do espaço da cidade começa pelas imediações do porto e termina na chamada orla atlântica. 

Para a tese de minha autoria, intitulada Festa de Verão em Salvador- um estudo antropológico a partir do acervo do jornal A TARDE, orientada pela professora Fátima Tavares no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA-UFBA) cataloguei 2.690 fotografias e 6.992 PDFs de reportagens relacionadas ao conjunto das festas que acontecem na capital baiana de novembro a fevereiro. Na coleção de imagens do Centro de Documentação do Jornal A TARDE (Cedoc A TARDE) há uma diversidade de registros sobre procissões marítimas.  

A Festa de São Nicodemus, a primeira celebração do calendário de verão e que ocorre na última semana de novembro, é profundamente vinculada a essa cultura marítima. São Nicodemus é padroeiro dos estivadores. Sua festa começou a ser celebrada pelos trabalhadores do Cais do Carvão, segundo Antônio Monteiro, em artigo publicado na edição de A TARDE de 26 de novembro de 1966. 

“Lá, pelas bandas do cais da lendária Cidade do Salvador, entre os últimos armazéns das docas, local que em épocas ainda não remotas, era tido como abrigo de infelizes vagabundos conhecidos pela alcunha de "capitães de Areia", figuras dramáticas do escritor Jorge Amado. Aí, entre um amontoado de carvão de pedra deparou-se nos um grupo de trabalhadores do cais; eram doqueiros, estivadores e carregadores do porto”.  (A TARDE 26/11/1966, Caderno 2, p.2). 

As imagens que utilizou para a ilustração desse artigo, feitas por Voltaire Fraga, foram doadas por Antônio Monteiro para a coleção do Cedoc A TARDE. Dentre as fotografias está o registro de uma corrida de saveiros que fazia parte da celebração. 

Outra festa do início do ciclo de verão, a de Nossa Senhora da Conceição, embora não tenha uma manifestação específica no mar está nas vizinhanças do porto e a igreja em sua primeira versão foi instalada na praia. A devoção foi trazida por Tomé de Sousa, o responsável pelas obras de construção de Salvador.  

Já a festa de Santa Luzia, que acontece no próximo dia 13, mantém também essa ligação próxima com o mar, não apenas pelo roteiro da procissão incluir a passagem pela área externa do porto, mas por conta da relação com os estivadores. Nas primeiras edições da Festa de São Nicodemus, as missas chegaram a ser realizadas na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, onde está sediada a devoção para Santa Luzia. Ainda hoje, em edições da festa, o afoxé Filhos de Gandhy, surgido no âmbito da estiva, participa da comemoração. 

Benção do mar

O calendário das festas de verão em Salvador começa com as Festa de São Nicodemus, seguindo-se as homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia. A partir dessa última festa tem uma pausa. O calendário é retomado com a festa em que o mar tem total protagonismo: Bom Jesus dos Navegantes. A imagem é levada na Galeota Gratidão do Povo.  

No dia 31 de janeiro, a imagem é embarcada na Boa Viagem para o transporte até a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia onde pernoita. No dia seguinte a imagem é levada até o cais do II Distrito Naval para a realização da procissão marítima que vai até a Barra e retorna em direção à Boa Viagem. 

A procissão tem uma das mais interessantes manifestações do campo das festas que são as várias comemorações envolvidas em uma. Durante décadas, a festa fez com que a Boa Viagem fosse um dos locais com maior visibilidade para a celebração do Ano Novo em Salvador. E essa proximidade com outra grande festa, como aconteceu com outras manifestações, foi motivo de muita tensão com os ritos católicos como foi registrado na edição de A TARDE de 28 de dezembro de 1976:  

“A procissão do Senhor Bom Jesus dos Navegantes e a missa campal, no largo da Boa Viagem, que estavam ameaçadas de não serem realizadas, por causa da proximidade de barracas de bebidas junto à igreja, foram confirmadas ontem, pelo padre Hugo Rosini, depois que manteve contato com Dom Avelar. Ele disse que a vontade do cardeal é que a festa seja realizada como todos os anos e que seria um impacto muito grande se não houvesse a procissão”. (A TARDE, 28/12/1976, p.2).   

No entorno da procissão do dia 1º, há muitas embarcações que, geralmente, sediam a continuação da celebração do Réveillon. Outras tem a procissão como início de uma programação que vai se estender, após o final, para um passeio pelas ilhas próximas a Salvador. A trilha sonora, portanto, é uma mistura de samba e os ritmos que estiverem em evidência, o que em tempos passados já incomodou, por exemplo, o então arcebispo de Salvador, dom Lucas Moreira Neves. 

“Destacou o arcebispo que era seu dever, como pastor da igreja, impedir que os outros elementos “prejudicassem, maculassem a fé religiosa”, prometendo agir com prudência na defesa da devoção do povo baiano”. (A TARDE, 2/1/1988, p.3). 

Na reportagem que tem esse trecho da declaração de dom Lucas, uma das imagens mostra mulheres usando lingeries com cintas-ligas em uma das embarcações que acompanham a procissão católica. Nas edições da procissão marítima que acompanhei, na época do trabalho de campo, ocorreram manifestações de outras religiões como candomblé e umbanda. 

Essa interação das festas de Salvador ao longo do mar, em fevereiro, desloca-se para a orla atlântica, com protagonismo sobretudo da comemoração realizada no Rio Vermelho. A Colônia de Pescadores Z-1 é a promotora da Festa de Iemanjá, que ganhou o protagonismo que antes era da padroeira do bairro, Nossa Senhora Sant´Anna. 

A Festa de Iemanjá é totalmente marítima seja por conta dos elementos sob a qual a orixá reina, mas também do rito principal que é o presente. Ele é levado, por meio de uma embarcação, para ser depositado nas águas. 

No vizinho bairro da Pituba acontece a Festa de Nossa Senhora da Luz. Mesmo com a perda do seu mais conhecido rito, a lavagem, a festa mantêm a conexão com as celebrações ligadas ao mar: a missa, realizada ao amanhecer ocorre na praia, e a procissão marítima também foi mantida.   

Das festas de verão de Salvador, portanto, ao menos cinco das 12 que persistem, têm uma ligação direta com as águas. O mesmo acontece em outros municípios da Baía de Todos-os-Santos.       

“É possível listar cinco categorias de festas que acontecem nessas ligações com as águas: os presentes de Iemanjá e Oxum, as barquinhas, os aruês, festas em que se leva o ano que está no fim e recebe-se o que está chegando,  as lavagens, as marujadas e as corridas de canoa”, aponta a doutora em antropologia e professora titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Fátima Tavares. A professora é organizadora do livro Inventário de Festas e Eventos na Baía de Todos-os-Santos, em conjunto comigo, Carlos Caroso e Fancesca Bassi. 

“O livro mostra um inventário das festas que acontecem ao longo da Baía de Todos-os-Santos e que vão além de Salvador. É muito interessante como em muitas dessas festas, especialmente as que têm relação com as águas, as ligações entre o mar e os territórios, entre limites de municípios diferentes se entrelaçam e esgarçam”, aponta Fátima Tavares. 

As festas de verão, portanto, são momentos em que as várias perspectivas de experiências sobre as cidades, sobre o mar e outros elementos estão em evidência. O interessante é que a experiência festiva as movimenta, mesmo que nem todos os agentes nela envolvidos percebam, mas nem por isso suas dinâmicas deixam de ser intensas.      

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

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